O Bandido do Rio das Mortes: um romance de BG?

por Leopoldo Comitti, da Universidade Federal de Ouro Preto

Um apresentador relutante

Affonso Celso, ao apresentar O Bandido do Rio das Mortes ao leitor do início do século XX, faz uma apreciação bastante equivocada de Bernardo Guimarães, talvez levando em conta unicamente o grande repertório de anedotas que se acumularam sobre o nome do escritor: “Embora desordenado, escreveu bastante. Foi um ativo, um fecundo. Considerando a existência que levou, o meio onde o seu espírito evolveu, desprovido de estudos e estímulos, ninguém se eximirá a lhe admirar assim a celebração como a fertilidade dela decorrente.” [texto completo abaixo]

Há nessas poucas linhas a demonstração de um grande desconhecimento, tanto da vida quanto das circunstâncias familiares do autor. Certamente, como o próprio declara em 1859, ao fazer um necrológio de seu pai para o jornal A Actualidade, não pertenceu à classe mais abastada do Império, de onde provinham os intelectuais da época, filho que era de um simples funcionário público; mas um funcionário que cultivava a poesia de maneira sistemática, além de colaborar esporadicamente, com textos em prosa, em periódicos de Ouro Preto. Também seu irmão, Padre Araxá, cinco anos mais velho, foi um poeta de algum mérito, tendo um poema seu incluído em Harmonias Brasileiras, de Macedo Soares. Assim, não lhe faltou nem “o meio” , nem “o estímulo” necessários para que seu espírito se evolvesse.

Outro equívoco diz respeito a ser Bernardo Guimarães “desprovido de estudos”. Apesar de mau estudante, formou-se bacharel pela Faculdade de Direito de São Paulo. Se chegou a receber uma reprovação, esta certamente não se deu por não possuir, o então boêmio, qualidades intelectuais. Sobravam-lhe, sim, energias, para se dedicar mais aos prazeres da Sociedade Epicuréia. Basta uma leitura ligeira das obras de Bernardo Guimarães para que possamos vê-lo como um bom leitor e possuidor de alguma erudição, não apenas pelas citações de clássicos, mas pelo amplo conhecimento que demonstra em várias áreas do conhecimento. Também os textos críticos, especialmente aqueles em que analisa Os Timbiras, de Gonçalves Dias, nos apresentam um escritor com seguros conceitos de poética.

Affonso Celso certamente, em suas infelizes linhas, apenas o viu pelas lentes dos preconceitos de sua época, sem perceber que o desleixo, o vocabulário e a narrativa derramada, quase “ao correr da pena”, faziam parte de um desejo de abrasileiramento da língua portuguesa; e, em especial, de uma vontade de introduzir na literatura a riqueza da fala regional.

Apesar da infelicidade e relutância com que apresentou Bernardo Guimarães ao leitor, cabe a ele o mérito de não ter poupado esforços para o aparecimento do derradeiro romance do escritor; esforços estes que parecem ter ido bem além da redação de uma apresentação.

Sobre a autoria

O Bandido do Rio das Mortes tem, sem dúvida, uma origem controvertida. Destinado a dar seqüência a Maurício, ou os Paulistas em S. João d’el-Rei, não chegou a ser publicado, em vida, por Bernardo Guimarães. As referências que a ele se fazem são ambíguas, vagas, ora nos levando a crer que o romance teria sido concluído, porém extraviado após o falecimento do autor, ora nos apontando para o fato de se tratar de uma obra inacabada, compilada, emendada e concluída por sua esposa.

Considerando-se dados a respeito da educação feminina, durante o século XIX, quando existente restrita a uma alfabetização precária e com enfoque maior nas prendas domésticas; além da inexistência de qualquer registro a respeito de alguma atividade literária de D. Thereza Guimarães, optamos por concluir que a atribuição do resgate da obra à mesma deveu-se mais a razões sentimentais, uma homenagem a seus esforços em favor da publicação da obra inédita do marido. Devemos a ela a recolha e organização dos fragmentos, depois trabalhados mais cuidadosamente por outras mãos, talvez as de Padre Pio, ou do próprio Affonso Celso.

