Maurício ou Os paulistas em São João Del Rei

Duas Palavras de Apresentação,

por Affonso Celso, para edição do póstuma do livro custeada no governo de Minas, em 1905.

De bandido nada se percebe no herói. É galhardo, cavalheiroso. Consiste-lhe o crime único em amar d. Leonor, filha de D. Diogo, capitão-mor de São Josão del Rey, no tempo dos bandeirantes, disputando-a à ambição de Fernando, primo da mesma.

Deseja Fernando desposar d. Leonor, com o só intuito de herdar a fortuna e o caro do tio, já idoso.

Abre-se a exposição quando Maurício, foragido, vai buscar, a Ouro Preto, reforços e munições para atacar os emboabas capitaneados, em S. João, pelo cruel e ambicioso Fernando, ataque no qual cumpria proteger ao capitão-mor e à sua mulher.

A Maurício acompanham Itauby, também chamado de Antonio, índio catequizado, filho de Itapema, ex-chefe de poderosa tribo Aymoré, e Iamby, negro forte e corajoso.

Itauby, à semelhança de Maurício, vota ódio de morte aos emboabas; Maurício, pela crueldade com que tratam os indígenas e desdém que empregam relativamente aos altivos ineolas de São Paulo de Piratininga; Itauby, porque eles escravizaram Indahyba, aquela a quem adora, a formosa filha de Irabussú, ex-cacique dos carijós.

Há para Maurício outros motivos de acometer o arraial: vingar-se de Fernando que insidiosamente convencera Leonor ser ele, Maurício, traidor e vilão; justificar-se, ante aquela e o capitão-mor, da morte de Afonso, jovem e impetuoso irmão da moça, que, em renhido combate entre paulistas e emboabas, sucumbira às mãos do mesmo Maurício.

Auxiliado por Itapema e Itauby, alcança Maurício um troço de Aymorés e paulistas fugitivos de S. João. Com essa diminuta gente, vai investir contra o arraial. Em caminho, sucede topar com o seu amigo Gil, que lhe vinha ao encalço, comandando um bando de paulistas. À tropa de Gil agrega-se a de Maurício, formando pequeno exército.

Dirigem-se à gruta do pai de Indahyba, Irabussú. Devem ali reunir-se ao resto de indígenas e paulistas escapos de S. João, após a peleja em que expira o irmão de Leonor. Na gruta, além de Irabussú, o bugre feiticeiro, conforme o alcunhavam os emboabas, estacionava mestre Bueno, velho mestiço, devotadíssimo a Maurício e inimigo, por seu turno, dos emboabas, que lhe haviam escravizado a filha, a graciosa Helena.

Ainda outro afeiçoado de Maurício ali se via, o capitão Nuno, valente paulista.

Apresentavam-se Maurício e Gil para o assalto, quando souberam de Irabussú que Fernando se aliara a Caldeira Brant, celebre bandeirante, orgulhoso e mau, aumentando assim consideravelmente a guarnição defensora do arraial.

Não desanimam. Enviam Iamby entender-se com Amador Bueno, outro afamado bandeirante, de índole benévola, amigo dos paulistas, rival de Caldeira Brant. Propõem-lhe congregar as forças de todos os grupos.

Amador acede, desejoso de responder a um desafio do altaneiro Caldeira Brant. Guiado pelo intrépido Iamby, marcha à frente dos seus, para a gruta de Irabussú, onde este, ao lado de Maurício, Gil, Itauby e mestre Bueno o aguardam impacientes.

Entretanto, Leonor não olvidara Maurício, como Indahyba, identicamente, não olvidara Itauby. Julgava a primeira que Maurício traíra a D. Diogo, pactuando com os indígenas assaltantes do arraial; supunha-o assassino do irmão. Amava-o, a despeito de tudo; e, ao anunciar-lhe Fernando de boa fé a morte de Maurício, não vingou a donzela dissimular o seu desespero. Dai imensa cólera em Fernando. Odiava Maurício, deplorava não o apanhar vivo, para o torturar à vontade, antes de, com a própria mão, o trucidar.

