Dilúvio de Papel - um sonho de um jornalista poeta

I

Que sonho horrível! - gélidos suores

Da fronte inda me escorrem;

Eu tremo todo! - crebros calafrios

Os membros me percorrem.

Eu vi sumir-se a natureza inteira

Em pélago profundo;

Eu vi, eu vi...acreditai, vindouros,

Eu vi o fim do mundo!...

E que fim miserando!... que catástrofe

Tremenda e singular,

Como nunca os geólogos da terra

Ousaram nem sonhar.

Não foram, não, do céu as cataratas,

Nem as fontes do abismo,

Que alagando este mundo produziram

Tão feio cataclismo.

Nem foi longo cometa amplo-crinito,

Perdido nos espaços,

Que sanhudo investiu nosso planeta,

E o fez em mil pedaços.

E nem tão pouco, em roxas labaredas,

Ardeu como Gomorra,

Ficando reduzido a lago imundo

De flutuante borra.

Nada disso: - porém cousa mais triste

Senão mais temerosa,

Foi a visão, que a mente atormentou-me,

A cena pavorosa.

II

Já o sol se envolvia em seus lencóis

De fofas nuvens, resplendentes d'ouro,

Como o cabelo de um menino louro,

Que se enrosca em dourados caracóis.

Dos róseos arrebóis

A luz suave resvalava apenas

Nos topes dos outeiros

E dos bosques nas cúpulas amenas.

E eu, que os dias sempre passo inteiros,

Rodeado de folhas de papel,

Que de todos os cantos aos milheiros

Noite e dia me assaltam de tropel,

Qual o gafanhotal bando maldito

Com que Deus flagelou o velho Egito:

eu que vivo de um pálido aposento

Na lôbrega espelunca,

Não vendo quase nunca

Senão por um fresta o firmamento,

E as campinas, e os montes e a verdura,

Flóreos bosques, encanto da natura;

Das vestes sacudindo

A importuna poeira, que me encarde,

Longe das turbas, num recesso lindo

Fui respirar os bálsamos da tarde.

Ao pé de uma colina,

Ao sussuro da fonte, que golfeja

Sonoro e cristalina,

Fui-me sentar, enquanto o sol dardeja

Frouxos raios por sobre os arvoredos,

E da serra nos últimos fraguedos,

Meu pensamento longe se embrenhava

Em páramos fantásticos,

E do mundo e dos homens me olvidava,

Sem ter medo de seus risos sarcásticos.

Mas, ó surpresa!... ao tronco recostada

De um velho cajueiro vi sentada,

De mim não mui distante,

Uma virgem de aspecto vislumbrante;

Sobre os nevados ombros lhe tombava

A basta chuva do cabelo louro,

E a mão, como a descuido, repousava

Por sobre uma harpa de ouro

Engrinaldada de virente louro.

Cuidei que era uma estátua ali deixada

Que em noite de tremendo temporal

Pela fúria dos ventos abalada

Tombou do pedestal.

Mas o engano durou só um momento;

Eu a vi desdobrar o ebúrneo braco,

E percorrendo as cordas do instrumento

De malífluas canções encher o espaço.

E ouvi, cheio de espanto,

Que era a musa, que a mim se endereçava

Com mavioso canto,

E com servero acento, que inda abala

Té agora o meu peito, assim cantava,

- Que a musa canta sempre, e nunca fala.

III

CANTO DA MUSA, RECITATIVO

Que vejo? junto a meu lado

Um desertor do Parnaso,

Que da lira, que doei-lhe

Faz hoje tão pouco caso,

Que a deixa pendurada numa brenha,

Como se fora rude pau de lenha?!

Pobre infeliz; em vão lhe acendi n'alma,

De santa inspiração o facho ardente;

Em vão da glória lhe acenei co'a palma,

A nada se moveu esse indolente,

E de tudo sorriu-se indiferente.

Ingrato! ao ver-te, sinto tal desgosto,

Que fico possuída de ruim sestro,

Me sobe o sangue ao rosto;

E em estado, que até me falta o estro,

Em vão estafo os bofes,

Sem poder regular minhas estrofes.

