Idílio

...Ecce sepulchrum.

Incipit apparere...

(Virgílio)

Olha, ó querida, como é gracioso

Aquele bosquezinho,

Que ao pé daquele outeiro pedregoso

A sombra estende à beira do caminho!

À sombra da folhagem sempre viva

De uma sombria grota,

Escasso lagrimal em fio brota,

E pelas sombras tímido deriva.

Ali bem perto, as ruínas desdeixadas

De rústica mansão

Cercam rasteiras plantas enfezadas,

Painel tristonho da destruição;

Enquanto além viçosa a natureza,

Que é sempre nova, e de criar não cansa,

Vai ostentando a perenal beleza

Té onde a vista alcança,

Ao lado dos destroços das feituras

Mesquinhas das humanas criaturas.

"Sim! - vais dizer - que sítio tão formoso

Para as campestres, prazenteiras festas,

Ou para em dias de verão calmoso

Dormir à sombra nas ardentes sestas!"

Oh! possam sempre tão gentis imagens

Embalar-te na vida a alma serena,

Como bafejam tépidas aragens

O cálix da açucena.

Seja todo de luz teu horizonte;

Jamais nem leve sombra de tristeza

Lance uma nuvem nessa linda fronte,

Que tem do lírio a virginal pureza.

Mas ah! painel tão lindo

Não tenho n'alma, que me andava agora

Longe dos quadros, que te estão sorrindo,

Como longe do ocaso fulge a aurora.

Isolados em meio dos vargedos,

Aquela fonte, as sombras e o remanso

Daqueles arvoredos

Estão oferecendo almo descanso

E o suspirado asilo, que deseja

O viajor, que de cansaço arqueja.

Eu também sou cansado caminheiro,

Já bem extenuado;

Estúdio não mui longo, mas fragueiro

Da vida hei palmeado.

Após tantos suores e fadigas

Devo pensar no pouso;

Devo pensá-lo, sim! embora digas

Que inda vem longe a hora do repouso.

Porém que importa! ao pé daquele outeiro,

Debaixo do arvoredo, que na vargem

As sombras deita do caminho a margem,

Quero dormir meu sono derradeiro,

Quer soe mesmo agora,

Quer lá mais tarde, minha extrema hora.

Não quero aí nem mármores polidos,

Nem goivos, nem ciprestes;

Bastam-me aquelas árvores agrestes

Com seus ramos floridos,

E a relva humilde, e a fonte que murmura

Ao pé de minha pobre sepultura.

Nem consintas jamais que insulsos vates,

Dispensadores de tardia glória,

Em minha campa venham dar rebates

De póstuma memória.

Eu, que na vida de ovações ruidosas,

De glórias vás não procurei o incenso,

Goivos, perpétuas, nênias lagrimosas,

Morto também dispenso.

Eu cantei só por disfarçar o enfado

Do longo caminhar de peregrino;

Como cantando o mísero forçado

Busca esquecer o horror do seu destino.

Se a glória não sorriu-me aquém da tumba,

Pouco me importa essa que além retumba.

Bastam-me as flores, que ao passar da aragem

Deixem cair da árvore as madeixas

Por sobre a tosca lajem;

Nem quero nênia alguma,

Que não sejam as símplices endeixas

Que à' hora do sol posto

Ali o sabiá cantar costuma

Nas tardes saudosíssimas de agosto.

Nem permitas, que lúgubres emblemas

Cerquem de horror o leito em que repousa

Teu fido amante; nem sombrios lemas

Deixes gravar em sua pobre lousa.

Das galas mais gentis ataviada,

Em meu sepulcro brinque a natureza;

E possas sem receio ali sentada

Cismar sozinha em horas de tristeza.

Se acaso ali vier o passageiro

Matar a sede e procurar repouso,

Ao volver para a lousa olhar piedoso

Depare este letreiro:

"Cansado viajor, neste retiro

Vem descansar em paz.

Que eu não te peço mesmo um só suspiro

Pelo pobre poeta que aqui jaz.

"Dos amores foi bardo, e da beleza,

Brincou, cantou e amou.

Também sofreu, e de íntima tristeza

Endeixas soluçou,

Té que por fim, cedendo à natureza,

Dormindo aqui ficou.

Dorme também, que a sombra te convida,

Ou canta, ou ri, ou chora,

Como quiseres; mas ao ir-te embora,

Não te esqueças da plácida guarida

Que aqui achaste; e conta em tua terra

Quão lindamente um morto aqui se enterra."

E tu também, querida amiga minha,

Quando a morte quebrar tão doces laços,

Para estes sítios, pálida e sozinha,

Dirigirás teus passos.

A campa, em que o amante teu descansa,

Não seja para ti mansão de horrores;

E lá irás às vêzes, em lembrança

De nosso amor, lançar algumas flores.

Vai, sim; não tenhas medo;

Eu não te surgirei fantasma pálido,

Mudo esqueleto, inexorável, quedo,

Das campas arrastando o andrajo esquálido.

Nem ouvirás acentos doloridos

De meus manes aflitos

Orações implorar entre gemidos

E em lastimosos gritos

A revelar os lúgubres mistérios

Que se escondem no horror dos cemitérios.

Não; se eu quiser falar-te,

Da viração na voz harmoniosa

Desflorando-te o rosto cor-de-rosa

Hei de meigos segredos murmurar-te,

E sem que mesmo possas percebê-lo,

Beijar-te-ei as faces e o cabelo.

A forma tomarei de um colibri,

Ou de mimosa, vaga borboleta,

Que reflita do íris a palheta,

E pousando num ramo ao pé de ti,

Bem limpo da poeira do jazigo,

Virei de amores conversar contigo.

Sim, podes ir tranqüila; nada temas,

Ao vulgo deixa estólidos pavores,

Vai ali entoar esses poemas,

Em que cantei nossos fiéis amores,

E verás como à voz da formosura

Desfaz-se todo o horror da sepultura.

Mas vai sozinha... nem jamais eu veja

Ninguém mais junto a ti, e nem profiras

Nome que o meu não seja,

Qual se vivo a teu lado inda me viras.

Se nunca em vida ouviste-me queixumes,

Morto, quem sabe?... ó bela, tem cuidado

Que lá dentro da campa agros ciúmes

Não vão morder-me o coração gelado.

Mas, por que assim descoras, ó querida?

As rosas de teu rosto empalidecem..

Teus olhos se escurecem

Qual se jazer me visses já sem vida!

Ah! não; não te entristeça por tal sorte;

Foi tudo um vão brinquedo,

Tu tens razão; para pensar na morte

É sempre muito cedo.

Olha, quão belos os clarões purpúreos

Do sol poente morrem no horizonte;

Os lavradores já descendo o monte

Demandam seus tegúrios.

Não tarda a noite; a relva dos outeiros

De orvalho úmida está.

Vamos, amiga; os sonhos agoureiros

Varre da mente, e vamos tomar chá.