A falta de uniformidade do conjunto deixa claro que se trata de uma reconstituição, ou “restauração”, de uma obra inacabada, ou então, como se afirma, extraviada no todo e recuperada em parte. Temos uma narrativa pouco harmônica, na qual o andamento da ação ora se faz extremamente lento, ora assume grande rapidez. Tais variações não se encontram, todavia, em Maurício, romance do qual O Bandido do Rio das Mortes seria uma continuação. Há, porém, na obra, sem qualquer sombra de dúvidas, os traços característicos de Bernardo Guimarães. Falta-lhe apenas o acabamento mais elaborado que podemos perceber em seus romances mais maduros. Assim, a atribuição de autoria pode ser tida como segura, mesmo que, aqui e ali, possa haver contribuições daqueles que se esforçaram para que o texto chegasse ao prelo.

Nota da redação: Esse artigo foi publicado originalmente na Revista Acervos Literários, em CD, volume 3, número 3, do Centro de Estudos Literários Luso-Brasileiros, da UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto).

Texto do crítico Afonso Celso publicado na aparesentação do "O Bandido do rio das Mortes"

DUAS PALAVRAS DE APRESENTAÇÃO

I

Segundo os antigos, os livros, como os homens, têm o seu destino.

Nas velhas cousas há sempre verdade.

Continua cada opúsculo moderno a ser levado por uma sina, boa ou má. A história de não poucos constitui genuíno romance, cheio de peripécias dramáticas. É o caso deste que ides compulsar4, leitor. O presente romance tem o seu romance. Basta isso a que por ele vos interesseis.

Compô-lo Bernardo Guimarães ou, melhor, improvisou-o, não já ao correr, mas ao galopar da pena. Anoitecia-lhe a existência. Deixou apenas em esboço os derradeiros capítulos.

A novela é continuação e conclusão de outra do mesmo genitor: Maurício ou os Paulistas em S. João d’el-Rei. Andou o manuscrito de mão em mão, à procura de quem lhe desse remate. Extraviou-se. Parecia condenada a obra a definitivo desaparecimento e olvido.

A isso, porém, não se resignou a digna viúva do morto, D. Thereza Guimarães. Com inexcedível solicitude, com insigne perseverança (que não conseguem as mulheres?) logrou reaver os trechos esparsos. Concatenou-os, recopiou-os, engendrou para a narrativa o desfecho que lhe faltava. Em seguida, graças à dedicada coadjuvação do Ex.mo. e Rev.mo. Padre João Pio de Souza Reis, alcançou do Congresso Mineiro que fosse o trabalho impresso à custa do Estado. Tornou-se, destarte, D. Thereza Guimarães secretária, colaboradora, editora de seu marido. Mais ainda: salvadora do livro. Revelou inteligente devotamento à obra do esposo morto, equiparável ao de Madame Michelet, ou de Madame Alphonse Daudet, acrescendo que a soma de esforços necessárias no Brasil foi incomparavelmente mais meritória do que a reclamada em França.

De maneira indireta, toda consorte de escritor pode eficazmente cooperar na tarefa de seu companheiro: organizando-lhe os meios de produção fácil e fecunda, quer dizer, poupando-lhe certas preocupações domésticas, mantendo-lhe a serenidade do lar, proporcionando-lhes as condições de espírito indispensáveis à elaboração de primores.

D. Thereza Guimarães foi além. Debateu-se contra a indiferença e a má vontade, superou mil embaraços, para que o último filho intelectual de Bernardo, nascido quase invivedouro, não perecesse à míngua.

Durou nada menos de 4 lustros esse carinhoso labor maternal. Vinte e um anos após o falecimento do autor, surge à publicidade, e reconstituído integralmente, o derradeiro volume.

Representa a publicação ingente cabedal de fadigas, sacrifícios e tenacidade. D. Thereza Guimarães fez jus à gratidão das letras mineiras. E D. Thereza Guimarães assim procedeu arcando com óbices de outra ordem. Imaginai: viúva, pobre, educando filhos, sustentando velha mãe enferma!

Deve ser, pois, de agora em diante, lembrada, sempre que se nomear o seu glorioso marido. O nome dela ainda uma vez se enlaçou perpetuamente ao do preclaro autor do Seminarista e do Ermitão do Muquém.

