Brasília adivinhada

por Conceição Freitas, para o Correio Braziliense de 27 de agosto de 2003

Peguei uma estrada de nome Clemente Luz, o primeiro cronista de Brasília, Pero Vaz da nova capital. Percorri um inesperado trajeto, de brandas encostas e paisagens comoventes. Encontrei, por exemplo, a descrição de um pôr-do-sol e de um nascer da lua ao tempo em que Sol e Lua reinavam na nudez do horizonte. Leiam:

‘‘Não sei se vocês já viram. Mas eu vi, muitas vezes, a lua, como uma grande bola de sangue, surgir no nascente, no mesmo instante em que, no poente, como outra bola incandescente, o sol começa a se pôr. A terra fica vermelha, o planalto se cobre de uma luz misturada de sol e lua, e os corpos parecem que ficam transparentes.’’

Na mesma livraria onde encontrei Clemente Luz, garimpei a primeira antologia de poetas de Brasília, publicada pela Editora Dom Bosco em 1962. Estava eu, ainda sem saber, em outra estrada que me levaria a um lugar não menos prazeroso. Entre os poemas publicados, há um de Alphonsus de Guimaraens Filho, poeta, jornalista, procurador do Tribunal de Contas da União, que morou em Brasília de 1961 a 1972. Como a página do jornal tem hora de acabar, infelizmente não poderei publicar o Lua de Brasília por inteiro. Recorto um trecho:

‘‘lua de Brasília / a que preso estou, / lua de Goiás / que me inculca paz, / lua derramada / sobre escadarias, / lua deslembrada / de remotos dias, / lua de Brasília, / lua de Goiás, / — qual frustrado, insano / cosmonauta, vou / no teu rumo, além / da rua onde estou, / muito além de mim / aonde mais ninguém / terá ido, lua, / segundo teus passos / nos telhados úmidos, beijando-te, a espaços, / nos teus seios túmidos;...’’

Estava ainda embalada pelos efeitos dessa estrada quando nova bifurcação me apareceu. Definitivamente era um raro dia de grandes encontros, daqueles que os deuses nos oferecem de quando em vez. Agora, a trilha mergulhava na árvore genealógica dos Guimaraens até alcançar o escritor Bernardo Guimarães, autor de Escrava Isaura, tio-avô de Alphonsus.

Nessa altura, a estrada fez uma curva vigorosa para então me presentear com um poema de Bernardo Guimarães que profetiza — sabe-se lá como, porque não sou dos que crêem em predições de futuro — o surgimento de uma cidade no Planalto Central, mais de um século atrás, quando ele cruzou a região e escreveu um poema, O Ermo. Segue um trecho:

‘‘Tempo virá em que nessa valada / Onde flutua a coma da floresta, / Linda cidade surja, branquejando / Como um bando de garças na planície; / E em lugar desse brando rumorejo / Aí murmurará a voz de um povo; / Essas encostas broncas e sombrias / Serão risonhos parques suntuosos;’’

Com o devido respeito a Dom Bosco e a todos os fiéis da Santa Madre Igreja, Bernardo Guimarães adivinhou o surgimento de uma cidade no ermo do Planalto Central com muito mais clareza, com bem mais poesia que o salesiano reverenciado pelos brasilienses. Pois vejam: ‘‘O homem fraco ainda, e que hoje a custo, / Da criação a obra mutilando, / Sem nada produzir destrói apenas, / Amanhã criará; sua mão potente, / Que doma e sobrepuja a natureza, / Há de imprimir um dia forma nova / Na face deste solo imenso e belo...’’

O Homem que viu mais longe