Galope infernal (balata)
Avante! corramos; por montes e brenhas
Galopa ligeiro, meu bravo corcel;
Corramos, voemos; ah! leva-me longe
Daquela infiel.
Corramos! ligeiro! quem dera pudesse
Nas asas levar-me veloz furação;
E longe arrojar-me dos sítios que viram
Tamanha traição.
A noite vai negra, rebrama a tormenta;
E nem um só astro na esfera reluz;
Só rubros lampejos abismos aclaram
Com lobrega luz.
A chuva em torrentes tombando ruidosa
Nas grotas profundas atroa a montanha;
Dos ventos, que uivam da selva nas brenhas,
A fúria se assanha.
Vagueiam na selva noturnos duendes;
Fosfóricos lumes nas trovas ondulam,
E vagos espectros com voz agoureira
Nas brenhas ululam.
A noite vai negra, tremenda... que importa;
Mais negra é a noite do meu coração,
E as fibras lhe açouta de atrozes ciúmes
O rijo tufão.
Corramos! voemos! que o solo, em que piso,
Requeima-me as plantas; este ar me envenena;
Oh! sim, que estas plagas tornaram-se inferno
Desta alma, que pena.
Nem mais um suspiro, nem mais um olhar
À terra odiosa volvamos atrás.
O terra maldita, nem vivo nem morto
Jamais me verás.
E tu, que eu amava, mulher impudente,
Que com tons sorrisos, com teu olhar terno,
Com lábios de um anjo sopraste-me n'alma
As chamas do inferno;
Que todo um passado de amor e ventura
No charco da infâmia som pejo arrojaste,
E o meu porvir todo co'as mãos impudicas
Num dia esmagaste;
Oh! fica-te embora, de mim bem distante,
De teus desvarios carpindo a vergonha,
Ou desses teus lábios em peitos incautos
Cuspindo a peçonha.
Sim, fica-te embora: quem sabe no mundo
Quão mísera sorte te espera por fim;
Talvez que algum dia no abismo do opróbrio
Suspires por mim.
Suspires embalde; nem nunca tu saibas
Aonde me arrojam meus tristes destinos;
E possam ralar-te remorsos eternos
De teus desatinos.
E possam... mas não; eu quero de todo,
De todo esquecer-me que um dia te vi;
Nem para execrar-te, não quero mais nunca
Lembrar-me de ti.
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Avante, ginete! por entre as rajadas
Da chuva em torrentes, que os vales ensopa,
Por entre os abismos, à luz dos relâmpagos,
Galopa, galopa...
II
Já dos ventos a fúria se aplaca,
E dispersas as nuvens desfilam:
Os coriseos mais raros fuzilam,
E mais longe retumba o trovão,
Pouco e rouco serena-se a esfera,
E o negrume se esvai da procela;
Linda luz do uma pálida estrela
Verte a espaços furtivo clarão.
Eia voa! mais claro o caminho
Tens agora, valente corcel;
Para longe daquela infiel,
Eia vamos correndo sem fim.
Eu quisera, entre mim e essa ingrata
Interpondo montanhas e mares,
Ir morrer em ignotos lugares,
Onde nunca soubesse de mim.
Minhas plantas se cravam no solo
Com raízes de eterno liame,
Se jamais com saudades da infame
Para trás o meu rosto voltar.
Fiquem logo sem luz estes olhos,
E jamais suas trevas se aclarem,
Se um momento sequer procurarem
Só o fumo entrever de seu lar.
Mas vejo clarão tímido
Por sobre aqueles montes...
O pálido crepúsculo
Clareja os horizontes.
É ela, a aurora cândida,
Que vem lá no alto céu,
Varrendo as trevas lúgubres
Co'a ponta de seu véu.
Como respiram vividas
As auras da manhã!.
Detém-te, ó corcel valido,
Modera tanto afã.
Enquanto surge plácida
Do dia a luz primeira,
Refreja um rouco os impetos
Da férvida carreira.
Da noite as sombras pávidas
Dissipa o claro dia;
Só para esta alma túrbida
Não há mais alegria.
Sucede a manhã fúlgida
Da noite ao furacão;
Tu só, não tens alívio,
Meu triste coração!
III
Que serena manha!... que aura tão pura
Vem me afagar!..
Por este vale ameno discorramos
Mais devagar,
Meu brioso corcel; já bem cansado
Deves te achar.
Que doce luz! que aromas não respira
A viração!
A vida, o amor sorri por toda parte
Na criação.
E só eu gemo, só de dor suspira
Meu coração.
Nem luz, nem vida... reina dentro dele
Perpétua noite;
Sofrendo sem cessar do atroz ciúme
O eterno açoute.
Meu pobre coração não acha abrigo
Em que se acoute.
A noite de tormentas e de horrores
Mais o enfurece.
A manhã com seus risos, suas flores
Dele escarnece.
Nem no céu, nem na terra ninguém dele
Se compadece.
IV
Eis-nos já bem distantes; - já bem longe,
Lá por detrás dos derradeiros montes
Sumiram-se a meus olhos
Daquela infaine os turvos horizontes.
