Jornalistas escritores do Brasil (1904-2004)

Trecho de livro "Pena de Aluguel" de Cristiane Costa, editado pela Companhia das Letras.

5. O PAPEL E A PENA DO JORNALISTA ESCRITOR

"A poesia está nos fatos"

Oswald de Andrade

Quando a coisa era feia, Graciliano Ramos alisava o cabelo e xingava: Cavalo!

O temido e admirado revisor do Correio da Manhã odiava palavras e expressões empoladas perdidas no meio do texto, e rugia para o repórter do outro lado da redação: "Outrossim é a puta que o pariu!". A maioria dos repórteres o via como antipático e grosso. Quando começou, Otto Lara Resende achava ser difícil ver "uma ponta da alma desse cacto fechado, casmurro e amargo que era Graciliano Ramos".1 Impopular, logo ganharia no jornal um apelido: neurótico da língua. Mesmo para a literatura, preconizava regras que poderiam constar de um manual de redação de jornal. Só respeitava o substantivo, riscando o adjetivo, que ele chamava de miçanga literária. Era contra "reticências porque é melhor dizer do que deixar em suspenso". Exclamações também não usava: "não sou idiota para viver me espantando à toa".2Em 1947, mesmo depois de ter publicado obras-primas como São Bernardo e Vidas secas, o escritor ainda lutava para sobreviver. Por isso, aceitou a indicação de Aurélio Buarque de Holanda para substituí-lo no Correio da Manhã, jornal onde que tinha ingressado como suplente de revisão, trinta anos antes, quando tentou pela primeira vez a vida de jornalista e escritor no Rio. O redator-chefe do Correio da Manhã, o também alagoano Pedro da Costa Rego, surpreendeu-se com a indicação, achando que Graciliano já deveria estar rico. Longe disso. Vivia e escrevia sob extremas dificuldades, num apertado quarto de pensão dividido com mulher e filhos.Na época, o Correio da Manhã era um dos matutinos mais importantes da capital. Seu corpo de redatores fez história não só na imprensa como na literatura brasileiras. No mesmo ano que Graciliano, o também jornalista e escritor Antonio Callado ingressou no jornal — um dos poucos que pagavam em dia, sem apelar para vales. O Graciliano que ficaria na memória de Callado era mandão, exigente e irritadiço. E, principalmente, obsessivo. "Mestre do idioma, não era como certos escritores que derrapam no português porque aprenderam a escrever de orelhada. Ele sabia teoria da língua, como um gramaticólogo."3

Para Callado, que chegaria à direção do Correio da Manhã em 1954, Graciliano "optou por lutar, com as armas possíveis, pelo ideal literário e pagou um preço alto num país, ontem como hoje, adverso ao trabalho intelectual. Jamais amaldiçoou sua sina de grande tigre condenado a viver de caça tão miúda".4 O jornal tinha uma rotina pesada para um escritor de seu porte, idade avançada e saúde abalada pela prisão.

Graciliano chegava em casa depois da meia-noite, mas acordava cedo para escrever. De tarde, trabalhava como inspetor de colégios, emprego arrumado por Carlos Drummond de Andrade no ministério da educação. Dava uma passada na livraria e editora José Olympio e, no início da noite, seguia para a "banca de remendão", onde consertava "engulhando produtos alheios", sempre antes de seu horário, às sete da noite.5 Com o paletó pendurado na cadeira, de gravata e suspensórios, mangas dobradas até o cotovelo para não sujar a camisa de tinta, fechava o jornal. Graciliano permitia-se pequenos intervalos, dois a três por noite, para beber cachaça no bar do Hotel Marialva, ali perto. Eram copos cheios até a boca, mas o escritor não demostrava nenhuma alteração, segundo os colegas. Como ocorreu a tantos jornalistas, o hábito de beber durante ou depois do expediente acabou se transformando em alcoolismo e, em 1950, Graciliano foi obrigado a fazer um tratamento para desintoxicação.

Eu me postava todos os dias diante de um desses casos excepcionais, um homem ao mesmo tempo anguloso e curvo, polido e silencioso, que se inclinava sobre os nossos originais, na mesa em que se dispusera simetricamente os seus cigarros e os palitos de fósforo necessários para acendê-los. Emendava os erros de português e as tibiezas de estilo dos redatores. Ofício modesto, como todos os demais de que ele se ocupou, ofício de artesão das letras, praticado por um escritor que inventava belezas de expressão e recriava a realidade. Pedia-nos explicações sobre nossas sintaxes suspeitas, ia aos dicionários e neles demorava com obstinação, esforçava-se por compreender o sentido tantas vezes confuso e vago dos tópicos.6

Na verdade, ofício nem tão modesto assim quanto descreve Paulo Mendes Campos. A sala ocupada por Graciliano foi batizada de Petit Trianon, por reunir a elite intelectual do jornal, como os editorialistas Otto Maria Carpeaux e o crítico literário Álvaro Lins. Entre os redatores do Correio da Manhã, figuravam nomes do porte de Franklin de Oliveira, Otto Lara Resende, José Lino Grunewald e o próprio Paulo Mendes Campos, o que dá uma idéia da importância do cargo na época — mas que desde os anos 1990 vem sendo extinto de forma radical nos jornais brasileiros, assim como a figura do revisor, ambos substituídos (e mal) pelo corretor ortográfico do computador. Num momento em que as universidades ainda não concentravam a produção cultural do país, a maioria dos intelectuais era autodidata, formada na vida e em centros de convergência, como a imprensa.

Era uma estrutura intelectual impressionante [...]. Creio que não se repetiu no país uma redação tão impressionante como aquela, inclusive porque havia uma simbiose, uma ligação maior entre o intelectual e o redator de jornal. Hoje os jornais estão mais profissionalizados e, sob muitos aspectos, mais fortes do que os daquela época. Mas isso tirou certo brilho intelectual que existia em redações como a do Correio.7

Autodidata, Graciliano tinha só o ginásio, mas se tornaria chefe dos redatores do Correio da Manhã pela intimidade com dicionários e gramáticas que, segundo ele, não deviam ser consultados, mas constantemente lidos e estudados por quem quisesse ser escritor. "Preferi não ter canudo de papel, mas saber ler e escrever", dizia.8

Foi uma longa aprendizagem. Passaram-se três décadas, entre 1947, quando Graciliano entrou como estrela no Correio da Manhã e 1914, quando lá pisou pela primeira vez, como suplente de revisão, trabalhando das nove da noite até as duas da madrugada, sempre que algum contratado faltava (cargo que ocupou também no jornal O século). Graciliano ironizava as normas da redação:

Imagina que agora tenho que usar nada menos de três ortografias. Se no Correio da Manhã aparecer alguma vez Brazil, com z, eu tenho de substituir o z por s; se no Século vier a mesma palavra com s, tenho que trocar o s por z. De sorte que uso a ortografia do Correio, a do Século e a minha, porque eu tenho uma, que é diferente das deles. Um horror! Trabalha-se pouco, ganha-se pouco, dá-se afinal com os burros na água, com todos os diabos.9

Em 1915, o escritor foi contratado como revisor de A Tarde, voltou a escrever crônicas para o Jornal de Alagoas e passou a colaborar com o semanário Paraíba do Sul, onde exercitaria a auto-ironia ao descrever a figura do "literato em esboço, um sujeito que tem sempre no cérebro um pactolo de idéia e que ordinariamente não tem na algibeira um vintém".10