Por que deixaste, desditoso bardo,

As aras, em que outrora

De tuda alma queimaste o puro incenso?

Como podes levar da vida o fardo

Nesse torpor, que agora

Te afrouxa a mente, e te anuvia o senso,

E as flores desprezar de tua aurora,

Ricas promessas de um porvir imenso?

Nossos vergéis floridos

Trocas por esse lúgubre recinto,

Onde os dias te vão desenxabidos

Em lânguido marasmo;

Onde se esvai quase de todo extinto,

O fogo do sagrado entusiasmo;

Onde estás a criar cabelos brancos

Na lide ingloriosa

De alinhavar a trancos e a barrancos

Insulsa e fria prosa!

ÁRIA

Pobre bardo sem ventura,

Que renegas tua estrela;

- Oh! que estrela tão brilhante!

Nem tu merecias vê-la!

Pobre bardo, que da glória

Os louros calcas aos pés,

Deslembrado do que foste,

Serás sempre, o que tu és?

Já não ouves esta voz,

Que te chama com amor?

Destas cordas não escutas

O magnético rumor?

Nenhum mistério decifras

No rugir deste arvoredo?

Esta fonte, que murmura

Não te conta algum segredo?

Não entendes mais as vozes

Destes bosques, que te falam,

No rumorejo das folhas.

E nos perfumes que exalam?

Nesta brisa que te envio

Não sentes a inspiração

Roçar-te pelos cabelos,

E acordar-te o coração?

Não vês lá nos horizontes

Uma estrela refulgir?

É a glória, que rutila

Pelos campos do porvir!

É ela, que te sorri

Com luz vívida e serena;

E com sua nobre auréola

Lá do horizonte te acena.

IV

Estes acentos modulava a musa

Com voz tão maviosa,

Qual borbotando geme de Aretusa

A fonte suspirosa,

Da Grécia os belos tempos recordando,

Que já no esquecimento vão tombando.

Encantada de ouvi-la, a mesma brisa

O vôo suspendeu;

E o travesso regato de seu curso

Quase que se esqueceu.

Os bosques aos seus cantos aplaudiram

Com brando rumorejo;

E o gênio das canções, na asa das auras,

Mandou-lhe um casto beijo.

Enquanto a mim, senti correr-me os membros

Estranho calafrio;

Mas procurei chamar em meu socorro

Todo o meu sangue-frio.

Qual ministro de estado interpelado,

Não quis ficar confuso;

E da parlamentar nobre linguaguem

Busquei fazer bom uso.

Como homem que entende dos estilos,

Impávido me ergui,

Passei a mão na fronte, e sobranceiro

Assim lhe respondi:

V

Musa da Grécia, amável companheira

De Hesíodo, de Homero e de Virgílio,

E que de Ovídio as mágoas consolaste

Em seu mísero exílio;

Tu, que inspiraste a Píndaro os arrojos

De altiloqüentes, imortais canções,

E nos jogos olímpicos lhe deste

Brilhantes ovações;

Tu, que a Tibulo os hinos ensinaste

De inefável volúmpia repassados,

E do patusco Horácio bafejaste

Os dias regalados;

Que com Anacreonte conviveste

Em galhofeiro, amável desalinho,

Entre mirtos e rosas celebrando

Amor, poesia e vinho;

Que tens a voz mais doce que a da fonte

Que entre cascalhos trépida borbulha,

Mais meiga que a da pomba que amorosa

Junto do par arrulha;

E também , se te apraz, tens da tormenta

A voz troante, o brado das torrentes,

O zunir dos tufões, do raio o estouro,

O silvo das serpentes;

Tu bem sabes, que desde minha infância

Rendi-te sempre o culto de minh'alma;

Ouvi-te as vozes e aspirei constante

A tua nobre palma.

Mas, ah!... devo eu dizer-te?... o desalento

N'alma apagou-me a inspiração celeste,

E fez cair das mãos esmorecidas

A lira que me deste!...

Peregrina gentil, de que te serve

Andar vagando aqui nestes retiros,

Na solidão dos bosques exalando

Melódicos suspiros?...

Não vês que o tempo assim perdes embalde,

Que tuas imortais nobres canções

Entre os rugidos, abafadas morrem,

Dos rápidos vagões?

