Lívia Alves Guimarães, bisneta

Pertencendo a um clã que preserva muito a narração de passagens e histórias da família, eu cresci ouvindo sobre as obras, os causos e as aventuras de Bernardo Guimarães, meu bisavô. Era Bernardo Guimarães avô materno de meu pai, João Bernardo Guimarães Alves — que também foi ótimo poeta. Porque morreu muito jovem, aos 34 anos, meu pai não teve oportunidade de se tornar um nome conhecido, sendo sua obra poética divulgada apenas entre amigos, familiares e um par de antologias de poetas mineiros. Meu pai fazia sonetos. Líricos como Natal, e satíricos, como À Corina. Na sua longa viuvez, minha mãe, Elvira, fez questão de manter viva a memória da família.

Como Bernardo, eu também nasci nas plagas mineiras, fato do qual, como verdadeira mineira, muito me orgulho, é claro. Após ter ficado viúva, minha mãe, muito jovem, teve de se mudar para São Paulo. Assim minhas três irmãs e eu crescemos em terras paulistas — coisa de que também me orgulho muito.

Como a maioria da família, gosto muito de ler: sejam os clássicos da literatura seja bula de remédio. Aprecio poesias e, naturalmente, acho as de vovô Bernardo ótimas. Ele tinha um humor especial, que transparece em muitas de suas obras.

Esta verve humorística e irônica é marca registrada de muitas pessoas da nossa família. Alguns de meus tios, como Fábio, José e Bernardo e, particularmente meu pai (todos netos de B.G.) e até eu, dizem as más línguas, temos esse jeito trocista de ver a vida e — por que não? — as pessoas...

Meu pai em especial não herdou apenas o talento poético de seu avô, mas esse humor crítico — até cáustico. Para exemplificar, deixo uma quadrinha de meu pai. Estava ele participando de uma roda de bar, com vários amigos; a bebida era farta mas — apesar dela ou talvez por ela — meu pai, não suportando mais a conversa sem sal, deu um murro na mesa, e com seu vozeirão saiu-se com essa:

Valha-me Deus que tristeza

Valha-me Deus que desgraça

Tanto "espírito" na mesa

E tanta gente sem graça.

Procurando resguardar esse espírito de família, criei meus filhos Maria Fernanda, João Bernardo e Rômulo Filho admirando Bernardo Guimarães e lendo seus livros e poesias. Nessa tarefa fui apoiada por meu marido Rômulo Guimarães — que por coincidência tem o mesmo sobrenome.

"Quem sai aos seus não degenera", diz o ditado popular. Maria Fernanda tem um traço de Bernardo Guimarães: o amor à palavra escrita, sendo ela também jornalista. João Bernardo herdou, além de parte do nome, a inclinação pelo Direito — e como seu trisavô, igualmente cursou as Arcadas. E finalmente Rômulo Filho recebeu como legado uma forte, e reconhecida, veia cômica.

Esta admiração dos meus filhos pelo vovô Bernardo acabou por contagiar todos os que entraram na família. Exemplo disto é este site idealizado pelo meu genro Paulo Roberto Lopes, renomado jornalista.

Este site tem um valor especial, pois reaviva a memória para a obra deste que é, para mim, o mais brasileiro dos escritores da fase Romântica. Bernardo Guimarães não era apenas brasileiro nos temas, mas também no jeito simples de escrever.

Para mim, suas poesias satíricas são as melhores. Adoro A Orgia dos Duendes e O nariz perante os poetas. Dentre as líricas, as que mais aprecio são Gentil Sofia e Se eu de ti me esquecer.

Era meu bisavô um excelente contador de causos, por isso, seus livros são tão gostosos de ler — ontem e hoje. Vovô Bernardo não escreve em tom de quem está escrevendo, ele conversa com o leitor. E, muitas vezes, interrompe a narrativa principal, para fazer um parênteses de uma história secundária. Justo como quem está conversando.

De toda a obra em prosa e Bernardo Guimarães, a minha predileta não é A Escrava Isaura, como a maioria pode pensar, e sim "Rosaura, a Enjeitada", que li aos 11 anos e reli inúmeras vezes, inclusive recentemente.

"Rosaura, a Enjeitada" se passa em São Paulo e, se não me engano, é o único romance brasileiro que descreve as ruas e bairros da Paulicéia antes de ela crescer e enriquecer-se com o café e a indústria.

O livro conta a história de três rapazes, estudantes de Direito no Largo de São Francisco: Aurélio, Azevedo e Belmiro. Reza a tradição familiar que Aurélio representaria o grande amigo de meu bisavô: Aureliano Lessa, Azevedo seria Álvares de Azevedo, que morreu tão cedo, e Belmiro, o próprio Bernardo.

Mas eu não desprezo A Escrava Isaura. Acho seu enredo empolgante. Li o livro várias vezes. Nunca vi a versão cinematográfica de 1929 — dizem que hoje é cult. Assisti uma vez a versão de 1949, com a Fada Santoro e Cyl Farney, e, é claro, acompanhei os capítulos mais significativos da telenovela, com Lucélia Santos.

A versão televisiva teve adaptação de Gilberto Braga, que inchou a trama com outros personagens. De um lado isso foi péssimo porque alterou a obra de um autor, corrompendo uma concepção original; mas de outro é compreensível: as telenovelas exigem esses tipos de enxertos, pois como elas têm de "durar" um longo tempo, são necessários vários subenredos.

De qualquer forma, todos nós da família ficamos muito contentes porque depois da novela A Escrava Isaura nosso querido vovô Bernardo ficou conhecido... até na China!

Certamente Bernardo Guimarães, que era pessoa muito modesta e não dava valor à consagração pública, jamais iria imaginar que a sua Escrava Isaura iria correr mundo...

São Paulo, 12 de abril de 1998