Como um bom polígrafo pré-modernista, nessa época Graciliano arrumou também um emprego de revisor da Gazeta de Notícias. Publicava ainda artigos na revista Concórdia. E, morando em pensões vagabundas na Lapa, tentou durante dois anos pavimentar uma carreira de jornalista escritor na capital. Acabou voltando para o Nordeste. Desdenhava o círculo intelectual carioca, repleto de autores que se preocupavam mais com a colocação de pronomes do que com a literatura em si. A vida literária da metrópole estava muito próxima da prostituição, segundo o revisor Luís da Silva, narrador de Angústia.11

Passo diante de uma livraria, olho com desgosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham ali pessoas exibindo títulos e preços nos rostos, vendendo-se. É uma espécie de prostituição. Um sujeito chega, atenta, encolhendo os ombros ou estirando o beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por detrás do vidro. Outro larga uma opinião à-toa. Basbaques escutam, saem. E os autores, resignados, mostram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as mulheres da Rua da Lama.12

Quase que premonitoriamente, Luís da Silva sonhava, neste romance publicado em 1936 (mesmo ano em que Graciliano Ramos foi detido pela ditadura Vargas), com um livro que escreveria na prisão, onde faria camaradagem com dois ou três presos mansos e finalmente teria tempo para escrever. Ir para a cadeia não seria pior do que ter de voltar à lúgubre saleta de revisão, caso perdesse o emprego na "catacumba oficial" (provavelmente um jogo de palavras, já que, quando escreveu Angústia, Graciliano dirigia a Imprensa Oficial de Alagoas). As lembranças não eram das mais felizes.

Depois da meia-noite as letras miúdas dançavam na prova molhada, a saleta da revisão enchia-se de fantasmas, a gente lia cochilando, emendava cochilando. Um galego dava ordens aos berros. Nas mesinhas estreitas, forradas com papel de impressão, as vozes esmoreciam, as canetas sujas, nojentas, calavam-se. Vida porca, safada. Agora estava menos porca e mais safada. Adulações, medo de perder o emprego, de voltar às estradas, à caserna, aos bancos dos jardins, à mesa de revisão.13

O manual de redação

Criado em 1901, o Correio da Manhã foi testemunha de um acelerado processo de industrialização, que possibilitou um florescimento do parque gráfico e do mercado editorial brasileiro. Do início do século ao fim dos anos 1950, a imprensa nacional mudou totalmente de perfil: revistas ilustradas proliferaram, o uso da fotografia se expandiu, a diagramação foi remodelada, o modelo americano de jornalismo objetivo e texto conciso começou a ser implantado. A era pré-televisão viu o aparecimento de vários jornais importantes, matutinos e vespertinos, como A Manhã e O Globo (1925), Diário Carioca (1928) e Diário de Notícias (1930). Na linha editorial, alguns reflexos dessa modernização foram o declínio do gosto pelo ornamental e o superficial, que caracterizava tanto a literatura quanto o jornalismo do período anterior.

Até então, o Brasil era, culturalmente falando, uma província da França. A prosa era "marcada pela ênfase, na fascinação pela palavra sonora, pela expressão desusada, pela orgia de adjetivos e pela pletora das metáforas".14 O jornalismo que se fazia então não era muito melhor.

A precariedade do parque gráfico nacional e a estreiteza do mercado de livros faziam com que os escritores se valessem da literatura como veículo. Literatura e jornalismo confundiam-se. A confusão prejudicou o jornalismo, sem dúvida, porque levou para ele aquela forma enfática de redigir própria do tempo.15

Com a crescente industrialização, a partir dos anos 1920 o papel do escritor nos jornais já não seria o de uma estrela, como nos tempos de Olavo Bilac e Coelho Neto. Ao homem de letras seria exigido que — em vez de produzir contos ou poemas — escrevesse reportagens, fizesse entrevistas, corrigisse o texto dos repórteres, editasse páginas, chefiasse redações. E foi como jornalistas braçais que escritores como Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade e Oswald de Andrade levaram para a imprensa os preceitos de uma literatura moderna, muito antes que lides, sublides e pirâmides invertidas fossem copiados do jornalismo americano.

Há claramente uma identidade de projeto entre a ficção e o jornalismo produzidos por autores modernistas e realistas, embora a ruptura literária com o passado tenha se dado entre os anos 1920 e 1930 e a jornalística sido sistematizada apenas nos anos 1950. O inimigo era comum: a literatice, o beletrismo, o penduricalho, o adjetivo. Portanto, não se deve estranhar que escritores identificados com este projeto tenham tomado para si o trabalho de chefe de redação, como Drummond, ou do copidesque, como Graciliano, ou ainda de repórter, redator, diretor de suplementos literários e até dono de jornais e revistas, como Oswald, reescrevendo o jornalismo, assim como a ficção e a poesia que se fazia até então.

Um impacto semelhante ao provocado pela Semana de 22, separando a literatura parnasiana da moderna, seria repetido na imprensa nos anos 1950, com a introdução do lide. Foi uma sentença de morte ao nariz de cera, aquelas intermináveis digressões que costumavam preceder a informação propriamente dita. A partir da importação do novo modelo, promovida por jornalistas brasileiros que passaram temporadas nos eua, como Danton Jobim, Samuel Wainer e Alberto Dines, técnica jornalística e a arte literária começariam a se afastar definitivamente.

Nos Estados Unidos, essas inovações marcaram o momento em que os jornalistas "adquiriram um sentido de categoria profissional que os diferencia dos literatos".16 O treinamento específico para o jornalismo — profissão que no Brasil só seria regulamentada em 1969, com a obrigação do diploma — gradativamente faria com que a carreira deixasse de ser um caminho natural para o aspirante a escritor, que nos eua conta com outros mecanismos de formação, como cursos universitários de creative writing. Com isso, a imprensa ganhava valores estéticos particulares e seus próprios mecanismos de consagração.

Foi o trabalho dos correspondentes americanos no estrangeiro — já a partir da criação do telégrafo, em 1840, e de seu uso pela Associated Press e pela Reuters, entre 1848 e 1851 — que firmou aos poucos as bases do novo modelo de jornalismo: a pirâmide invertida, a sumarização, a normatização do texto, a desvinculação do repórter do redator, com a nítida separação entre notícia e opinião.

O lide clássico foi introduzido no Brasil através das agências de notícias americanas, que o criaram nos eua para resolver um problema prático. O mesmo texto das agências era utilizado por jornais de todas as partes do mundo. Cada um deles fazia uma avaliação diferente da importância de cada notícia e do espaço que ela deveria ocupar. As agências precisaram criar a fórmula da pirâmide invertida para que cada jornal pudesse fazer os cortes necessários nos textos e adaptá-los a suas necessidades sem perderem as informações fundamentais. Daí a colocação dos dados em ordem decrescente de importância. O corte poderia ser feito "pelo pé", numa operação rápida, sem perda de substância informativa. Daí, generalizou-se na imprensa americana, como maneira mais simples de dar a cada leitor a mesma opção que as agências davam aos jornais: interromper a leitura em qualquer ponto do texto de acordo com seu interesse pelo assunto, tendo recebido as informações fundamentais desde que lido o primeiro parágrafo.17

Na década de 1920, o escritor Ernest Hemingway já admitia a influência em sua literatura da escrita telegráfica, exigida em seu trabalho como correspondente dos jornais Toronto Star e Daily Star e da agências de notícias americanas International News Service (ins) e North American News Alliance (nana), na Europa. Mas, se nas agências tinha que mandar relatos rotineiros, objetivos e factuais, como os que dariam origem ao conceito de pirâmide invertida, nos jornais Hemingway podia soltar sua veia de escritor, com completa liberdade de movimento e escolha de material. O Daily Star deixava claro que desejava de seu correspondente relatos vívidos, realistas, pessoais.

