A morte de Flávio Farnese
Musa infeliz, ah! que sinistro fado
Te cinge a fronte de funérea rama,
E entre sepulcros pranto amargurado
Hoje a chorar te chama?...
Já não te é dado mais vibrar na lira
De flores enramada
As meigas cordas, em que amor suspira,
Nem por valente vôo arrebatada
Tecer hinos de glória
Aos filhos prediletos da vitória,
Nem por tardes formosas
À sombra descantar entre os vergéis
Da natureza as cenas graciosas,
Das solidões os mágicos painéis.
Ah! não, que o gênio, que te inspira agora,
Por sobre as campas entre sombras mora.
Nem mirtos, nem rosais bordam-te as sendas;
Hoje te obriga inexorável sorte
A vaguear por entre as mudas tendas
Dos arraiais da morte.
A cada instante lúgubre ruído
De lápida, que tomba,
A teus ouvidos tétrico ribomba,
- Eterno, último adeus de um ser querido.
A cada passo um túmulo abalroas
Nessa, que trilhas, senda ltituosa.
Não mais canções, - só fúnebres coroas
Cumpre-te hoje tecer com mão saudosa,
E entre gemidos do sepulcro à borda
Estalar do alaúde a extrema corda.
Despe os louros, ó musa, e do alaúde
Arranca a última flor,
E vem comigo ao pé de um ataúde
Gemer trenos de dor.
***
Quem é, que nesse chão ali repousa
À sombra de pacíficos troféus,
Sob essa simples lousa,
Sem pompa de soberbos mausoléus?...
Que nome tão saudoso
Este arvoredo fúnebre murmura?
Que eco doloroso
Do seio dessa fria sepultura
Aos ouvidos me chega, e triste vibra
Do coração na mais sentida fibra?...
É este de Farnese
O derradeiro, gélido aposento;
E bem que sobre as cinzas não lhe pese
Custoso bronze, ou mármore opulento,
Só esse nome vale um monumento.
Que grande coração, que alma tão nobre
Perdeu-se ali tão cedo !..
Quanta esperança morta ali se encobre
Debaixo desse fúnebre lajedo?
Quanto anelo viril, que peito forte
Jaz esmagado pelos pés da morte!...
Hoje a família, a pátria, a liberdade
Do ilustre morto a ínclita memória
Pranteia com saudade
E aos confins da mais remota idade
Seu nome recomenda envolto em glória.
A larga testa de palor tingida
Era bem como lâmpada velada,
Em que a luz sagrada
Da inteligência em torno difundida
Sem ofuscar fulgia derramando
De sãs idéias o reflexo brando.
De nobre crença apóstolo extremado
Para guiar o povo entre as tormentas
O havia Deus fadado.
Do porvir pelas sendas nevoentas
O verbo do progresso ele entrevia
Nesta palavra só Democracia.
Ninguém com mais denodo desfraldara
A flâmula brilhante
Da bela causa, que lhe foi tão cara;
Ninguém mais anelante
Em liça entrou, e deu com próprio punho
De sua fé mais amplo testemunho.
Era um atleta; desd'a verde idade
Lutando sem cessar em liça aberta
Nos santos arraiais da liberdade
O vimos sempre alerta.
Era um atleta, um lidador valente
Esse, que aí jaz dormindo eternamente.
Inda no primo albor da juventude
O austero moço via com tristeza
Naufragar da nação toda a virtude
No charco da baixeza;
E embaída por pérfidos afagos
De um poder ominoso
Da corrução sorver a longos tragos
O ópio venenoso.
E o leão popular curvado ao solo
Em perro humilde e vil se convertendo,
De quem o esmaga, e lhe comprime o colo
Submisso os pés lambendo.
E os pilotos do estado em fim de contas
Do validismo à mesa embriagados
A nau já podre irem jogando às tontas
Por mares desastrados.
Via a pátria em letargo vergonhoso
Adormecida à beira de um abismo,
E a conjurar lançou-se audacioso
Tão feio cataclismo.
Dos filhos do progresso ei-lo na frente
Contra o oculto inimigo se revolta,
E ao perigo, que antolha-se eminente,
Do alarma o grito solta.
Ei-lo, que se dedica generoso
De nobre luta às escabrosas lidas;
Brande da imprensa o facho luminoso
Ante as turbas dormidas
Da indiferença na letal modorra.
Como réstia de luz, que o sol enfia
Entre as grades de lúgubre masmorra,
Da frase sua o ardor e a valentia
Do povo ao coração levou a crença,
E os gelos derreteu da indiferença.
Audaz empunha o cálamo de ferro,
E com pujante frase
Afronta a corrução, fulmina o erro,
E ataca pela base
Da autocracia o velho baluarte,
Que, em mal! - inda vigora em tanta parte.
Por seu talento másculo movida
A pluma se converte em férrea dava,
Que o servilismo e a corrução trucida,
E a sepultura ao despotismo cava.
Da inteligência na sublime arena
Muito ele pelejou;
E no torpe convício a nobre pena
Jamais, jamais manchou.
Curto na vida foi o estádio seu;
O astro refulgente,
Quando luz dardejava mais ardente,
Ao tocar no zenith se esvaeceu.
Foi curto o estádio, que correu na vida;
Foi apenas esplêndida manhã,
Em prol da pátria rápido volvida
Em glorioso afã.
Agora à sombra de incruentos louros
Tranqüilo ele repousa;
Seu nome inscrito nessa simples lousa
O recomenda aos séculos vindouros,
Enquanto nela a pátria e a liberdade
Vertem gemendo o pranto da saudade.
Descansa pois, amigo; assaz lidaste;
A vida foi-te só luta e provança;
Nem um só passo deste sem contraste;
Amigo meu, descansa.
Perdoa, se o teu sono sempiterno
Eu vim turbar no fúnebre jazigo...
Meu pranto aceita de pesar eterno,
E adeus, querido amigo...
Farnese foi o fundador do jornal carioca "Atualidade",
onde B.G. trabalhou de 1859 a 1860.