Morte de Gonçalves Dias
Canto elegíaco
Que fado o teu, Gonçalves!... que desdita!...
Ai! quantas agonias
Vieram conturbar-te a mente aflita
Nos derradeiros dias,
Quando no meio das tormentas bravas
O teu formoso espírito exalavas!...
Qual alcion dormindo sobre o ninho
Das vagas balouçado,
Às vagas entregaste - tão sozinho
O teu corpo alquebrado,
E vinhas ver, atravessando os mares,
Pela última vez teus pátrios lares.
Cruel doença as fontes te secava
Da débil existência,
E já quase do vaso se entornava
Essa imortal essência,
O sopro, que dos lábios de Deus sai,
E que, quando lhe apraz, a si retrai.
Ah! que saudade, que palpite ansioso
No peito lhe ofegava,
Quando pelo horizonte nebuloso
As praias lobrigava
Da doce pátria, e os coqueirais viçosos,
Que de longe acenavam-lhe saudosos.
Já da vida, que esvai-se, o extremo alento
No peito lhe lateja;
Mas à luz da esperança ainda um momento
Sua alma se espaneja,
Que já lhe trazem virações fagueiras
Os aromas da terra das palmeiras.
Ei-la! - do ocaso lá na linha extrema,
A pátria; ei-la acolá!...
E os palmares, por onde vaga a ema
E canta o sabiá!
Ei-la, a formosa terra dos amores,
Ninho viçoso de verdura e flores.
Ah! não permita o céu que ele sucumba
Sem ver a pátria amada!
Possa ele vê-la, embora encontre a tumba
Por seus pés cavada;
Ver a pátria, e morrer beijando a terra,
Que os ossos de seus pais no seio encerra,
Ai! uma hora, ó Deus! uma só hora
Deixa-o ainda viver;
Deixa-o na doce pátria, por quem chora,
Entre os seus ir morrer,
Não pereça tão junto aos lares seus,
Sem poder lhes dizer o extremo adeus!
II
Mas da borrasca as núncias temerosas,
Densas nuvens, se estendem pelos céus,
E o mar levanta em vagas alterosas
Medonhos escarcéus.
Das ondas e dos ventos embatido,
Qual bravio corcel,
Que as rédeas arrebenta de insofrido,
O trépido batel,
Ora do firmamento segue o rumo,
Ora aos abismos quase desce a prumo.
Por entre os estertores da borrasca
O navio aos boléus estala e range;
O medonho tufão, que os mastros lasca,
Os mais valentes coraçoes confrange.
Bem perto em fúria o mar ali rebenta
Entre as pontas de horríficos abrolhos,
E da morte a figura macilenta
Do nauta surge aos olhos.
Mas Gonçalves não ouve a orquestra irada,
Em que convulsa a natureza arqueja;
Já sobre sua fronte laureada
Da morte o sopro adeja.
A doença, e o oceano turbulento
A nobre, infeliz vítima disputam,
E, para lhe arrancar o extremo alento,
Como à porfia lutam.
E enquanto fora o furacão restruge
E quebra ao lenho o mastro escalavrado,
Enquanto em torno o mar referve e ruge,
Mostrando ao nauta o abismo escancarado,
No estreito camarim
Dentro e fora de si o bardo sente,
Que o destino inclemente
Dos dias seus está marcando o fim;
E entre as cenas horríveis, que o compungem,
Sozinho, abandonado, o ilustre vate
De duas mortes, que de perto o pungem,
Sofre o tremendo embate.
Contra o furor insano da tormenta
Labuta em vão o soçobrado esquife,
Já nos parcéis esbarra, e enfim rebenta
Nas pontas do recife;
E navio e poeta o abismo torvo
Num só momento os engoliu d'um sorvo.
Entre os roncos medonhos da procela,
Liberta já da mórbida prisão,
Voou ao céu aquela alma tão bela
Nas asas do tufão.
Da tempestade o brado pavoroso
Foi seu hino de morte;
O oceano o sepulcro glorioso,
Que deparou-lhe a sorte.
Sobre ele estende o pego tormentoso
Mortalha d'alva espuma;
E assim do vate o fado lastimoso
Na terra se consuma.
E a vaga, que o tragou no bojo horrendo,
Estourando nas broncas penedias,
Veio na praia murmurar gemendo:
- Morreu Gonçalves Dias! -
III
E tão perto, - na extrema do horizonte -
A pátria lhe sorria;
E para lhe adornar a ínclita fronte
Novos lauréis tecia.
Ela ansiosa e sôfrega, esperava,
E às vagas do oceano perguntava
Por seu filho querido;
E no meio do horríssono bramido
Das ondas irritadas,
Aos uivos das rajadas
Estas sentidas vozes exalava:
"'- Onde te foste, filho muito amado?...
Ah! por que deixas o teu pátrio ninho,
E a longes terras vais afadigado,
Tão fraco, tão sozinho,
Longe dos lares teus buscar descanso
Que só podes achar no seu remanso?
Saudoso sabiá destas florestas,
Que nas sombras tranqüilas te aninhavas,
E nas ardentes sestas
Com teus lindos gorjeios me embalavas,
Saudoso sabiá, por que fugiste?
Por que voaste além?
Por que deixaste tão sozinha e triste,
Quem tanto te quer bem?