Neste país de ouro e pedrarias

O arvoredo de Dáfnis não medra;

E só vale o café, a cana, o fumo

E o carvão de pedra.

Volta aos teus montes; vai volver teus dias

Lá nos teus bosques, o rumor perene,

De que povoa as sombras encantadas

A limpida Hipocrene.

Mas se desejas hoje alcançar palmar,

Deixa o deserto; exibe-te na cena;

Ao teatro!... lá tens os teus triunfos;

Lá tens a tua arena.

Tu és formosa, e cantas como um anjo!

Que furor não farias, que de enchentes,

Quanto ouro, que jóias não terias,

E que reais presentes!

Serias excelent prima-dona

Em cavatinas, solos e duetos:

E ajustarias de cantar em cena

Somente os meus libretos.

Se soubesse dancar, oh! que fortuna!

Com essas bem moldadas, lindas pernas,

Teríamos enchentes caudalosas

Entre ovações enternas.

Em vez de ser poeta, quem me dera,

Que me tivesse feito o meu destino

Pelotiqueiro, acróbata, ou funâmbulo,

Harpista ou dançarino.

Pelos paços reais eu entraria

De distinções e honras carregado,

E pelo mundo inteiro o meu retrato

Veria propagado.

E sobre minha fronte pousariam

C'roas aos centos, não de estéril louro,

Como essas que possuis, mas de maciças,

Brilhantes folhas de ouro.

Esse ofício, que ensinas, já não presta;

Vai tocar tua lira emoutras partes;

Que aqui nestas paragens só tem voga

Comércio, indústria e artes.

Não tem aras a musa; - a lira e o louro

Já andam por aí de pó cobertos,

Quais vãos troféus de um túmulo esquecido

Em meio dos desertos.

Ó minha casta, e desditosa musa,

Da civilização não estás ao nível;

Com pesar eu to digo, - nada vales,

Tu hoje és impossível.

VI

De santa indignação da musa ao rosto

Rubor celeste assoma;

De novo a lira, que repousa ao lado,

Entre seus braços toma.

E essa lira, inda agora tão suave,

Desfere voz rouquenha,

Desprendendo canções arripiadas

De vibração ferrenha.

Eu julguei que escutava entre coriscos

Troar a voz do raio;

Em pávido desmaio

Tremem os arvoredo;

De medrosos mais rápidos correram

Os trépidos regatos, e os rochedos

Parece que de horror estremeceram.

"Maldição, maldição ao poeta,

Que renega das musas o culto,

E que cospe o veneno do insulto

Sobre os louros da glória sagrados!

"Ao poeta, que em frio desânimo

Já descrê dos poderes da lira,

E que à voz que o alenta e inspira,

Se conserva de ouvidos cerrados!

"Maldição ao poeta, que cede

À torrente do século corrupto,

E nas aras imundas de Pluto

Sem pudor os joelhos inclina!

"Que com cínico riso escarnece

Dos celestes acentos da musa,

E com tosco desdém se recusa

A beber da Castália divina.

"E agora, ó descrido poeta,

Que o alaúde sagrado quebraste,

E da fronte os lauréis arrancaste

Qual insígnia de ignóbil baldão,

"Já que a minha vingança provocas,

Neste instante tremendo verás

Os terríveis estragos que faz

A que vibro, fatal maldição!"

VII

Calou-se a musa, e envolvida

Em tênue vapor de rosa,

Qual sombra misteriosa

Nos ares se esvaeceu;

E de aromas divinais

Todo o éter recendeu.

Qual zunido do látego vibrado

Por mãos de algoz cruento,

Nos ouvidos troou-me aquele acento,

E me deixou de horror petrificado.

Já ia arrependido aos pés prostrar-me

Da irritada, frenética deidade,

Cantar-lhe a palinódia, e em triste carme

Pedir-lhe piedade!...

Em vão eu lhe bradava: "Musa, ó musa!

Não me castigues, não; atende, escusa

A minha estranha audácia;

Um momento isso foi de irreflexão,

Em que não teve parte o coração,

E não serei mais réu por contumácia."

