A sereia e o pescador (balata)

C'est la sirene,

Qui va chanter

La cantilene,

Qui fait aimer.

Sereia

Viver aqui eu não posso

Nem no vale, nem na serra;

Eu não sou filha da terra,

Eu sou sereia do mar.

Correi, ondas, brandamente,

Correi, vinde me buscar.

Nasci no seio das vagas,

Numa gruta de cristal;

Em colunas de coral

O meu berço se embalou.

Ondas, levai-me convosco,

Que eu desta terra não sou.

O amor criou-me entre pérolas

Sobre fúlgidas areias,

Mago canto de sereias

Meus sonos acalentou.

Ondas, levai-me convosco,

Que eu também sereia sou.

Eu não sou filha da terra,

Vivo triste nestas plagas;

Embalada sobre as vagas,

Só no mar quero viver.

Correi, vinde, ó minhas ondas.

A meus pés vinde gemer,

No regaço cristalino

Brandamente me tomai;

Aos plácios de meu pai

Vinde, vinde me levar.

Correi, ondas, pressurosas,

Levai a filha do mar.

E se alguém na terra ingrata

Sentindo loucos amores,

Meus encantos e favores

Insensato desejar,

Em torno a mim, bravas ondas,

Vinde em fúria rebentar.

Em solitário rochedo,

Batido pelas tormentas,

Ide, ó ondas turbulentas,

Ide longe me ocultar.

Rugindo ali noite e dia,

Guardai a filha do mar.

Sentada ao pé de um rochedo,

Com os pés na branca areia,

Assim cantava a sereia

A linda filha do mar.

E a onda mansa, gemendo,

Os pés lhe vinha beijar.

Pescador, que além vogava,

No seu batel escondido,

Absorto prestava ouvido

A tão saudoso cantar,

E a vela e o remo esquecia

Ouvindo a filha do mar.

III

Pescador

Não mais lamentes

Em tom magoado

Teu triste fado,

Filha do mar.

Vem a meu barco,

Nos braços meus

Aos lares teus

Te irei levar.

De novo os belos

Paços reais,

Entre os cristais

Irás saudar,

E sobre as finas,

Fulvas areias,

Entre as sereias

Irás cantar.

Embora sejam

Teus ermos lares

Entre os algares

Do fundo mar.

Sejam embora

Negro alcantil,

Que monstros mil

'Stão a guardar,

Onde as tormentas

Sempre batendo,

Com ronco horrendo

Vão rebentar.

Irei, se queres,

Agora mesmo,

Sem medo, a esmo

Te acompanhar.

Meu barco é leve,

Meu braço é forte,

E a própria morte

Sabe afrontar.

Só peço em paga

Da doce lida

Passar a vida

A te adorar,

E a teus joelhos

Sempre prostrado

Teu rosto amado

A contemplar.

Oh! vem comigo,

Vem pressurosa,

Vem, ó formosa

Filha do mar.

IV

Calou-se o barqueiro amante;

Mas depois ouviu, tremendo,

Um canto, que mais ao longe,

Mais ao longe foi morrendo.

A cantar e a fugir

A sereia ia dizendo:

SEREIA

Eu sou pérola das vagas,

Que nao sei, nem quero amar;

O meu peito é como a rocha,

Onde em vão esbarra o mar.

Mancebo, vai noutra parte

Teus amores suspirar.

Do que existe sobre a terra

Nada me pode agradar;

Só amo a Deus nas alturas,

E a liberdade no mar.

Mancebo, vai noutra parte

Teus amores suspirar.

V

Desta canção fugitiva

Os ecos ainda duravam,

E nas praias suspiravam

Entre os bramidos do mar;

E o pescador entre angústias

Sentia o peito estalar.

Pescador

Por que foges, branca fada

De formosura sem par?

Por que me escondes teu brilho,

Formosa estrela do mar?...

Ronca em torno a tempestade.

Meu barco vai soçobrar.

Só tu podes no meu peito

Uma esperança plantar;

E as tormentas, que me cercam,

Com tua luz aplacar.

Nestes medonhos abismos

Nao me deixes soçobrar.

Ferve o mar, o céu em chamas

Vem abismos aclarar;

Nestas águas desastrosas

Vai meu barco soçobrar.

Vem salvar-me por piedade,

Formosa estrela do mar.

VI

Longos dias se passaram;

Ninguém mais ouviu cantar

A linda filha das águas

Nem na praia, nem no mar.

E vivia o pescador

Triste e só a definhar.

Se ousava nas ermas praias

Seu queixoso canto alçar,

Só ouvia longe, longe

Uma voz a lhe bradar:

"Mancebo, vai noutra parte

Teus amores suspirar."

VII

Passaram mais dias, meses;

já cansado de pensar

O pescador sem

barco soltou ao mar.