Durante muito tempo perdurou o mito de que a técnica de cortar palavras, reduzindo ao osso a narrativa, foi exercitada por Hemingway no jornalismo, quando ganhava por cada toque. Algo que não faz muito sentido. Se ganhava por palavra, a menos que fosse o mais patronal dos repórteres, o texto de Hemingway deveria ter sido esticado a não mais poder, na ânsia de ganhar uns dólares a mais. Na verdade, a economia de palavras se dava devido ao alto custo de transmissão da mensagem. Por isso, era comum os jornalistas omitirem preposições, artigos e adjetivos de seus telegramas, secando ao máximo o texto.18

Na revista literária Boletim de Ariel, Aurélio Buarque de Holanda descreveria a técnica de Graciliano de forma muito parecida à famosa explicação de Ernest Hemingway para seu estilo. Graciliano escrevia "como quem passa telegrama, pagando caro por palavra", comparava.19 O autor de Vidas secas produzia esses cortes com uma régua.

A régua servia-lhe para os cortes de palavras, frases, períodos inteiros considerados inúteis. Que Graciliano não se limitava a riscá-los à mão livre, não; era um minucioso trabalho de desenhista: aplicava a régua na parte correspondente ao extremo superior das letras, passava um traço; no extremo inferior, novo traço; depois, enchia de tinta, inutilizando-o, sereno, com vagar, acaso com volúpia, o espaço entre dois riscos.20

O principal preceito do escritor caberia perfeitamente num manual de redação contemporâneo: cortar as "gorduras" do texto. O catecismo da literatura moderna previa ainda a objetividade, a concisão, a simplicidade, a busca pelo antiliterário, a atenção a maneiras, costumes e falas locais, a ênfase na ação e no aspecto visível da cena, o abandono do supérfluo e das palavras difíceis. A proposta era escrever de forma simples, que pudesse ser compreendida imediatamente por qualquer um. Nada que soasse estranho a um jornalista de hoje. "Você faz como as lavadeiras de Alagoas. Elas pegam a roupa suja para a primeira lavada, espremem, ensaboam, batem na pedra, dão outra lavada, passam anil, espremem novamente, botam no sol para secar, depois apertam", explicou Graciliano Ramos ao também jornalista e escritor Joel Silveira. "Quando não sai mais uma gota, aí você publica."21

Numa cena de São Bernardo, Graciliano explora o conflito entre o jornalismo beletrista de então e uma literatura que se queria realista: o protagonista, Paulo Honório, desiste de contratar um ghost writer, redator e diretor de O Cruzeiro, "periodista de boa índole que escreve o que lhe mandam" e passa a contar ele mesmo sua história.22 Ao ler os dois primeiros capítulos escritos pela pena alugada, o narrador dá um veredicto:

— Vá para o inferno, Godim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá quem fale dessa forma!

Azevedo Godim apagou o sorriso, engoliu em seco, apanhou os cacos da sua pequenina vaidade e replicou amuado que um artista não pode escrever como fala.

— Não pode? — Perguntei com assombro.

— E por quê? Azevedo Godim respondeu que não pode porque não pode.

— Foi assim que sempre se fez. A literatura é a literatura, seu Paulo. A gente discute, briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa. Se eu fosse escrever como falo, ninguém me lia.23

Se já tinha desprezo pelos clichês jornalísticos, o ódio maior de Graciliano, expresso pelo narrador de Angústia, Luís da Silva, vai para o literato, bacharel e orador Julião Tavares, com sua linguagem arrevesada, cheia de adjetivos e pensamento nenhum. Ao pavão loquaz e obeso, símbolo do homem de letras que o realismo tentava sepultar, o autor reserva uma morte horrível: "Julião Tavares estrebuchava. Tanta empáfia, tanta lorota, tanto adjetivo besta em discurso — e estava ali, amunhecando, vencido pelo próprio peso, esmorecendo, escorregando para o chão coberto de folhas secas, amortalhado na neblina".24 Era o fim do beletrista.

A cartilha modernista

Uma vez virada a página da modernidade, havia pressa em renegar o passado. Oswald de Andrade, antes da Semana de 22, mantinha ótimas relações com o grupo carioca de Olavo Bilac, José do Patrocínio Filho e Medeiros e Albuquerque, jornalistas escritores que exercitavam sua veia humorística no jornal O Pirralho, fundado por ele, em 1911.25 Depois de se tornar modernista, não perdia a oportunidade de criticar os velhos colegas da imprensa, da boemia e de porta de livraria. Especialmente a "parlapatice léxica do sr. Coelho Neto" e a "cantata decassílaba de Bilac". Pregava uma "poesia bem nossa", que esquecesse de vez "a infamíssima Florença e a Grécia pavorosa de Péricles", buscando inspiração nos "jornais de hoje e nos fatos de nossa vida pessoal".26

A referência à imprensa não era gratuita. Embora se definisse como "um homem sem profissão", Oswald tinha apenas dezenove anos quando começou a trabalhar como jornalista, em 1909.27 Desde então, o escritor matriculado sob o número 179 no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo só deixou de exercer a função em breves intervalos até o fim da vida. Antes de se lançar como um dos principais nomes do movimento modernista, Oswald foi colunista social e redator do Jornal do Comércio, O Jornal, A Gazeta e O Correio Paulistano, colaborou em A Vida Moderna e A Revista, acumulando empregos em vários órgãos de imprensa. Em 1916, tinha uma rotina estafante, pouco condizente com a fama de bon vivant que carregaria pelo resto da vida. "Vou para casa, deixando a redação do Jornal do Comércio, às três e meia da madrugada. Estou às sete da manhã no jornal de Cásper Líbero A Gazeta", relatou em Um homem sem profissão.28 Personagens dessa época reaparecem em Memórias sentimentais de João Miramar, que, embora tenha sido publicado apenas em 1924, começou a ser escrito na década anterior. De fato, soa como um planejamento estratégico a primeira frase do livro: "João Miramar abandona momentaneamente o periodismo para fazer sua entrada de homem moderno na espinhosa carreira das letras".29

Foi como repórter que Oswald fez seu decisivo contato com Mário de Andrade, em 1917. Até então, Mário era apenas o irmão do Carlos, seu colega de infância no ginásio. Ao relatar o encontro fundamental para a eclosão do movimento modernista, Oswald dá mostras de sua agressividade na busca da notícia:

O sr. Elói Chaves, então secretário de Justiça, foi fazer uma conferência no conservatório [...]. Quem o saudou foi o Mário de Andrade, que se revelou literariamente nessa oportunidade, fazendo um belo discurso. Briguei a tapa com um repórter de outro jornal para obter o texto da saudação — e obtive-o. Mário de Andrade ficou sensibilizado, e daí por diante se fez meu amigo.30

Oswald soube usar o prestígio de repórter talentoso, com coberturas importantes, até mesmo em áreas como política e esportes, nos principais jornais do país para publicar uma série de artigos sobre o movimento modernista.31 Especialmente no Correio Paulistano, onde assumiu a seção literária e chegou a ser correspondente na Europa, entrevistando personalidades como o guru Krishnamurti. "O Correio Paulistano teve grande importância para os modernistas, não só no período que antecedeu à Semana de Arte Moderna, como depois, no período de agitação literária que se estendeu até 1930", reconheceria.32 Aquele que era então o principal jornal paulista tinha Cassiano Ricardo e Plínio Salgado como redatores e Menotti del Picchia como cronista social e redator político. Porém, foi no nacionalmente conhecido Correio da Manhã, em 1924, que Oswald lançaria o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, e onde decretaria: a poesia existe nos fatos.