Mal dou um passo, eis no mesmo instante

Encontro por diante

Jornal imenso de formato largo,

Aos meus primeiros passos pondo embargo.

Vou desviá-lo, e em sua retaguarda

Encontro um Suplemento;

Porém, pondo-me em guarda

Para a direita opero em movimento,

E encontro frente a frente o Mercantil.

Para evitá-lo esgueiro-me sutil,

Buscando flanqueá-lo, e vejo ao lado

O Diário do Rio de Janeiro

Que todo desdobrado

Ante mim se apresenta sobranceiro;

Com brusco movimento impaciente

Me volto de repente

E quase que me achei todo embrulhado

No Diário do Rio Oficial.

Então compreendi toda a extensão

E força do meu mal,

E o sentido satânico e fatal

Que encerrava da musa a maldição.

Eis-me pelos jornais de todo o lado

Em assédio formal engaiolado!

Assédio, que depois foi um Vesúvio,

Que arrojou das entranhas um dilúvio.

Porém o sangue-frio inda não perco,

Co'a ponta de bengala

Romper procuro o cerco

Que obstinado em torno se me instala.

Sobre o inimigo intrépido me atiro;

Brandindo uma estocada

Varo o Jornal, e mortalmente o firo;

E de uma cutilada

Denodado rasguei de meio a meio

O Mercantil e o Oficial Correio;

Co'as botas ao Diário faço guerra,

E debaixo dos pés o calco em terra.

Mas ai de mim! em batalhões espessos,

Ao longe como ao perto,

Resistindo a meus rudes arremessos

O inimigo rebenta em campo aberto.

Debalde lhes desfecho denodado

Mil golpes repetidos;

Debalde vou deixando os chão coalhado

De mortos e feridos.

E quanto mais o meu furor se assanha,

Mais a coorte cresce e se arrebanha!

Bem como nuvem densa,

Eu veio chusma imensa

De folhas de papel, que o espaço coalham,

Que lépidas farfalham,

Que trêmulas chocalham,

Nos ares se tresmalham,

E sobre a fronte passam-me, e repassam,

E em contínuo vórtice esvoaçam.

Aturdido procuro abrir caminho,

Demandando o pacífico aposento,

Onde refúgio encontre a tão mesquinho

E mísero tormento.

E espreitando a custo pelos claros,

Que entre as nuvens da espessa papelada,

Já me luziam a raros,

Procuro orientar-me pela estrada,

Que me conduza à casa suspirada.

E através das ondas, que recrescem

A cada instante, e os ares escurecem,

De Mercantis, Correios e Jornais,

De Ecos do Sul, do Norte, de Revistas,

De Diários, de Constitucionais,

De Coalições, de Ligas Progressistas,

De Opiniões, Imprensas, Nacionais,

De Novelistas, Crenças, Monarquistas,

De Mil Estrelas, Íris, Liberdades,

De mil situações, e Atualidades;

Através de Gazetas de mil cores,

De Correios de todos os países,

De Crônicas de todos os valores,

De Opiniões de todos os matizes,

De Ordens, Épocas, Nautas, Liberais,

Do Espectador da América do Sul,

De Estrelas do Norte, e outros que tais,

Que me encobrem de todo o céu azul,

A custo rompo, e chego esbaforido

Ao sossegado albergue, e precavido

A porta logo tranco,

E de um só arranco

Com as escadas íngremes invisto.

Mas! oh! desgraça! oh! caso não previsto!

As folhas entre as pernas se embaralham,

E todo me atrapalham,

E quase de uma queda me escangalham.

Mas salvei-me sem risco, e subo ao quarto

Do meu repouso, e onde me descarto

De tudo que me zanga e me atrapalha.

Cansado já do excesso

De golpe me arremesso

Sobre o colchão de fresca e fofa palha;

Mas apenas encosto na almofada

A fronte afadigada,

Eis começa de novo o atroz vexame;

Como importunas vespas,

De folhas me acomete novo enxame,

Zumbindo pelo ar co'as asas crespas,

Agravando à porfia o meu martírio

A ponto de me pôr quase em delírio.