Ei-lo sem norte e sem rumo

Nas ondas a resvalar.

Ei-lo que vai mar em fora.

Nas ondas do mar bravio

Seu amor louco e sombrio

Quer consigo sepultar.

Contra uma rocha empinada

Vai seu barco espedaçar.

Mas eis soa-lhe aos ouvidos

Voz celeste e maviosa,

Em toada lamentosa

Tristes coplas a cantar.

Aos acentos suspirosos

Cala a brisa, e geme o mar.

VIII

Sereia

Sou moça e sou formosa;

Dos mares sou princesa;

Em graças e beleza

Jamais achei igual.

E vivo aqui sozinha,

Ai céus! para meu mal.

E vivo aqui sozinha

No seio de esplendores;

Ninguém quer meus amores

Ninguém me vem buscar.

E eu sou a mais formosa

Das filhas deste mar.

E eu sou a mais formosa

E a mais alva açucena,

Que sobre a onda serena

Balança o airoso hastil.

Mas nesta solidão

Que serve ser gentil?

Mas nesta solidão

Ninguém vem consolar-me;

E sempre a lastimar-me

Aqui morrerei só.

Ai triste de mim! triste!

Ninguém de mim tem dó.

IX

Ouvindo a canção chorosa

O barqueiro estremeceu,

E entregue a seus devaneios

O leme e a vela esqueceu

E com olhar desvairado

O horizonte percorreu.

Nem no mar, nem no rochedo

Vulto humano percebeu

E esta frase piedosa

Pelos lábios lhe tremeu:

"Esta triste, que assim chora,

É infeliz, como eu."

Depois firme e resoluto

Em pé na proa se ergueu,

E para às alheias mágoas

Juntar o queixume seu

Alçando a voz sobre as vagas

Desta sorte respondeu:

X

Pescador

Por entre as ondas bravias,

De mil tormentas batido,

Em busca de um bem perdido

Voga, voga, ó batel meu.

Voga!...um dia saberemos

Onde a ingrata se escondeu.

Houve um dia, uma sereia...

Oh! que linda ela não era!...

Porém tão ingrata e fera,

Que de amor me enlouqueceu.

Dizei, nuas penedias,

Onde a ingrata se escondeu.

Ela deixou-me, - a cruel! -

Entregue a negros pesares,

Lastimando sobre os mares

O triste destino meu.

Dizei-me, ó ondas sonoras,

Se ela de mim se esqueceu

Se nas asas do tufão

Devassando o mar profundo

Na raia extrema do mundo

A meus olhos se escondeu,

Neste barco aventureiro.

Lá mesmo voarei eu.

Se entre monstros marinhos

Lá no mais fundo dos mares,

Em cristalinos algares

Se oculta o retiro seu,

Em meu amor confiado

Lá também descerei eu.

Se entre rochas malditas,

Entre grossos vagalhões,

Defendidos por dragões

Seus palácios escondeu,

Mil mortes desafiando

Lá mesmo chegarei eu.

Por entre as ondas bravias

De mil tormentas batido

Em busca de um bem perdido

Voga, voga, ó batei meu.

Voga!...um dia saberemos,

Onde a ingrata se escondeu.

XI

Sereia

Nestas praias solitárias

Que procuras, pescador?...

Vens buscar pérola finas,

E corais de alto valor?...

Se tais tesouros desejas,

Voga além, ó pescador.

Que estrela por estes mares

Te conduz, o pescador?...

Queres ser nauta valente,

Deste mares ser o senhor?...

Se tal ambição te ocupa

Passa além, ó pescador.

Os mistérios saber queres

Desta ilha, ó pescador?...

E deste asilo os segredos

Aos olhos do mundo expor?

Se é esse o desejo teu,

Vai-te embora, ó pescador.

Mas se perigos insanos

Afrontando sem pavor,

Nesta ilha solitária

Tu vens procurar amor

A meus braços sem detença,

Corre, voa, ó pescador.

XII

Na base da penedia

O vulto branco surdiu

De uma donzela formosa

Como igual nunca se viu.

Para lá o pescador

O barco seu impeliu.

Saltando na branca areia

Aos pés da bela caiu;

Mas ela com brando riso

Meigas frases proferiu,

Beijou-lhe a fronte incendida

E os alvos braços lhe abriu

O batel abandonado

No pego se submergiu,

E o ditoso par amante

Entre rochas se sumiu,

E por aquelas paragens

Nunca mais ninguém os viu.

Às vezes por horas mortas,

Pelas noites de luar

Ao largo vê-se um barquinho

Solitário a velejar.

Quem vai dentro não se sabe

Nem se vê ninguém remar.

Apenas ouve-se um canto,

Tão triste, que faz chorar;

E os pescadores, que o ouvem,

Começam logo a rezar,

Dizendo consigo: é ela,

É ela, a filha do mar!