A doce música mecânica

A frase, que simbolizava o projeto da vanguarda de transformar o cotidiano em objeto artístico, ainda ecoava em 1940, quando outro jornalista escritor identificado com o modernismo, Carlos Drummond de Andrade, publicou o "Poema do jornal":

O fato ainda não acabou de acontecer

e já a mão nervosa do repórter

o transforma em notícia.

O marido está matando a mulher.

A mulher ensangüentada grita.

Ladrões arrombam o cofre.

A polícia dissolve o meeting.

A pena escreve.

Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.

Foi essa doce música que o levou a dizer que, além da literatura, só faria uma coisa com prazer: o jornalismo profissional.34 Drummond se referia não ao trabalho de cronista, que manteve paralelamente ao de funcionário público, mas ao

[...] jornalismo no duro, que vai pela noite adentro ou pelo dia afora, conforme a pressão da notícia. Jornalismo suado e sofrido, com algo de embriaguez, pela sensação de viver os acontecimentos mais alheios à nossa vida pessoal, vida que fica dependendo do fato, próximo ou distante, do imprevisto, do incontrolável, da corrente infinita de acontecimentos. Isso eu pratiquei em escala mínima, como redator de jornais em Belo Horizonte, na mocidade remota. Mesmo em escala modesta, senti o frisson da profissão. Sempre gostei de ver o sujeito às voltas com o fato, tendo de captá-lo e expô-lo no calor da hora. Transformar o fato em notícia, produzir essa notícia do modo mais objetivo, claro, marcante, só palavras essenciais. Ou interpretá-lo, analisá-lo de um ponto de vista que concilie a posição do jornal com o sentimento comum, construindo um pequeno edifício de razão que ajude o leitor a entender e concluir por si mesmo: não é um jogo intelectual fascinante? E renovado todo dia! Não há pausa. Não há dorzinha pessoal que possa impedi-lo. O fato não espera. O leitor não espera. Então você adquire o hábito de viver pelo fato, amigado com o fato. Você se sente infeliz se o fato escapou à sua percepção.35

Quando perguntado explicitamente se o trabalho jornalístico poderia atrapalhar o desenvolvimento do escritor, Drummond garantiu:

De jeito nenhum. O jornalismo é escola de formação e de aperfeiçoamento para o escritor, isto é, para o indivíduo que sinta a compulsão de ser escritor. Ele ensina a concisão, a escolha das palavras, dá noção do tamanho do texto, que não pode ser nem muito curto nem muito espichado. Em suma, o jornalismo é uma escola de clareza de linguagem, que exige antes clareza de pensamento. E proporciona o treino diário, a aprendizagem continuamente verificada. Não admite preguiça, que é o mal do literato entregue a si mesmo. O texto precisa saltar do papel, não pode ser um texto qualquer. Há páginas de jornal que são dos mais belos textos literários. E o escritor dificilmente faria se não tivesse a obrigação jornalística.36

Aos dezessete anos, Drummond tomou coragem e entrou na redação do Jornal de Minas, oferecendo-se para escrever. Sua estréia na "grande imprensa" foi o artigo "Diana, a moral e o cinema...", publicado em 15 de abril de 1920, e que já traía um projeto de profissionalização.

Era um jornal mais de cavação, sabe? Modesto, como o Diário de Minas, de quatro páginas, mas sem a importância política do Diário [...]. Então, eu saía do hotel e passava lá embaixo, via aquele jornal — porque o jornal sempre me fascinou muito. Desde garotinho eu gostava de ler jornal, eu via aquilo, e então um dia eu calcei a cara e apareci lá dentro, e levei umas tiras para o redator do jornal. Naquele tempo, a gente não chamava lauda, não. Não sei se você sabe, eram meias folhas de papel cortadas ao meio. Eram compridas, chamavam-se tiras, eram tiras. Então levei-as manuscritas, ninguém escrevia à máquina, era tudo muito pobre, muito primitivo. O palhaço do diretor, cujo prazer era fazer tudo com o mínimo de despesa, achou que podia aproveitar as minhas coisas, porque ele não pagava nada [...]. De modo que eu comecei a me interessar por aquilo, e cheguei até lá com uma espécie de começo de tentativa de profissionalização. Perguntei a ele se não podia me remunerar. Disse-me que sim, que podia pagar qualquer coisa [...]. Mas pagou uma insignificância. Então eu achei, assim, já muito pretensioso, achei que não devia continuar lá e saí.37

O poeta resolveu procurar o jornal concorrente, o Diário de Minas: "Não conhecia ninguém. Fazia aquilo com a cara e a coragem. E qual não é a minha surpresa quando dois dias depois sai a minha colaboraçãozinha, no alto, e se não me engano com grifo".38 Seu primeiro texto, uma crítica de livro, foi publicado em 13 de março de 1921. Uma semana depois, o jovem colaborador foi apresentado na seção Crônica social como uma grande promessa. "Carlos Drummond, que iniciou com duas páginas de linguagem medida e pensamentos originais a sua colaboração neste jornal, é um adolescente cuja cabeça se coroa com as rosas delicadas da primeira mocidade."39

Na mesma época, começou a escrever para a revista Para Todos. Mas era preciso pensar na vida prática. Formado, o poeta voltou a Itabira para ser fazendeiro ou farmacêutico, embora soubesse que não tinha vocação para uma coisa nem outra. Preferiu trabalhar como professor ginasial. Até que um amigo lhe escreveu sobre uma vaga de redator no Diário de Minas. Contratado, deixou de ser colaborador para ser profissional, alugando sua pena para o jornal do Partido Republicano mineiro. Pobre e mal equipado, o Diário de Minas era composto manualmente, uma espécie de primo-pobre do Minas Gerais¸ órgão oficial do governo (e onde Drummond também trabalharia). Não passava de um boletim, lembra o poeta, mas um boletim que chegou a ter como redatores os escritores Afonso Arinos de Melo Franco, Cyro dos Anjos, Emílio Moura e João Alphonsus.

O jornal foi o centro aglutinador dos modernistas mineiros e seu elo com os paulistas, como Mário de Andrade, que ali tinha seus textos publicados. Como ao governo só interessava a parte política, rigorosamente controlada pelo poeta Mário de Lima, a área cultural desfrutava de liberdade quase absoluta, para a irritação dos literatos conservadores, que reclamavam dessa onda de modernismo às custas do governo.

Nada como ter vinte anos nos anos 1920. Drummond definiria o Diário de Minas em um poema dedicado ao companheiro Emílio Moura:

O Diário de Minas, lembras-te, poeta?

