O homem que viu mais longe

por Conceição Freitas, para o Correio Braziliense de 6 de setembro de 2003

Escrevi aqui, dias atrás, sobre um poema de Bernardo Guimarães (o de "Escrava Isaura") no qual ele imagina — de modo muito mais plausível que o sonho de dom Bosco — uma cidade a ser construída no ermo do Planalto Central, região que ele conhecia muito de perto. Filho de Ouro Preto, Bernardo passou parte da infância em Uberaba, de onde saía para conhecer a vastidão do Planalto Central. Não era difícil para ele, escritor, poeta, professor de retórica, de latim e de francês, juiz de direito, imaginar que aquele oceano de terra vazia pedia uma cidade.

Impressionado com o céu e a majestosa solidão da região, ele escreveu O Ermo, publicado em Cantos da Solidão, em 1852.

Do qual retiro um trecho:

(...)

‘‘Essas encostas broncas e sombrias

Serão risonhos parques suntuosos;

E esses rios, que vão por entre sombras

Ondas caudais serenos resvalando,

Em vez do tope escuro das florestas,

Refletirão no límpido regaço,

Torres, palácios, coruchéus brilhantes,’’

(...)

Há mais impressões digitais de Bernardo Guimarães por essa vasta região de chapadões. Em 1858, ele publicou O Ermitão do Muquém, relato romanceado da vida do nativo do Planalto Central, ‘‘cenas da vida dos homens do sertão, seus costumes licenciosos, seu espírito de valentia e suas rixas sanguinolentas’’, escreve Bernardo na apresentação da obra. O livro registra a história da romaria do Muquém, manifestação religiosa que se repete desde a segunda metade do século 18 no povoado próximo a Niquelândia, a 400 quilômetros de Brasília. (Em agosto passado, mais de 100 mil pessoas participaram da festa).

Era um inquieto esse Bernardo Guimarães. Quando assumiu interinamente o cargo de juiz municipal de Catalão, sudeste de Goiás, ficou escandalizado com o mau tratamento que os presos recebiam. Decidiu convocar uma sessão extraordinária do júri, mandou julgar os onze réus de uma só vez. Todos foram absolvidos e soltos imediatamente. A reação veio de pronto: o presidente da província processou Bernardo, mas a iniciativa deu em nada. Uma mudança repentina no governo deixou o escritor no cargo por mais dois anos.

Viveu períodos de penúria, que o levaram a terminar de escrever um livro às margens brancas dos jornais velhos e remetê-lo ao editor num imenso saco de aniagem. Ou de quando convidado a conhecer Dom Pedro II, quando da visita do imperador a Ouro Preto, apareceu modestíssimamente vestido. Ele e suas duas filhas, como descreve o jornal O Oriente, edição de 12 de junho de 1881: ‘‘Ele estava todo trajado de preto e as meninas traziam vestidos brancos curtos. Nem uma condecoração se via em seu peito, nem uma flor no cabelo das meninas, nem uma fita em seus vestidinhos’’.

O encontrou com o imperador entrou para a biografia do escritor como um de seus grandes momentos. Tolices de uma sociedade até hoje amarrada numa risível nostalgia monárquica. Bernardo Guimarães cantou, com a melodia da palavra escrita, o povo sertanejo, a luta abolicionista, as angústias de sua época. E imaginou uma cidade majestosa, cheia de palácios, estradas e garças, brotando neste

Cidade adivinhada