Melodia

Á Ex.ma Sra. D. Joana Perpétua de Oliveira Santos

Era uma tarde linda, como há poucas

Nestas sombrias terras

De névoa eterna e ventanias roucas.

Por cima dessas serras

Das auras ao sabor nuvens douradas

Vogavam brandamente balouçadas.

Pelo pendor da serrania brava,

Do monte pelos visos

Da noite a precursora derramava

Seus mágicos sorrisos;

E pelo vale a viração macia

Aroma e fresquidão a flux vertia.

Ardendo em luz no fundo do horizonte

Como acesa cratera,

Flamejava ao titânico Itamonte

A catadura austera,

Engolfando no azul da esfera limpa

Entre fulgores a dourada grimpa.

E eu tentando erguer o pensamento

Às solidões serenas

Do vasto firmamento

Buscava alívio ao fel de acerbas penas

A cujo peso a fronte amargurada

Para o chão pendia acabrunhada.

Em vão que sobre a terra estava presa

A mente aflita e o coração pesado

De angústias e tristeza

Do sofrimento ao poste estava atado,

Qual Prometeu pregado à penedia

Sofrendo eterna mísera agonia.

Em vão a tarde desfolhando rosas

Sorria no horizonte,

E murmuravam auras amorosas

A bafejar-me a fronte;

Em vão aos olhos meus se desdobravam

Do firmamento os lúcidos caminhos.

Em vão, porque da terra entre espinhos

Da fantasia as asas se entravavam,

E da tristeza o carregado véu

A minha alma roubava a luz do céu.

II

Celestes véus purpúreos

Da tarde meiga e calma,

Dizia eu entre angústias

No fundo de minha alma;

Ó leves nuvens cândidas

Que esvoaçais serenas,

Dos páramos etéreos

Celestes açucenas;

Formosos clarões róseos,

Que repousais nos montes,

Dourando aos calvos píncaros

As altaneiras frontes;

Suaves auras tépidas,

Que as faces me afagais,

E hálitos balsâmicos

Em torno me exalais;

E vós, sussurros místicos

De trêmulo arvoredo,

Rumor de fonte límpida

No côncavo rochedo;

Ó arrebóis purpúreos

Que orlais os céus brilhantes,

Cingindo a curva abóbada

De faixas cambiantes,

Às regiões angélicas

Guiai meu pensamento,

Roubai-me aos vales túrbidos

Do mundo lutulento;

Da imensidão etérea

Nos páramos serenos

Deixai vogar minha alma

Por um instante ao menos;

Levai-me à esfera límpida

Do doce devaneio

E paz suave e plácida

Vertei dentro em meu seio.

Da vida nas misérias

Lançai espesso véu,

E meu cansado espírito,

Chamai, chamai ao céu.

II

E nem o céu trajado de esplendores

Abrindo o seio límpido e tranqüilo

Misterioso asilo

A quem sofre da vida os amargores,

E nem da terra o místico remanso,

Mago silêncio que interrompe apenas

Sussurro da folhagem, que de manso

Estremece ao passar de auras serenas;

Nem o vago murmúrio intercadente

Que em frêmitos sonoros

Na voz dos ecos morre docemente,

Bem como notas de celestes coros

Perdidas pelo espaço,

Ou prece maviosa,

Que tímida interrompe a cada passo

Aos pés do altar a virgem lacrimosa,

Nada, nada podia

Arrancar meu espírito abatido

Da voragem sombria

Em que submergido

Da dor o austero braço o comprimia.

Qual a fraca avezinha se debate

Entre as malhas da rede que a tortura

E em vão as asas bate,

Erguer-se ao céu a triste em vão procura

E quando mais forceja e se exaspera,

Mais a infeliz se enleia e se lacera;

Assim entre cuidados e amarguras

Minha alma atribulada,

Se afogava no fel das desventuras

Da vida afadigada

E em vão pedia ao céu um raio apenas

De paz e de bonança,

Que lhe ameigasse as mal sofridas penas,

E lhe entreabrisse as flores da esperança.

Súbito - quando já por sobre a terra

Mais profunda mudez se derramava, -

Ouço gemer harmônico teclado

Em mórbidos arpejos,

Suave como arrulho enamorado

De pombos entre beijos, -

- E urna voz de mulher, - que voz tão linda!...