Duas páginas de Brilhantina Meu Coração e Elixir de Nogueira

uma página de: Viva o Governo

outra — doidinha — de Modernismo.40

O próprio Emilio revelou que, para esquentar o jornal, o chefe e sua turma inventavam vários colaboradores: "modernistas uns, outros passadistas, jogávamos estes contra aqueles, forjávamos polêmicas crudelíssimas. Drummond era inesgotável em iniciativas dessa natureza".41 Entre elas, forjar votos para um concurso que elegeria o príncipe e a princesa dos poetas mineiros e que, naturalmente, tinha seu nome entre os mais fortes concorrentes.

À frente do jornal, Drummond apressou-se a divulgar a visita da caravana modernista a Minas, em 1924. Foi uma chance de seus jornalistas se aproximarem de gente como Oswald e Mário de Andrade, a quem ciceronearam pela cidade. Depois das despedidas, Mário se tornou uma espécie de orientador literário dos mineiros, principalmente de Drummond. A ele, reservava conselhos até sobre a carreira de jornalista e a vida pessoal.

Cuidado com o Diário de Minas, hem! Grude nele fazendo, como redator, é lógico, as concessões indispensáveis para sustentar o lugar. Isso não é feio não, Carlos, e não é pra desculpar coisa nenhuma que hoje cheguei à convicção de que a gente fazendo pequenas concessões humanas e imbecis consegue muito mais pras próprias orientações que sendo inflexível.42

Essa estratégia de conciliação permitiria a sobrevivência e até mesmo a projeção de intelectuais de esquerda em órgãos de imprensa e repartições durante a ditadura de Vargas. Drummond, que entrou no jornal como redator, por conta de intrigas políticas que derrubaram seu antecessor, pouco depois seria promovido a redator-chefe, com direito a nome no cabeçalho do jornal que, como ele mesmo afirma, ninguém lia. E foi mais do que chefe. Afonso Arinos, em seu livro de memórias, A alma do tempo, o chamou de carrasco-chefe. João Alphonsus descreveu o Drummond jornalista em tintas mais amenas no conto "O homem na sombra ou a sombra no homem".43

Ricardo guardou os versos no bolso da capa de gabardinhe e foi sentar-se na mesa de revisão, porque ele era revisor do jornalzinho, debaixo da escada que levava ao andar de cima. Uma porta à esquerda deixava entrar a algazarra dos tipógrafos lá dentro da sala deles, trabalhando e conversando. Ricardo pensou: se proibissem tanta conversa não tinha tanto pastel. E bocejou. Mas o ruído arranhado da pena do redator-chede dominava a algazarra, na salinha da redação-revisão. Só a pena que corria: o resto tinha um ar de vagareza, lentidão, melancolia. Ricardo levantou-se para novo momento de intimidade literária. A pena parou.44

Drummond sempre negou a versão de que fosse um chefe tirano. Cercado por aspirantes a escritor, como ele próprio, via, no entanto, o trabalho no jornal de forma profissional, e não como um simples prolongamento da amizade literária.

Eram antes de tudo meus amigos e só a contingência do serviço me fazia dar-lhes tarefas. Eu respondia pelo jornal, tinha de explorar bem os amigos, pois com eles é que contava. Afonso fazia a crítica literária e matérias especiais, sempre ótimo. João Alphonsus tinha a chata missão dos editoriais, que não deviam dizer absolutamente nada, com ar de dizer alguma coisa solene e reservada. João fazia aquilo o mais sumariamente possível. Sempre faltavam algumas linhas para preencher o espaço nobre. "João, mais cinco linhas." Ele voltava à mesa, pachorrento, escrevia três. "João, meu velho, mais duas." [...]. João escrevendo sempre um editorial sobre pecuária mineira, método pedagógico Decroly, benemerências do governo estadual. À mão: ninguém escrevia à máquina, naquela pré-história. É a imagem que conservei dele, indo e vindo, lento, entre duas mesas. Em compensação, vingava-se do espartilho oficial na crônica assinada por i, de Inácio e Inacinho, pai e filho, de humor delicioso.45

O registro escrito que Drummond deixou daqueles tempos ficaram guardados no próprio Diário de Minas, como na crônica publicada em 27 de maio de 1923, na coluna Notícia Elétrica.

Que é um jornal? É a crônica da vida dos outros. Registro com pouca ou nenhuma gramática, dos heroísmos, das traficâncias e das patifarias dos outros. Os crimes, os desastres, as cotações, os discursos, as poesias, os roubos [...]. Tudo está lá dentro, gemendo e vibrando, entre duas páginas, com tipos grandes, entrelinhas e clichês.46

O jornalismo esteve intimamente ligado às primeiras manifestações do modernismo mineiro. Das primeiras ousadias do Diário de Minas ao lançamento de A Revista, em 1925, fundada por Drummond e seu grupo, houve um processo de amadurecimento. "O periódico foi não apenas veículo, mas espaço que, juntamente com o processo renovador que sofria a cidade em vários campos, propiciou a eclosão do grupo."47 Em Belo Horizonte, nas três primeiras décadas do século 20, nasceram e morreram 160 publicações e duzentos jornais, como contabiliza Humberto Werneck em O desatino da rapaziada: jornalistas e escritores em Minas Gerais.48 A maioria morria de inanição, por falta de dinheiro, de assunto e de público, segundo o escritor Cyro dos Anjos, que trabalhou no Diário da Tarde, Diário da Manhã (onde quase foi linchado pelos leitores quando descobriram que tinha inventado uma série de matérias sobre uma casa mal-assombrada) e no Diário do Comércio, todos órgãos de imprensa nascidos e mortos em 1927. Mas A Revista foi, com seus três únicos números, a mais importante publicação dos modernistas mineiros, ao lado dos parcos seis da revista Verde, editados entre 1927 e 1929 pelo grupo de Cataguases, que incluía o escritor e jornalista Guilhermino César (mais tarde secretário de redação do Estado de Minas).

Nos textos do Diário de Minas, já se vê um traço programático de Drummond, que é a valorização do prosaico. "Num mundo de coisas tão pequenas, por que motivo deveria o pensamento subir a espaços quase inatingíveis? Alegremo-nos com a vulgaridade, que é boa e graciosa, fácil e convidativa", dizia numa crônica de 22 de dezembro de 1922.49 Como crítico, protegido das rusgas provincianas por pseudônimos como Antonio Crispin, Drummond construiu seu modelo literário, delimitando as diferenças de temática e linguagem entre o modernismo e a literatura sorriso, defendendo uma poesia marcada pelo coloquial.

Em 1930, já transferido para o jornal Minas Gerais, onde trabalhou como redator, Drummond aproveitou o cargo para publicar seu primeiro livro pela Imprensa Oficial.

Consegui do diretor Abílio Machado, que era um santo homem, publicar a crédito e ir pagando aquilo aos poucos. Eu pegava dez exemplares do livro ou cinco e levava para a Livraria e Papelaria Oliveira e Costa e deixava lá. À medida que era vendido eu recebia um dinheirinho e pagava a Imprensa Oficial. Naquele tempo não havia essa boca livre da Imprensa Oficial dar prêmios e publicar os livros de graça. Não, absolutamente.50

Drummond levava a sério o jornalismo. Tanto que, em 1928, Assis Chateaubriand o convidou para trabalhar num dos jornais dos Diários Associados em São Paulo. Mário de Andrade chegou a oferecer-lhe a casa para ficar. Mas Drummond acabou não indo. A lembrança do convite foi motivo para o poeta discutir sua frustração com a vida literária brasileira.

