Primeira evocação

Das sombras do sepulcro

Ei-la que surge plácida e formosa

Essa visão primeira,

Que me sorriu na quadra venturosa

Da infância prazenteira.

Se mui bem-vinda, ó flor sempre lembrada

De minha leda aurora!

Graças te rendo, pois a consolar-me

Surges primeira agora.

Inda hoje mesmo, após tão largos anos,

Que repousas no leito funerário,

À minha voz acodes, e abandonas

Para escutar-me o gélido sudário...

Não; não morreste; ou bela como outrora

À voz do meu amor hoje renasces!

Tombam-te ao colo as nítidas madeixas,

E adorável pudor te adorna as faces.

Não vens da campa, não, que nos teus lábios

Vejo o frescor e a púrpura da rosa;

Palpita o seio, e brincam-te os sorrisos

Na boca graciosa.

Vejo-te os olhos límpidos, serenos,

Tais como costumava outrora vê-los;

Nem dos sepulcros o hálito mefítico

Exalam teus cabelos.

Tu vens direito da mansão celeste

A mim descendo, ó anjo meu formoso,

Com asas de ouro desferindo o vôo

No espaço luminoso.

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Lembras-te ainda dos felizes dias,

Que deslizamos, antes de trocares

Pela pátria dos anjos, que hoje habitas,

A sombra de teus lares?...

Oh! quem me dera ver essas campinas,

De que me afasta tão fatal distância,

E ver os céus, onde sorriu-me a estrela

De minha leda infância!...

E a fonte, e o musgo, aonde te sentavas

À sombra do florido limoeiro,

Ouvindo o trepidar harmonioso

Do próximo ribeiro;

E os vargedos sem fim, onde alvejava,

- Em meio dos vergéis quase encoberto, -

Teu lar ditoso, ninho de alva pomba

Em meio do deserto;

E do bosque a avenida solitária,

- Tão grato asilo ao tímido recato, -

E essa agreste alpondra, em que brincando

Saltavas o regato.

Lá, nas tardes serenas, eu te via

Por entre os perfumados laranjais,

Ou qual errante Náiade, vagando

Nos campos teus natais.

E ao teu passar, as árvores do bosque

Os ramos brandamente meneavam;

E o chão, em que pisavas, à porfia

De flores alastravam.

Brisa amorosa bafejava aromas

Em torno a ti com plácidos rumores;

E murmurando a fonte te mandava

Um cântico de amores.

E eu te amava; - mas do meu afeto

Dentro em meu coração continha as lavas;

E o fogo, que nesta alma então fervia,

Nem sei se adivinhavas.

Eu era tão feliz, - e nem sabia

O nome a tão suaves emoções;

Nem pensei que jamais se esvaecessem

Tão puras ilusões.

E nossos corações eram quais flores,

Que o casto seio mal abrindo ao lume

De nascente manhã, dentro do cálix

Guardavam seu perfume.

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Mas ah! - no fundo do painel donoso

Vejo sinistra a campa, que se eleva!...

É lá que minha aurora para sempre

Sumiu-se em negra treva.

Há bem tempo que dormes nesse leito

Frio, que a dura morte preparou-te,

Ao frêmito suave da palmeira,

Que em teu berço embalou-te.

Há bem tempo! - e às vezes me parece

Ser nosso amor uma reminiscência

Apenas de outro mundo, em que dormimos

O sono da inocência !...

E é bem verdade que viveste outrora

Vida real de humana criatura,

Que no mundo tiveste o berço um dia,

E noutro a sepultura?

Ou foste só visão da fantasia,

Que em meus formosos sonhos de criança

Me fascinava a mente descuidosa

C'um raio de esperança?...

Vai, fantasma querido, volta aos bosques

De nossa infância, - às verdes ribanceiras

Do ribeirão, que viu de nosso afeto

As emoções primeiras.

Debaixo desses céus de azul brilhante,

Nessas campinas de eternal verdura,

Dorme tranqüila aos plácidos rumores

Que a solidão murmura.

Lá vã de tarde o sabiá sozinho

Saudoso modular tristes endeixas;

E nos buritirais gemendo a brisa

Sussurre eternas queixas.

Vai-te, ó lindo fantasma! - neste mundo

Não mais profanes teus pudicos véus;

Vai-te, que há muito os querubins saudosos

Te aguardam lá nos céus.