Já das gavetas

E dos armários

Surgem gazetas,

Surgem diários;

Uns do tablado

Lá vêm subindo,

Ou do telhado

Descem rugindo;

Dento da rede

Sobre o dossel,

Pela parede,

Tudo é papel.

Folhas aos centos

Pare a canastra,

E o pavimento

Delas se alastra.

Té as cadeiras

E os castiçais,

E escarradeiras

Parem jornais.

Saem do centro

Dos meus lencóis,

E até de dentro

Dos uri.....

Já me sentia quase sufocado

Do turbilhão no meio,

E já tendo receio

De ficar ali mesmo supultado,

Para sair de trance tão amargo

Resolvi-me a de novo pôr-me ao largo.

Salto da cama, rodo pela escada

E procuro safar-me da rascada,

Já não andando,

Porém nadando

Ou mergulhando

Co'esse quinto elemento em guerra crua.

Cheguei enfim à rua

Que de papel achei toda imundada!

E bracejando

Espernegando

Entrei em luta acerba

Contra a enchente fatal, que me assoberba,

Até que o muito custo surjo à tona

Do horrendo turbilhão

Que túrbido se entona

E no mundo se arroja de rondão.

Às vagas meto o ombro,

Até achar dos céus a claridade.

Oh! céus! que cena horrível!oh! que assombro!

Em todo o seu horror e majestade

A mais triste catástrofe contemplo,

De que jamais no mundo houver exemplo,

Fiquei transido de terror mortal,

Pois vi que era um dilúvio universal.

Das bandas do Oriente

Avistei densas nuvens conglobadas,

Que sobre o americano continente

Arrojavam camadas e camadas

De fofas papeladas.

E lá vinha de Times nuvem densa

Com um sussuro horrendo

No ar as pandas asas estendendo,

Derramando no mares sombra imensa.

E após vinha em vastíssima coorte

O País, A Imprensa, o Globo, o Mundo,

O Este, e o Oeste, o Sul, e o Norte,

Esvoaçando sobre o mar profundo,

Jornais de toda a língua, e toda sorte,

Que no hemisfério nosso vêm dar fundo,

Gazetas alemãs com tipos góticos,

E mil outras com títulos exóticos.

Outras nuvens, também do sul, do norte,

Mas não tão carregadas, se encaminham,

E lentas se avizinham

Com horroroso frêmito de morte.

Da tormenta fatal recresce o horror!

Até do interior

Como um bando de leves borboletas

Lá vêm surgindo lépidas gazetas,

À desastrosa enchente

Fornecer seu pequeno contingente.

Julguei que sem remédio este era o dia

Da ira do Senhor; - pois parecia,

Que se abriam o céu as cataratas

E os abismos da terra, vomitando

Em borbotões, em túrbidas cascatas,

De hedionda praga o enextinguível bando.

Enquanto esbaforido luto, e ofego

Contra as ondas, que sempre recresciam,

Já sobre o fargalhante, imenso pego

As casas abafadas se sumiam.

Em torno a vista estendo,

E vejo então, que esse dilúvio horrendo

Já tendo submergindo as baixas terras

Ameaçava os píncaros das serras.

E nem diviso barca de Noé

Que me conduuza aos cimos da Arará!

o mal é sem remédio!..já perdida

Toda esperança está!...

Mas não!...eis voga além batel ligueiro,

Os fofos escarcéus assoberbando;

Impávida e com rosto sobranceiro

Uma ninfa gentil o vai guinado,

De angélica beleza;

E vi então... que pasmo! que surpresa!

Que a dona desse nunca visto lago

Sem mais nem menos era

A ninfa linda e fera

Que ainda há pouco em um momento aziago

Aos sons de uma canção

Fulminou-me tremenda maldição.

Era-lhe barco a concha mosqueada

De tartaruga enorme,

Com engenhoso esmero trabalhada

De lavor preciosa e multiforme.

Com remo de marfim,mimoso pulso

Ao leve barco dá fácil impulso.

E enquanto fende as chocalheiras ondas

Desse pego, que me torno se lhe empola,

Vai cantando em estrofes mui redondas

Esta estranha e tremenda barcarola:

VIII

Já tudo se vai sumindo!...