Este prolongamento da relação intelectual em relação afetiva é das coisas mais lindas que a literatura pode oferecer. Evidentemente, não acontece sempre, nem é para isso que existe a literatura. Mas, se acontece, paga bem, paga até demais essa espécie de enjôo que a literatura muitas vezes nos causa, não ela em si, mas as situações que sua prática estabelece, quando a vaidade e a ambição fazem do escrever um negócio sujo [...]. Não iria culpar a vida literária por um vício que afinal se encontra em qualquer tipo de associação humana. Observo apenas que os chamados literatos têm mais tendência a se atacarem, a se ridicularizarem, principalmente na ausência uns dos outros, do que por exemplo a corporação dos sapateiros. Raramente se encontra um sapateiro falando mal do serviço do colega. Nas letras, isso é habitual e quase obrigatório [...] há um fundo de insegurança na atitude descaridosa do escritor que não poupa os colegas. Ele não está bem certo de que passará à posteridade ou, antes, não tem a menor certeza disso. E sofre, em geral. Então, compensa-se cortando na pele do colega.51

A razão de tanta competitividade seria a falta de um mercado literário.

O escritor continua mais ou menos um marginal no processo de desenvolvimento, que é puramente econômico, sem sentido cultural. O mercado que se abre para o livro ainda está na infância, com todo o rosário de moléstias infantis. A literatura resiste como forma de solidão à margem de 110 milhões de seres.52

Ou antes a própria "inutilidade da literatura".

Eu me atrevo a questionar a legitimidade da literatura como valor humano, mas Deus me livre de indicar missão ou tarefa para os meus semelhantes, interessados na atividade imaginativa. Diria apenas que os romances, os poemas, os quadros, as esculturas, os nobres edifícios não evitaram nem atenuaram a barbárie extrema de certas épocas, e a brutalidade habitual nos choques de interesses em qualquer época, e até às vezes extraíram sua seiva de crueldade desses fenômenos. E isso me dá a sensação desconfortável da inutilidade vaidosa do ato de escrever.53

Depois de passar por A Tribuna, periódico criado em 1933 para substituir o Diário de Minas, Drummond deixou o jornalismo diário para se tornar chefe de gabinete de Gustavo Capanema, seu amigo de colégio, ministro da educação e saúde entre 1934 e 1945. Em 1949, o poeta voltou a escrever para o Minas Gerais, como correspondente no Rio de Janeiro, e só se demitiu do cargo de redator em 1953. Jamais se afastou completamente dos jornais, mantendo uma produção regular como cronista do Correio da Manhã e depois do Jornal do Brasil, onde escreveu entre 1969 e 1984. A crônica lhe deu visibilidade, ajudando a projetar seu nome como o do poeta mais popular do país.

Em 1973, Drummond dedicou mais um poema à velha musa, a imprensa: "A casa do jornal, antiga e nova".

Rotativa do acontecimento

Vida fluindo

pelos cilindros,

rolando

em cada bobina.

Rodando

em cada notícia.

No branco da página

explode.

Todo jornal é explosão.

Café matinal

de fatos

almoço do mundo

jantar do caos;

radiofoto.

Restruturam-se os cacos

do cosmo

em diagramação geométrica.

A cada méson

de microvida

contido

na instantaneidade do segundo

e vibração eletrônica

da palavra-imagem

compõe

decompõe

recompõe

o espelho de viver

para servir

na bandeja de signos

a universalidade

do dia.

A casa da notícia

com degraus de mármore

e elevador belle époque

alçada em torre

e sirena

chama os homens

a compartir

o novo

no placar nervoso

dos telegramas.

Olha a guerra,

olha o reide,

olha o craque da Bolsa,

olha o crime, olha a miss,

o traspasse do Papa,

e o novo cisne plúmbeo

do Campo de Santana.

Fato e repórter

unidos

re-unidos

num só corpo de pressa,

transformam-se em papel

no edifício-máquina

da maior avenida,

devolvendo ao tempo

o testemunho do tempo.

Na superfície impressa

ficam as pegadas

da marcha contínua:

letra recortada

pela fina lâmina

do copydesk;

foto falante

de incrível fotógrafo

(onde colocado:

na nuvem? na alma do Presidente?);

libertário humor

da caricatura

de Raul e Luis

a — 50 anos depois —

Lan e Ziraldo.

Paiol de informação

repleto, a render-se

dia e noite

à fome sem paz

dos linotipos,

casa entre terremotos

óperas, campeonatos

revoluções

plantão de farmácias

dividendos, hidrelétricas

pequeninos classificados

de carências urgentes,

casa de paredes de acontecer

chão de pesquisa

teto de detetar

pátria do telex infatigável

casa que não dorme

ouvido afiado atento

ao murmulho mínimo

do que vai, do que pode

quem sabe? acontecer.

Um dia

a casa ganha nova dimensão

nova face

sentimento novo

diversa de si mesmo

e continuamente

pousa no futuro

navio

locomotiva

jato

sobre as águas, os caminhos

os projetos

brasileiros

usina central de notícias

cravada na estrela dos rumos

N S L O

em cobertura total

da vida total:

conhecimento

comunicação.

Todo jornal

há de ser explosão

de amor feito lucidez

a serviço pacífico

do ser.54

Seria impossível que autores tão identificados com uma nova linguagem literária, como Drummond, Oswald e Graciliano não tivessem levado a marca inconfundível de seu estilo para as redações dos jornais, revolucionando os gostos pelas exclamações, reticências, adjetivos e superlativos. Afinal, jornalistas e escritores estavam sendo influenciados pelas mesmas forças culturais de seu tempo. Mas a verdade é que só quando uma nova geração chegou aos cargos de chefia é que a cartilha modernista se tornou também o manual de redação. Influenciada pelo jornalismo americano, a imprensa nacional descobriu que já era hora de romper de vez com a literatura e se constituir como um campo completamente em separado.

Os anos 1950 foram o grande marco da imprensa nacional. Os jornais "passaram por grandes transformações, tornaram-se de fato empresas comerciais detentoras de poder econômico e introduziram inovações técnicas, gráficas e editoriais".55 Boa parte dessas inovações foram trazidas por jornalistas que viveram nos Estados Unidos na década anterior e depois trabalharam para o Diário Carioca, a Última Hora e Jornal do Brasil, que, com a criação do Suplemento Dominical (sdjb) em 1956, deixaria o concretismo freqüentar suas páginas, não só como tema de reportagens, mas como modelo de diagramação.

A transformação do Jornal do Brasil, de um jornal de pequenos anúncios de empregadas domésticas até os anos 1950 para o jornal mais influente dos anos 1960-1970, teve como ponto de partida o sdjb, e pode ser creditada também a uma inédita expansão do mercado publicitário.

A imprensa, que até os anos 1930-1940 dependia dos favores do Estado, de pequenos anúncios populares ou domésticos e da publicidade das lojas comerciais, teve essa situação alterada. Nos anos 1950 começaram os investimentos no setor publicitário e teve início a implantação no país das grandes agências nacionais e estrangeiras de publicidade; os anúncios nos jornais se diversificaram, encontrando-se desde anúncios de automóveis, eletrodomésticos, produtos alimentícios e produtos agrícolas até anúncios de produtos artesanais os mais variados [...] os jornais passaram a obter oitenta por cento de sua receita dos anunciantes.56

O aparecimento do sdjb não foi um fato isolado. Todos os grandes jornais diários, como o Correio da Manhã, O Diário de Notícias e O Estado de S. Paulo contavam com suplementos ou seções específicas para a cultura na década de 1950, a maior parte dirigida por escritores, como Otto Lara Resende, responsável pelo suplemento Letras e Artes do jornal A Noite. Estes suplementos funcionavam como ponto de encontro de gerações de escritores nascidas entre 1880 e 1930.

