O destino do vate

À memória de F'. Dutra e Meio

Entretanto não me alveja a fronte, nem minha cabeça pende

ainda para a terra, e contudo sinto que hei pouco de vida.

(Dutra e Melo)

Em manso adejo o cisne peregrino

Passou roçando as asas pela terra,

E sonorosos quebros gorjeando

Desapareceu nas nuvens.

Não quis mesclar do mundo aos vãos rumores

A celeste harmonia de seus carmes;

Passou - foi demandar em outros climas

Pra suas asas mais tranqüilo pouso,

Ares mais puros, onde espalhe o canto;

Onde foi ele - em meio assim deixando

Quebrado o acento da canção sublime,

Que apenas encetara?

Onde foi ele? em que felizes margens

Desprende agora a voz harmoniosa?

Estranho ao mundo, nele definhava

Qual flor, qu'entre fraguedos

Em solo ingrato langue esmorecida:

Uma nuvem perene de tristeza

O rosto lhe ensombrava - parecia

Serafim exilado sobre a terra,

Da harpa divina tenteando as cordas

Pra mitigar do exílio os dissabores.

Triste poeta, que sinistra idéia

Pende-te assim a fronte empalidecida?

Que dor fatal ao túmulo te arrasta

Inda no viço de teus belos anos?

Que acento tão magoado,

Que lacera, que dói no seio d'alma,

Exala a tua lira,

Funéreo como um eco dos sepulcros?

Tua viagem começaste apenas,

E eis que já de fadiga extenuado

Co desânimo n'alma te reclinas

À margem do caminho?!

Olha, ó poeta, como a natureza

Em torno te desdobra

Sorrindo o seu painel cheio de encantos:

Eis um vasto horizonte, um céu sereno,

Serras, cascatas, ondeantes selvas,

Rios, colinas, campos de esmeralda,

Aqui vales de amor, vergueis floridos,

De frescas sombras perfumado asilo,

Além erguendo a voz ameaçadora

O mar, como um leão rugindo ao longe,

Ali dos montes as gigantes formas

Com as nuvens do céu a confundir-se,

Desenhando-se em longes vaporosos.

Danoso quadro, que me arrouba os olhos,

N'alma acordando inspirações saudosas!

Tudo é beleza, amor, tudo harmonia,

Tudo a viver convida,

Vive, ó poeta, e canta a natureza.

Nas sendas da existência

As flores do prazer ledas vicejam;

À mesa do festim vem pois sentar-te,

Sob uma coroa de virentes rosas

Vem esconder os prematuros sulcos,

Vestígios tristes de vigílias longas,

De austero meditar, que te ficaram

Na larga fronte impressos.

Dissipe-se aos sorrisos da beleza

Essa tristeza, que te abafa a mente.

Ama, ó poeta, e o mundo que a teus olhos

Um deserto parece árido e feio,

Sorrir-se-á, qual horto de delícias:

Vive e canta os amores.

Mas se a dor é partilha de tua alma,

Se concebeste tédio de teus dias

Volvidos no infortúnio:

Que importa, ó vate; vê pura e danosa

Sorrir-se a tua estrela

No encantado horizonte do futuro.

Vive e sofre, que a dor co'a vida passa,

Enquanto a glória em seu fulgor perene

No limiar do porvir teu nome aguarda

Para enviá-lo às gerações vindouras.

E então mais belos brilharão teus louros

Entrançados co'a palma do martírio;

Vive, ó poeta, e canta para a glória.

Porém - respeito a essa dor sublime -

Selo gravado pela mão divina

Sobre a fronte do gênio,

Não foram para os risos destinados

Esses lábios severos, donde emana

A linguagem dos céus em ígneos versos;

Longe dele a vá turba dos prazeres,

Longe os do mundo passageiros gozos,

Breves flores de um dia, que fenecem

Da sorte ao menor sopro.

Não, - não foi das paixões o bafo ardente

Que os ledos risos lhe crestou nos lábio;

A tormenta da vida ao longe passa,

E não ousa turbar com seus rugidos

A paz dessa alma angélica e serena,

Cujos tão castos ideais afetos

Só pelos céus adejam.

Alentado somente da esperança

Contempla resignado

As sombras melancólicas, qu'enlutam

O horizonte da vida; - mas vê nelas

Um crepúsculo breve, que antecede

O formoso clarão da aurora eterna.

Quando vem pois sua hora derradeira,

Saúda sem pavor a muda campa,

E sobre o leito do eternal repouso

Tranqüilo se reclina.

Oh! não turbeis os seus celestes sonhos;

Deixai correr nas sombras do mistério

Seus tristes dias: - triste é seu destino,

Como o luzir de mombunda estrela

Em céu caliginoso.

Tal é seu fado; - o anjo d'harmonia

C'uma das mãos lhe entrega a lira d'ouro,

Noutra lhe estende o cálix da amargura.

Bem como o incenso, que só verte aromas

Quando se queima, e ardendo se evapora,

Assim do vate a mente

Aquecida nas fráguas do infortúnio,

Na dor bebendo audácia e força nova

Mais pura ao céu se arrouba, e acentos vibra

De insólita harmonia.

Sim - não turbeis os seus celestes sonhos,

Deixai, deixai sua alma isenta alar-se

Sobre as asas do êxtase divino,

Deixai-a, que adejando pelo empíreo

Vá aquecer-se ao seio do infinito,

E ao céu roubar segredos de harmonia,

Que sonorosos troem

D'harpa sublime nas melífluas cordas.

Mas ei-la já quebrada, -

Ei-la sem voz suspensa sobre um túmulo,

Essa harpa misteriosa, qu'inda há pouco

Nos embalava ao som de endeixas tristes

Repassadas de amor e de saudade.

Ninguém lhe ouvirá mais um só arpejo,

Que a férrea mão da morte

Pousou sobre ela, e lhe abafou pra sempre

A voz das áureas cordas.

Porém, ó Dutra, enquanto lá no elísio

Saciando tua alma nas enchentes

Do amor e da beleza, entre os eflúvios

De perenais delícias,

E unido ao coro dos celestes bardos,

O fogo teu derramas

Aos pés de Jeová em gratos hinos,

A glória tua, teus eternos cantos,

Quebrando a mudez fúnebre das campas

E as leis do frio olvido, com teu nome

Através do porvir irão traçando

Um sulco luminoso.

Bernardo Guimarães dedicou esse poema à memória de

Dutra e Melo, poeta romântico morto aos 23 anos (1823-1846).