Agora sim; aqui por estas veigas
Podemos repousar,
Mais livre o coração aqui respira,
É mais puro este céu; mais leve o ar,
Que nestes campos gira.
Meu valente corcel, resfolga livre
Pelo viçoso esmalte da campina,
Enquanto exalar busco o voraz fogo,
Que esta fronte me queima e desatina.
Possam as ansias, que me fervem n'alma
Em delíroso afã,
Um momento acalmar-se nestas sombras
Ao benfazejo sopro da manhã.
Como flocos dc alvíssimo algodão
Névoas sutis dos vales se despegam,
Doces aromas os vergéis espíram;
Pelo dorso dos montes, que fumegam,
Róseos vapores lúcidos se estiram.
Renasce a vida; amor respira em tudo,
Das meigas pombas no lascivo arrulho,
E do regato, que veloz deriva,
No trépido marulho.
A flor que se abre, as asas embalsama
Da aura fagueina, que lhe beija o seio,
E as avezinhas cantam seus amores
Dos arvoredos no folhudo enleio.
Tudo é feliz, e de prazer exulta
No seio desta amena solidão;
E que faço eu aqui, odioso espectro
No meio do festim da criação?
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E é possível, ó céus! - que aquela infida
Com as mão sem pudor num só momento
Tão formoso destino transformasse
No mais atroz tormento?
É possível?... - quem sabe!... tantas vezes
Fantasmas vãos a mente nos desvairam...
E tantas vezes nos delírios da alma
Estranhos sonhos pairam...
Louco que eu sou! - Iigeiras aparencias
Vão talvez me fazer cego e sem tino
Romper por minhas mãos a áurea cadeia
Do mais feliz destino!
E ela! quem sabe, na passada noite
Em quanta angústia lhe arquejara o peito,
E que de pranto ardente não vertera
No solitário leito!
Talvez agora ao peso dos cuidados
Fende-lhe a fronte em mísero quebranto,
E embalde estende pelas sendas ermas
Olhos cansados de vigília e pranto.
Já de esperar embalde fatigada
Se debruça sozinha na janela,
E em desespero com as mãos convulsas
As tranças arrepela.
Oh! que este céu tão puro, estes perfumes,
Esta amorosa sombra, esta frescura
Tudo isto me diz que ela me amar
Esta aura, que tão meiga aqui murmura,
É ela que me chamar
Aquela nuvem branca, que lá surge
Pairando nos espaços
Sobre os saudosos montes que hei deixado,
É ela ainda, que me estende os braços.
Ó doce amada
A ti já corro:
Que por ti morro
Já de saudade.
Mais do que nunca
Hoje te adoro,
E por ti choro
Na soledade.
Maldito instante
De atroz loucura,
Em que a fé pura
Te suspeitei.
Qual fosse a causa
De tal desdita,
- oh! acredita -
Nem mesmo eu sei.
Foi o delírio
De um pesadelo,
Que num vão zelo
Me atormentou.
Porém findou-se
Como a tormenta,
Que violenta
No céu passou.
Quais vão fugindo
Densos negrumes,
Os meus ciúmes
Foram-se assim.
A ti já corro,
Vôo a teus braços,
Atar os laços
De amor sem fim.
V
De novo corramos, por montes e brenhas,
Meu bravo ginete, galopa ligeiro,
O tu, que me hás sido, na dor, nos prazeres,
Fiel companheiro,
Resvala qual sombra, que rápida foge,
Sibilem-te os ventos nas crinas de prata;
Devora o caminho, veloz corno a folha
Que o vento arrebata.
Eu quero já vê-la, fazer em seus braços
De meus desvarios fiel confissão,
Depois, entre beijos, dos lábios divino,
Ouvir-lhe o perdão.
O sol no zenith seus fogos dardeja
E os ares abrasa com ímpio furor!...
Que importa! mais vivo me ateia no peito
O fogo de amor.
Oh! não esmoreças; - tu bem sabes como
Teus nobres esforços por ela são pagos;
De tuas fadigas por prêmio te esperam
Carinhos e afagos.
Na testa alisando-te as crinas ebúrneas
A mão tão sabida por fim sentirás;
E sob seus dedos a fronte briosa
Feliz curvarás.
Tu és meu amigo; muito ela te estima;
No pátio ela mesma pensar-te virá;
E o braço mimoso lançando-te ao colo
Ração te dará.
Não lembras-te ainda da noite ditosa,
Em que a roubamos de infame tutela;
E longe voaste, veloz como o vento
Comigo e com ela?..
O vento aos ouvidos- zunia-me agudo,
Voando-te as crinas meu rosto açoutavam;
No chão, que fugia qual rápido arroio,
Teus pés mal tocavam.
Então como agora, amigo, tu foste
Em nossos trabalhos valente e fiel;
Oh! não esmoreças; corramos ligeiro,
Meu bravo corcel.
Corramos, voemos, que de impaciência
Eu morro em caminho, se mais me demoro;
Corramos, voemos; oh! leva-me aos braços
Daquela que adoro.
VI
E o cavaleiro já de sua bela
À porta se apeava;
E enquanto, tão feliz! nos braços dela
De amor se saciava,
O seu pobre corcel, que ninguém zela.
Exânime expirava.