Desde o início, os poetas Ferreira Gullar, Reynaldo Jardim e Mário Faustino estiveram à frente do sdjb, onde escreveriam também Carlos Heitor Cony, Zuenir Ventura, Clarice Lispector, Carlinhos Oliveira, além de jovens intelectuais como José Guilherme Merquior e Glauber Rocha. "Como um subversivo que vai infiltrando seus pares, sugeri que convidassem o Amilcar de Castro. É assim que se faz a história: um grupo de pessoas que pensa igual e quer incutir uma idéia nova, propagando-a", recorda Gullar. "O Reynaldo Jardim adorou e começou ele próprio a fazer igual, de maneira às vezes até mais audaciosa e irreverente. Isso criou problema com a direção, novamente a história do branco, do papel sobrando."57

Com a publicação de A luta corporal, em 1954, o copidesque Ferreira Gullar se aproximou dos poetas concretistas Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Em 1956, seria realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro a Exposição Nacional de Arte Concreta. O sdjb, recém-lançado, seria o centro da discussão entre concretistas paulistas e cariocas. E a publicação do artigo "Da fenomenologia da composição à matemática da composição", em que os Campos defendiam uma poesia segundo fórmulas matemáticas, ao lado de um artigo de Gullar, "Poesia concreta: experiência fenomenológica", negando a relação causal entre linguagem matemática e linguagem verbal, foi o marco do rompimento entre os dois grupos.

À frente do concretismo carioca, Gullar arriscaria projetos como o livro-poema e o poema espacial. Algumas dessas criações ousadas foram publicadas no sdjb, e a reação do público levou o jornalista a perceber a falta de comunicabilidade dessas experiências poéticas. Enveredando por uma discussão cada vez mais de vanguarda, intelectual e antiacadêmica, o sdjb angariou antipatia, afastando-se do leitor comum, dos medalhões da abl e dos interesses do mercado editorial.

Embora tenha sido a semente da renovação gráfica e editorial do Jornal do Brasil e conquistado peso intelectual ao se tornar porta-voz da vanguarda, o caderno recebia muitas críticas internas: difícil, ininteligível, feito só para iniciados, patoteiro. Os donos do jornal se dividiam entre os que amavam o sdjb — a condessa Pereira Carneiro —, e os que o detestavam —, seu genro Nascimento Brito. Em 1958, Gullar, que ocupava o poderoso cargo de chefe do copidesque, acabou demitido numa desavença interna. Menos de um ano depois, foi chamado de volta, num momento que coincide com o lançamento do movimento neoconcretista no Rio, cujo manifesto foi publicado numa edição especial do sdjb. Mas o suplemento só sobreviveria até 1961. Dois anos depois, Gullar seria demitido, após liderar uma greve. E foi trabalhar como copidesque na surcursal de O Estado de S. Paulo, onde passou três décadas, com um único intervalo de oito anos, quando esteve no exílio e na clandestinidade. Durante todo esse tempo, o Estadão continuou pagando seu salário, o que permitiu a sobrevivência da família. Essa era uma norma desde que Júlio de Mesquita Filho, o diretor do jornal, teve que se exilar durante a ditadura Vargas. Fora do jornal e do Brasil, Gullar lançou seus livros mais aclamados, Dentro da noite veloz (1975) e Poema sujo (1976).

Mas um de seus poemas mais famosos, "Traduzir-se", foi escrito em plena redação. O que não é de se estranhar. Embora não tenha sido este o objetivo de Gullar, percebe-se no texto uma clara divisão entre o profissional, preso ao dia-a-dia, e o artista, com seu estranhamento profundo.

Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém

fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Uma parte de mim

pesa e pondera:

outra parte

delira.

Uma parte de mim

almoça e janta:

outra parte

se espanta.

Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

Traduzir uma parte

na outra parte

— que é uma questão

de vida e morte —

será arte?58

Gullar não se ressente de ter dedicado mais de quatro décadas de sua vida à imprensa, com direito a passagens pela revista Manchete e pelo Diário Carioca. Para ele, o jornalismo moderno, em sua cruzada para expurgar o nariz de cera e a subliteratura de suas páginas, acabou por fazer os escritores de sua geração enxergarem a palavra como um instrumento, que podia e devia ser afiado. Por sua vez, a poesia também seria útil ao jornalismo.

Sim, deu um domínio maior da língua, uma segurança maior com relação ao instrumento e uma preocupação nata com a economia, com a eficiência da linguagem, com a palavra que não pode ser nem mais nem menos. A poesia é a linguagem econômica por definição. Isso no jornalismo é importante. Desde que não se leve dez horas para fazer uma notícia.59

Os idiotas da objetividade

Os anos 1950 deram início ao processo que iria substituir definitivamente a influência da imprensa francesa, prolixa e opinativa, pela americana, concisa e objetiva. Mas muita gente não gostou desse novo paradigma. Foi contra as novas regras que o escritor e jornalista Nelson Rodrigues se insurgiu quando chamou os copidesques de "idiotas da objetividade".60 E reclamava que seriam capazes de reescrever o próprio Proust. No que estava absolutamente certo, já que, dali em diante, literatura seria uma coisa, jornalismo, outra. Uma das missões da ditadura da objetividade era fincar as fronteiras entre os dois gêneros.

O conceito de objetividade, no entanto, também era algo recente, mesmo na imprensa americana.

Na última parte do século 19, os jornalistas falavam sobre alguma coisa que chamavam de realismo, não objetividade. Essa idéia era a de que se os repórteres cavassem os fatos e os ordenassem direito, a verdade apareceria naturalmente. O realismo emergiu numa época em que o jornalismo se separava dos partidos políticos e se tornava mais preciso. Coincidia isso também com a invenção do que os jornalistas chamam de pirâmide invertida, no qual o profissional coloca os fatos partindo do mais importante até o menos importante, achando que com isso ajuda os leitores a entender as coisas de uma forma mais natural.61

Ao longo do século 20, este conceito de realismo jornalístico, baseado numa verdade natural oferecida pelos fatos, seria minado pela propaganda política fascista (que mostrou como era possível manipular qualquer fato), pelas teorias freudianas (que demostraram o quanto o inconsciente influenciava nossa interpretação do mundo), pelo relativismo cultural e até mesmo pela própria capacidade de simulação da literatura naturalista—realista. Considerado ingênuo, seria gradativamente substituído pelo da objetividade, cuja proposta era de que os jornalistas passassem a seguir um método científico de apuração. A partir de então, "a educação jornalística deveria ter como ponto central o estudo da prova e da verificação".62 A objetividade, porém, também não seria um conceito isento de problemas.