Não achais o fato belo e tocante, leitor? Sois mineiro, isto é, acessível a todas as nobres comoções. Vejo-vos, portanto, curvado, qual eu estou, na mais respeitosa reverência, perante D. Thereza Guimarães.

Salve, ínclita mineira, excelentíssima senhora!

II

Valeria a pena o empreendimento de D. Thereza Guimarães?

Sem dúvida. Quando menos, assiste ao romance póstumo de Bernardo a valia de curioso documento. Sucinta resenha do entrecho vo-lo demonstrará.

De bandido nada se percebe no herói. É galhardo, cavalheiro. Consiste-lhe o crime único em amar D. Leonor, filha de D. Diogo, capitão-mor de S. João d’El Rei, no tempo dos bandeirantes, disputando-a à ambição de Fernando, primo da mesma.

Deseja Fernando desposar D. Leonor, com o só intuito de herdar a fortuna e o cargo do tio, já idoso.

Abre-se a exposição quando Maurício, foragido, vai buscar, a Ouro preto, reforços e munições para atacar os emboabas capitaneados, em S. João, pelo cruel e ambicioso Fernando, ataque no qual cumpria proteger ao capitão-mor e à sua filha.

A Maurício acompanham Itaubi, também chamado Antônio, índio catequizado, filho de Itapema, ex-chefe de poderosa tribo Aimoré, e Iambi, negro forte e corajoso.

Itaubi, à semelhança de Maurício, vota ódio de morte aos emboabas; Maurício, pela crueldade com que tratam os indígenas e desdém que empregam relativamente aos altivos íncolas de S. Paulo de Piratininga; Itaubi, porque eles escravizaram Indaíba, aquela a quem adora, a formosa filha de Irabussu, ex-cacique dos carijós.

Há para Maurício outros motivos de acometer o arraial: vingar-se de Fernando que insidiosamente convencera Leonor ser ele, Maurício, traidor e vilão; justificar-se, ante aquela e o capitão-mor, da morte de Afonso, jovem e impetuoso irmão da moça, que, em renhido combate entre paulistas e emboabas, sucumbira às mãos do mesmo Maurício.

Auxiliado por Itapema e Itaubi, alcança Maurício um troço de Aimorés e paulistas fugitivos de S. João. Com essa diminuta gente, vai investir contra o arraial. Em caminho, sucede topar com seu amigo Gil, que lhe vinha ao encalço, comandando um bando de paulistas. À tropa de Gil agrega-se Maurício, formando pequeno exército.

Dirigem-se à gruta do pai de Indaíba, Irabussu. Devem aí reunir-se ao resto dos indígenas e paulistas escapos de S. João, após a peleja em que expirara o irmão de Leonor. Na gruta, além de Irabussu, o bugre feiticeiro, conforme o alcunhavam os emboabas, estacionava mestre Bueno, velho mestiço, devotadíssimo a Maurício e inimigo, por seu turno, dos emboabas, que lhe haviam escravizado a filha, a graciosa Helena.

Ainda outro afeiçoado de Maurício ali se via, o Capitão Nuno, valente paulista. Aprestavam-se Maurício e Gil para o assalto, quando souberam por Irabussu que Fernando se aliara a Caldeira Brant, célebre bandeirante, orgulhoso e mau, aumentando assim consideravelmente a guarnição defensora do arraial.

Não desanimam. Enviam Iambi entender-se com Amador Bueno, outro afamado bandeirante, de índole benévola, amigo dos paulistas, rival de Caldeira Brant.

Amador acede, desejoso de responder a um desafio do altaneiro Caldeira Brant. Guiado pelo intrépido Itambi, marcha à frente dos seus, para a gruta de Irabussu, onde este, ao lado de Maurício, Gil, Itaubi e mestre Bueno o aguardam impacientes.

Entretanto, Leonor não olvidara Maurício, como Indaíba, identicamente, não olvidara Itaubi. Julgava a primeira que Maurício traíra a D. Diogo, pactuando com os indígenas assaltantes do arraial; supunha-o assassino do irmão. Amava-o, a despeito de tudo; e, ao anunciar-lhe Fernando de boa fé a morte de Maurício, não vingou a donzela dissimular o seu desespero. Daí imensa cólera em Fernando. Odiava Maurício; deplorava não o apanhar vivo, para o torturar à vontade, antes de, com a própria mão, o trucidar.