Celeste e maviosa

A meus ouvidos estremece ainda!...

Cantava uma canção triste e saudosa.

Brisa suave o adejo serenando

Em torno difundia

As endeixas, que ao longe suspirando

O eco redizia:

"Vem, saudade, doce amiga

"De minha infância feliz,

"Quero um pranto derramar

"Sobre teu negro matiz.

"Vem recordar o passado

"De uma existência querida,'

"D'um novo mundo que tive

"Quando gozei outra vida.

"Saudade, doce perfume

"De uma flor que já murchou,

"Vem reviver em minh'alma

"O que fui e o que hoje sou."

Escutando essa voz meiga e sonora

Saudando a tarde em róseos véus,

Cuidaríeis ouvir anjo que chora

Com saudades do céu.

Então minha alma da prisão terrestre

Rompeu sorrindo os enfadonhos laços,

E nas asas de um êxtase celeste

Perdeu-se nos espaços.

IV

Ó divina melodia,

És do universo magia,

És alma da criação;

És a voz da natureza,

No prazer ou na tristeza

És eco do coração.

És um eflúvio dos céus,

Ou como um sopro de Deus,

Que a terra vem afagar,

O teu inefável canto

Derrama suave encanto

No céu, na terra e no mar.

Na vaga que mansa geme,

E na folhagem que freme

Aos beijos da viração;

No bramir da ventania

Pela floresta bravia

No seio da solidão;

No perene murmurio,

Com que no grotão sombrio

A fonte gemendo está;

Nas saudosas cantilenas

Com que por tardes serenas

Se lamenta o sabiá;

E nos gorjeios suaves,

Que entoam canoras aves

Pelas sombras do pomar,

No marulho da torrente,

Que despenha-se fremente

Entre pedras a brincar,

Em tudo, que o mundo encerra,

Nos céus, no mar e na terra

Revelas o teu poder;

Com mil acentos sublimes

As harmonias exprimes

Que criou o eterno Ser.

A tua voz enche o espaço,

E nos mostra a cada passo

O poder de teu condão;

Ó divina melodia,

És do universo magia

És alma da criação.

Porém és mais que um prodígio

Quando exprimes teu prestígio

Pela voz de uma mulher,

E em toda sua grandeza

Pelos lábios da beleza

Revelas o teu poder.

Do paraíso aos umbrais

Com tuas mãos divinais

Então nos corres o véu;

E entre perfumes e luzes

A escutar nos conduzes

As harmonias do céu.

Como da caçoula ardente

Sobe o incenso recendente

Pelo templo a se perder

E entre místicos cantares

Vai pelos santos altares

Pairando se esvaecer,

Tal por ti arrebatada

Me voa a mente enlevada

Pelo infinito a pairar;

E entre gozos inefáveis

Os mistérios adoráveis

Vai do empíreo devassar.

Quando na idade primeira

Do nada Deus tirou Eva,

Bafejou-a com amor,

Pois queria fazer dela

A criatura mais bela,

Da natureza o primor.

Da cor de flores mimosas

Tingiu-lhe as faces formosas

Deu-lhe lábios de carmim;

E nos olhos de luz pura

De meiguice e de ternura

Depôs tesouros sem fim.

Deu-lhe formas sedutoras,

E graças encantadoras

No sorriso e no olhar;

Porque a mente de Deus

À imagem dos anjos seus

A quis em tudo formar.

Deu-lhe tudo - mas ainda

Para torná-la mais linda,

Mais digna de adoração

Deu-lhe uma voz de sereia

Uma voz que encanta, enleia,

Que ecoa no coração.

Ó divina melodia,

Tu és do mundo magia,

És do universo o prazer

Se em toda sua grandeza

Pelos lábios da beleza

Revelas o teu poder.

V

E éreis vós, senhora, que exaláveis

Esses trinos de mágica doçura

A cujos sons suaves, inefáveis

Fugiu minha amargura,

Como ao soprar a viração da aurora

Se esconde a ave que nas campas chora.

E nesses sons celestes

Não podíeis saber, que doce calma,

Que bálsamo trouxestes

Aos tristes sofrimentos de minh'alma.

Não sabe a flor que nasce em erma gruta

Se alguém lhe aspira o místico perfume

Nem sabe o sabiá se alguém escuta

No bosque os seus queixumes.

24 de dezembro de 1870.