Esse ponto tem algumas implicações importantes. Uma delas é que a voz imparcial utilizada por muitas empresas jornalísticas, aquele familiar, supostamente neutro estilo de redação de notícias não é um princípio fundamental do jornalismo. Ao contrário, é quase sempre um recurso oportunista que as empresas usam para destacar o fato de que produzem alguma coisa obtida por métodos objetivos. A segunda implicação é que essa voz neutra, sem uma disciplina de verificação, cria um verniz que esconde alguma coisa turva.63

A passagem de um modelo para o outro foi rápida, como testemunhou Nelson Rodrigues. Em 1950, cansado de passar o dia na redação e a madrugada escrevendo teatro, o jornalista resolveu deixar os Diários Associados disposto a tentar a sorte. Ficou um ano desempregado e, apesar de finalmente ter tempo de sobra, só escreveu uma peça.64 Quando quis voltar às redações, tudo estava mudado. Como deixou claro num artigo em que falava da morte de Assis Chateaubriand, "passara a época do grande jornalista". Agora, seu fantasma estava condenado a "vagar, por entre as mesas, cadeiras e estagiárias das redações como uma lívida figura sem função e sem destino", preso a sua "inatualidade", alguém "secundário e irrelevante" para a imprensa moderna.65

Em 1952, o dinossauro da velha imprensa tentaria se integrar aos novos tempos, na Última Hora, recém-criada. O jornal foi o herdeiro da sede e do sonho de criar o novo jornalismo brasileiro, iniciado dois anos antes pelo Diário Carioca, o primeiro a implantar o lide no Brasil.

Sem dúvida, a imprensa brasileira, na década de 1950 foi abandonando uma de suas tradições: o jornalismo de combate, de crítica, de doutrina e de opinião. Essa forma de jornalismo convivia com o jornal popular, que tinha como características o grande espaço para o fait-divers, para a crônica e para a publicação de folhetins. A política da atualidade não estava ausente, mas era apresentada com uma linguagem pouco objetiva.66

Criado no antigo cenário, Nelson destoava daquela redação cinematográfica, moderna e ascética. Para quem tinha começado aos treze anos num jornal como o combativo e sensacionalista A Manhã, criado por seu pai, Mário Rodrigues, era difícil se acostumar com mesas e cadeiras de alumínio. A descrição de Ruy Castro é saborosa:

A redação de A Manhã era como outras do Rio naquele tempo. Uma sala comprida, com muitas escrivaninhas, cabides para os chapéus e um ou dois telefones de manivela. Poucas máquinas de escrever (daqueles Royal, pretas) e ainda menos gente que as soubesse usar. A maioria dos redatores escrevia a mão, com penas francesas da marca Mallat, em folhas de papel almaço. Usavam viseira como nos filmes, enceravam os bigodes e estavam mais preocupados com as ênclises, próclises e mesóclises do que com as notícias. Os paginadores sofriam: tinham que contar letra por letra, para calcular o espaço da matéria na página. Os linotipistas não sofriam menos, porque os redatores [...] escreviam com garranchos, quase impossíveis de decifrar.67

Mais difícil para Nelson era se acostumar ao fato de que a mistura de jornalismo e ficção, de que o jornalismo sensacionalista tanto se fartou, dava lugar ao modelo americano de texto uniformizado. Redatores como ele, que praticamente escreviam as matérias para os repórteres, foram substituídos pelos copidesques, os tais "idiotas da objetividade", que policiavam não só a língua e o estilo, como a veracidade das informações e sua exposição segundo as regras da pirâmide invertida, mudando a ordem dos fatores de forma a responder logo no primeiro parágrafo às questões elementares: O quê? Quem? Quando? Onde? Por quê?

Era o fim da imprensa com ponto de exclamação, que tinha feito a glória e a miséria da família Rodrigues. E também do jornalista de vários empregos, já que a Última Hora pagava o triplo dos outros jornais para ter exclusividade. Até contra isso Nelson reagiria, numa adaptação do conceito de "arte pela arte" para o jornalismo que se profissionalizava.

Na velha imprensa, nada mais intranscendente do que a publicação de uma notícia, fosse ela sublime ou vil. Bastava o visto do diretor. A casa não pagava, mas havia respeito, hierarquia, subserviência. Mal remunerado, o funcionário vergava os ombros até os sapatos. Agora, tudo mudou.68

Mas, para Nelson, o grande e irredutível abismo entre a velha e a nova imprensa era a linguagem. E propunha: "Examinem duas manchetes — uma de 1908 e outra de 1967". A primeira, além de enorme impacto visual, era "um uivo impresso". Sem o adjetivo, o jornalismo estava sendo "castrado emocionalmente", acreditava. Ele mesmo reconhecia que o adjetivo era sua "tara estilística".69

Nelson reagiu como pôde à superação do jornalismo literário pelo normatizado e até mesmo aos novos códigos de conduta, que exigiam a verdade e nada mais que a verdade. Como na Última Hora ninguém podia fazer literatura, a não ser em artigos assinados, para ele foi reservada uma coluna diária de crônicas, A vida como ela é... A idéia era que escrevesse a partir de fatos reais. Mas o escritor preferiu inventar tudo, preenchendo sua coluna com os mesmos personagens típicos da Zona Norte carioca que faziam parte de suas reportagens e de seu teatro. Assim se tornou o jornalista mais popular do Rio.70

Com seu nome, sem apelar para pseudônimos, Nelson Rodrigues só publicou um romance, O casamento, e um folhetim, Asfalto selvagem. Nele, levaria para a literatura os dramas de A vida como ela é. Um dos personagens de Asfalto selvagem era um repórter sem escrúpulos, Amado Ribeiro, da Última Hora, que realmente existia, assim como vários outros jornalistas escritores citados: Otto Lara Resende, Wilson Figueiredo e Carlinhos Oliveira. Vítima preferencial, Otto seria citado em dezenas de histórias de A vida como ela é... e veria se nome no título de uma peça de Nelson, Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária.

O folhetim Asfalto selvagem foi transformado em livro de dois volumes, assim como A vida como ela é..., que teve suas histórias gravadas em disco, lançadas como fotonovela e narradas na rádio. Mas a situação dos direitos autorais no país impedia até mesmo um escritor tão popular quanto Nelson Rodrigues de viver de sua própria pena. Ele nunca soube quantas edições vendeu nem viu boa parte do dinheiro arrecadado com a sua "subliteratura". O mesmo aconteceu com os outros livros publicados sob pseudônimo.

Em O beijo no asfalto, o escritor voltou à figura do repórter sensacionalista, na pele de Amado Ribeiro. O verdadeiro ria das histórias de Nelson e dizia que era ainda pior do que o retratado. A peça, escrita em 21 dias, foi inspirada na história de um outro repórter, Pereira Rego, que, atropelado por um ônibus, pediu um beijo à pessoa que o socorreu (no caso, uma mulher).

Na ficção, o atropelamento é na Praça da Bandeira e o beijo é pedido a um homem. O repórter da Última Hora vê tudo. Unido a um delegado amoral, cria um escândalo sobre pederastia para vender jornal. Num crescendo angustiante, Nelson descreve as conseqüências destrutivas para a vida daquelas pessoas da reportagem — da mesma forma como, na vida real, a matéria que difamou Sylvia Thibau e provocou a morte de seu irmão Roberto deu início a uma tragédia familiar.

A ficção acabou por invadir a realidade. O próprio Samuel Wainer teria pedido para tirar seu nome e o da Última Hora da peça, que mostrava como o bom e velho sensacionalismo ainda não tinha sido de todo expurgado da nova imprensa. A crise fez com que o Nelson se demitisse do jornal onde trabalhara por dez anos e publicara cerca de mil histórias de A vida como ela é... Ainda assim, manteve a referência à Última Hora e a seu repórter inescrupuloso.