Eis o dia da peleja. Leonor e seu pai vão vê-la do cimo de um morro. Indescritível o júbilo da bela, ao avistar na frente dos contrários o nunca esquecido Maurício. São completamente batidos os emboabas e Caldeira Brant; Fernando, mortalmente ferido, não tardará a expirar. Maurício acerca-se do capitão-mor e de sua filha, dando-lhes cabais explicações restaurando a verdade, perfidamente falseada por Fernando.

Calixto, outro amigo de Maurício, noivo de Helena, corrobora as asserções daquele. Termina a história, a contento geral: mestre Bueno, Itaubi e Irabussu abraçam os filhos que choravam; casam-se os adoradores com as respectivas adoradas.

III

É, como se viu, a um tempo... ingênuo e complicado. Escassa psicologia; violenta ação. Acumulação de personagens; dispersão em escusados episódios, repetições, cousas perfeitamente dispensáveis.

Sem embargo, interessa. o caráter de cada indivíduo desenha-se acentuadamente. Nos incidentes, há seguro colorido e firme perspectiva. Mais que chão, em extremo familiar, encanta o estilo pela espontaneidade borbulhante. Não se azou ao autor ensejo de ser conciso.

Afirmadas em tantos trabalhos anteriores, persistem aqui as qualidades de Bernardo.

Em primeiro lugar, o vivo amor à natureza brasileira, o dom de evocá-la, de lhe interpretar a suavidade e a excelsidade. De quase todas as páginas, evola-se o olor das florestas virgens, com os pios ásperos ou bramidos de aves ariscas. De súbito, desvenda-se imenso panorama, impreciso, misterioso e soberbo. Sombra intensa, agora, cortilhada de vagas cintilações infinitas...

A par desse amor e dessa evocação, conhecimento dos costumes, das tradições, das particularidades natais. Sente-se que conversou afetuosamente assuntos antigos; viajou; tratou com os moradores, tropeiros ou garimpeiros, apreendendo-lhes, sobre a linguagem, o modo especial do pensar e do sentir. Daí a apresentação de tipos inconfundíveis, substancialmente nacionais, que perambulam nos volumes.

Em seguida, a graça, – graça desajeitada, muita vez, – como a das formosas virgens da roça, graça desataviada e fresca, a provocar indulgente sorriso de simpatia.

Dominando, embebendo tudo, acendrada poesia. Porque Bernardo Guimarães foi primordialmente poeta. Poeta pela fina sensibilidade, pela opulência das sensações, pelo transcendente predicado de perceber e traduzir aspectos sutis do mundo material e do mundo íntimo. Não já de seus versos, mas de seus mínimos escritos exala-se poesia. Poesia inconsciente, como a do pássaro trinando, ou a do arroio a derivar.

Poeta pela maneira como produziu, pelo jeito do seu viver.

Embora desordenado, escreveu bastante. Foi um ativo, um fecundo. Considerando a existência que levou, o meio onde o seu espírito evolveu, desprovido de estudos e estímulos, ninguém se eximirá a lhe admirar assim a cerebração como a fertilidade dela decorrente.

Ser de eleição, dotado de nobre engenho, não o malbaratou.

Poderia deixar ainda mais e ainda melhor? Poderia, sem dúvida. Abundam em seus livros fragmentos esparsos de obra prima. Coordenados, ajustados com paciência e tempo, eliminadas as excrescências, surdiria a obra prima absoluta e imortal.

Mas o que deixou basta a lhe perpetuar a memória na estima e veneração de quantos o lerem; basta a lhe insculpir a figura na galeria dos brasileiros egrégios.

Jacta-se Minas Gerais das pedras preciosas extraídas das suas entranhas.

Por maioria de razão, deve ufanar-se desta inteligência.

Nascida, descuidosamente lapidada no solo mineiro, despediu ela fulgurações inefáveis, cristalizadas em livros, – fulgurações mais valiosas que as das gemas riquíssimas.

Affonso Celso

Vila Petiote – Petrópolis – VII – 1905