Já desaparecem as terras;

Pelos outeiros e serras

Sobem ondas a granel...

E neste geral desastre

Somente a minha piroga

Ligueira sem risco voga

Sobre as ondas de papel!

Sobre estes estranhos mares,

Vova, voga, meu batel!...

Para a triste humanidade

Não resta mais esperança;

O dilúvio cresce, e avança,

Leva tudo de tropel!...

Já imensa papelada

As terras e os mares coalha;

Já o globo se amortalha

Em camadas de papel.

Mas sobre elas resvalando

Vai vogando o meu batel.

Pobre idade, testemunha

Desta pavorosa cheia

Que dos tempos na cadeia

Vê quebrar-se o extremo anel!...

Oh! século dezenove,

Ó tu, que tanto reluzes,

És o século de papel?!...

Sobre estas estranhas ondas,

Voga, voga, meu batel!...

Debaixo de tu sudário

Dorme, ó triste humanidade!

Que eu chorarei de piedade

Sobre tu fado cruel!

E ao futuro irei dizendo

Sentada na tua lusa:

- Todo o mundo aqui repousa

Sob um montão de papel! -

Meu batel, eia! ligueiro,

Voga, voga, meu batel!

IX

Calou-se, e a um golpe do ebúrneo remo

Impele a concha, que veloz desliza;

Eu nesse trace extremo,

Como quem outra esperança não divisa,

Meu afrontoso fim tão perto vendo,

À musa os braços súplices estendo.

Perdão! perdão! bradei - ; musa divina,

"Recebe-me a teu bordo; - é o teu vate,

A quem sempre tu foste o único norte,

Que entre estas fofas ondas se debate

Entre as vascas da morte."

Mas de minha fervente rogativa

Não fez caso nenhum a ninfa esquiva;

Sem ao menos a mim volver o rosto

As secas ondas corta;

Continuando a remar muito a seu gosto

Comigo nem se importa.

E ei-la que continua a cantarola

De sua endiabrada barcarola:

"Meus altares abjuraste,

Agora sofre o castigo,

Que eu não posso dar abrigo

A quem me foi infiel.

Morre em paz, infeliz bardo,

E sem maldizer teu fado

Fica pra sempre embrulhado

Nesse montão de papel!..."

Eia, rompe as secas ondas,

Voga, voga, meu batel!...

X

Fiquei aniquilado!...

Horror! horror! há nada mais cruel,

Do que morrer a gente sufocado

Debaixo de uma nuvem de papel?!

Mas eis que de repente

A mais atroz lembrança

O desespero me sugere à mente,

Que exulta em seus desejos de vingança.

Veio-me à idéia de Sansão o exemplo,

Com seus robustos braços abalando

As colunas do templo,

E sob suas ruínas esmagando

A si e aos inimigos

Para evitar seus pérfidos castigos,

"Pois bem!... já que esperança alguma temos,

O mundo, e eu com ele, acabaremos,

Mas não por esta sorte;

Morrei; mas também tu morrerás,

Ó ninfa desalmada,

Porém um outro gênero de morte

Comigo sofrerás:

A mim e a ti verás,

E a toda tua infanda papelada

Reduzidos a pó, a cinza, a nada!"

Enquanto isto eu dizia, da algibeira

Uma caixa de fósforos tirava,

ue por felicidade então trazia;

E já chama ligeira

Aqui e além lançava

Com o pequeno archote que acendia;

Eis já o voraz fogo se propaga,

Como em madura, tórrida macega,

E co'as rúbidas línguas lambe e traga

A seca papelada que fumega.

Como Hércules em cima da fogueira

Por suas prórias mãos alevantada,

Eu com serena face prazenteira

Vejo lavrar a chama abençoada.

Espesso fumo em túrbidos novelos

Os ares escurece.

E a rubra labareda, que recresce,

Já me devora as vestes e os cabelos.

Em tão cruel tortura

Horrenda me aparece

Da morte a catadura,

E a coragem de todo me falece.

"Perdão! perdão! ó musa! ai!... a teu bordo...

XI

Ainda bem, que esse quadro tão medonho

Não foi mais do que um sonho.