André Nigri (1968), trineto

Não me recordo com exatidão a primeira vez em que ouvi falar de Bernardo Guimarães, mas me lembro como ficava orgulhoso e um pouco acanhado por ter como antepassado um escritor de prestígio. Esse sentimento de vaidade familiar inflava quando na escola nos era recomendada a leitura de um de seus livros. Tive o privilégio de ser neto de Roberto Albino Alves - estranhamente meu avô retirara o Guimarães do nome, em sua carteira de estudante o sobrenome famoso consta. Privilégio porque dono de uma imensa cultura humanista refletida em sua biblioteca que fui conhecendo aos poucos, já que ele era muito cioso de seus alfarrábios. Hoje os livros estão comigo. Meu avô cultivava com zelo a memória de seu avô Bernardo Guimarães. Há várias edições de um mesmo romance dele na biblioteca e uma rara primeira edição de Folhas de Outono, pela Garnier. Este livro era um totem na estante e só o tive em mãos nos últimos anos de vida do meu avô, que àquela altura já me confiara boa parte da biblioteca na certeza de que ela continuaria na família. O vô Roberto era um sujeito bastante irreverente e crítico. Suas leituras de preferência eram de romances e poesia do século 19, principalmente brasileiros e portugueses. Entre esses últimos, seus eleitos eram Eça, Camilo e Bocage. Dos brasileiros, o gosto recaía sobre Machado, Alencar e Júlio Ribeiro, na prosa, e Castro Alves, Varela, Bilac e Alphonsus Guimaraens, na poesia. A Bernardo Guimarães ele reservava um espaço especial no qual se misturavam a filiação sangüínea e a admiração intelectual. Meu avô, assim como eu, preferia o Bernardo poeta ao romancista. Como se sabe a veia lírica do autor data de sua juventude, tendo a prosa como obra de maturidade. Meu avô sem dúvida tinha o temperamento do Bernardo jovem: um pessimista incorrigível alagado de muito humor e sarcasmo. Os poemas satíricos, fesceninos e bestialógicos falavam-lhe muito mais à alma que as histórias bucólicas com paisagens rurais. Sabia longos versos de cor e ele próprio praticava suas quadras, deixadas em dezenas de cadernos de diário. Essas quadras sabiam ao conteúdo lírico-pornográfico, muitas vezes, lembrando as extraordinárias passagens de Elixir do Pajé e A Origem do Mênstruo. Naturalmente, ele nunca mostrou esses pecadilhos a ninguém, mas talvez adivinhasse que um dia alguém as leria, como fiz recentemente. Essa sua admiração pelo avô escritor veio à luz de forma acentuada depois de sua morte. De posse de seu acervo, comecei a examinar mais de cem cadernos, entre diários e toda sorte de anotações. Descobri então um grande caderno pautado, de capa preta, comecei a folheá-lo e ler as letras miúdas, impecáveis, escritas a bico de pena como ele gostava. Em mais de cem páginas ali estava uma biografia de Bernardo Guimarães pelo seu neto. Para escrevê-la ele se valeu de livros, recortes de jornais e, claro, das histórias da família, sobretudo da amada vó Teresa, a viúva de Bernardo, que o criou. Como existem, até onde eu saiba, apenas duas biografias do romancista, contista, poeta, jornalista e professor Bernardo Guimarães, e ainda assim muito incompletas, esse material do meu avô me parece da maior importância.

São Paulo, 20 de janeiro de 2005

Andé Nigri é jornalista e escritor

Parentesco dos Guimarães com os Guimaraens (por Maria Fernanda Alves Guimarães, jornalista, genealogista)