Por que deixaste, filho aventureiro,
De tua mãe o tépido regaço,
Para entregar ao pego traiçoeiro
O teu porvir escasso,
Trocando a paz serena de teus lares
Pelo baloiço perenal dos mares?
Temerário alcion, que destas plagas
Mudaste o ninho em hora de bonança,
Por que confias às traidoras vagas
Tua última esperança?
Vem, que te aguardo aqui saudosa, inquieta,
Corre, corre a meu seio;
Vem, não mais te demores, meu poeta,
Que mata-me o receio,
Cruel receio de não ver-te mais,
Nem mais ouvir teus cantos imortais.
Vem pendurar à sombra da palmeira
Inda uma vez a tua errante maca;
E enquanto d'alva praia pela beira
Ferve e ronca a ressaca,
Enquanto a brisa tépida farfalha
No tope dos coqueiros,
E pelos ares mansamente espalha
Aromas lisonjeiros,
Canta ainda uma vez essas cantigas,
Que fazem recordar eras antigas.
Suave alívio ao teu padecimento
Só podes encontrar no seio meu;
Ao teu peito alquebrado dar alento
Quem pode senão eu?
Ainda aqui meneiam as palmeiras
Seus trêmulos cocares;
E as viçosas, floridas laranjeiras
Suave aroma espalham pelos ares;
A luz destes formosos horizontes,
O eco destas fontes
Ainda te farão cismar de amores,
E da lira extrair aqueles hinos
Doces, enlevadores,
Quais só sabem cantar coros divinos.
Destes vergéis entre as virentes comas,
Onde perene a primavera brilha
Alentarei teu peito com aromas
De jambo e de baunilha,
E para acalentar teus sofrimentos
Saudoso sabiá,
A tardinha com lânguidos acentos
Teu sono embalará.
Mas ah! se não me é dado ver-te mais,
Nem mais ouvir teu canto;
Se mais não podes escutar meus ais,
Nem enxugar meu pranto,
Ah! se já sobre a terra está marcado
O termo de teu giro,
Vem ao menos soltar, ó filho amado,
No seio meu teu último suspiro".
IV
Ele entreouvia estas doridas vozes
No meio das borrascas,
Nalma e corpo a sofrer dores atrozes
Da agonia nas vascas.
E ao rebentar de vagalhão medonho,
Aos solavancos doidos da procela,
Entre escarcéus de espuma,
Como em miragem de afrontoso sonho
Da pátria lhe sorria a imagem bela
Envolta em negra bruma.
Ele a escutava, nesse transe extremo,
A mãe, que em ais rompendo o seio terno
Mal pode soluçar o adeus supremo
Ao filho que se vai a exílio eterno.
E o bardo ilustre... ó Deus! que fatal sorte!
Que sina desastrada!
Dentro de si e fora via a morte
Erguer-se para ele duplicada;
Uma o mirrado coração gelava,
A outra a fronte augusta lhe esmagava.
Estrela errante no seu triste giro
No oceano apagou-se entre as borrascas;
Ninguém lhe ouviu o último suspiro
Da agonia nas vascas.
Nenhum jazigo os restos seus consome
Na terra dos seus pais;
Do grande vate só nos resta o nome,
E os cantos imortais.
Doou-lhe o céu inspiração divina,
Engenho alto e pulquérrimo;
Mas ah! fadara-o sua triste sina
Dos entes o - misérrimo -
V
Nem uma cruz à beira do caminho,
Nem uma cova em pobre cemitério,
Lhe permitiu o fado seu mesquinho
Por esse vasto império,
Cujas glórias cantou na lira d'ouro,
E a quem legou de glórias um tesouro.
A pátria pede um monumento ao vate
Que tanto a distinguiu,
E seus brados no peito dão rebate
Do povo que os ouviu;
Uma pedra sequer, que diga à história,
Que diga aos estrangeiros:
"- Este padrão erguemos à memória
Do primeiro dos vates brasileiros.
Mas aqui seu cadáver não repousa
Está vazia esta singela lousa.
O céu e o oceano,
Imagens do infinito, reclamaram
E para si guardaram
Os despojos do vate americano.
Do firmamento aos páramos formosos
Um nos roubou sua alma para Deus,
Outro lá nos abismos temerosos
Esconde os restos seus.
Mas se a terra seus ossos não consome
Teve em partilha a glória de seu nome."
Mas ó vergonha! ó crime!
Glória, gênio, infortúnio, nada vale
Ao poeta sublime!
Pede o pejo, e o decoro que se cale
Tão feia ingratidão.
Mas ah! não posso, não; que a meu despeito
Nos lábios ferve a voz do coração,
E rompe-me do peito,
Como um eco de horror descompassado,
Da indignação o brado.
Esses, que às pátrias glórias refratários
De um nobre povo crêm-se mandatários,
Negam uma homenagem
A quem já vive na posteridade,
A quem tem por pregão a eternidade,
E o mundo por mensagem.
Ah! registre o Brasil em seus anais
Mais este exemplo novo!
Falsos depositários desleais
Da vontade do povo
Nestes nefastos, miserandos dias,
Um simples preito ao gênio recusaram,
Ao monumento de Gonçalves Dias
Uma pedra negaram.
Neste poema, BG critica o Congresso porque este recusou-se a prestigiar
uma homenagem ao poeta Gonçalves Dias. O poema foi escrito em 1869,
cinco anos depois da morte do autor da "Canção do Exílio".