Eis o dia da peleja. Leonor e seu pai vão vê-la do cimo do morro. Indescritível o júbilo da bela, ao avistar na frente dos contrários o nunca esquecido Maurício. São completamente batidos os emboabas e Caldeira Brant; Fernando, mortalmente ferido, não tardará a expirar. Maurício acerca-se do capitão-mor e de sua filha, dando-lhes cabais explicações, restaurando a verdade, perfidamente falseada por Fernando.

Calixto, outro amigo de Maurício, noivo de Helena, corrobora as asserções daquele. Termina a história, a contento geral: mestre Bueno, Itauby e Irabussú abraçam os filhos que choravam; casam-se os adoradores com as respectivas adoradas.

O que diz o crítico

Basílio de Magalhães

A vida tradicional na população rural

"Maurício é romance de costumes, versando sobre o episódio da guerra dos emboadas, que Júlio Ribeiro também aproveitou para o seu "Padre Belchior de Pontes". Foi publicado em dois volumes, anunciando o autor, nas últimas linhas do capítulo final, que a história se remataria em novo livro, "O Bandido do rio das Mortes".

Nestes trabalhos de Bernardo Guimarães é que melhor se observa "a junção das duas tendências - a vida tradicional nas populações rurais".

É a obra de mais fôlego de Bernardo Guimarães e, no gênero, a mais bela. Embora haja ali pouca psicologia e excessiva acumulação de personagens, cujas feições psíquicas são, contudo, bem desenhadas, o romance empolga o leitor, quer pelas cenas da natureza, quer pela movimentação da vida humana.

Se, no ponto de vista rigorosamente histórico, há nele erros [por exemplo, dá Arthur de Sá e Menezes como nomeado governador da capitania de Minas em 1700, quando na verdade é que o foi da Repartição do Sul, desde 1697], palpita a verdade nas descrições de São João del Rey e seus arredores (que, que ali nasci, posso fazer com segurança essa afirmação), particularmente na da nossa calcarea "Casa da Pedra", por ele chamada "Gruta de Irabussú" (capítulo XII). Poucos escritores seriam capazes de traçar melhor que o mineiro as páginas referentes à caçada, que formam os capítulos VI, VII, VIII e IX.

É uma composição em que, sobre o duplo pedestal da paixão de Maurício por Leonor, filha do capitão-mór, também requestada pelo fidalgo Fernando, e do insopitável ódio entre os bandeirantes, conquistadores do hinterland aurífero, e os reinóes, se agrupam e se agitam, em contornos bem gizados, todos os elementos formadores de nossa nacionalidade, o português, o índio e o negro, com os seus subprodutos étnicos.

Quem vir o título de "Bandido do rio das Mortes" esperará ler façanhas truculentas; entretanto, Maurício é um coração mais dominado pelo amor do que pelo patriotismo, e as suas proezas são todos atos de guerra leal, em nenhuma das quais se percebe o latrocínio ou a fúria homicida, índices do verdadeiro chefe de malta do sertão.

No seu alentado romance, Bernardo Guimarães enxertou algumas superstições religiosas, que vieram de Portugal para o Brasil, nos tempos coloniais. Assim, no volume I, capítulo XV, o mais fácil processo de tirar o demônio do corpo de alguém: "Pegue-se ali um cordão bento de S. Francisco, dobre-se em dois, e soltem com ele duas ou três lambadas no bruxo; e se ele não se entregar manso e humilde, como um cachorro, o diabo que me entre também nas tripas!". No capítulo XXII, assustados ante uma jibóia, que não conheciam, os portugueses murmuravam, a tremer, a oração de S. Bento, advogado contra animais venenosos, e perderam de novo o ânimo de avançar.

As comparações são tiradas da nossa fauna. Exemplos: os olhos de Indaíba, filha de Irabussú, "refulgiam tímidos e deslumbrados, como os da veada prisioneira, que do seio da selvas natais se vê de repente transportada para os pátios do paço real"; o corpo de Irabussú, já de si mirrado e esguio, era "flexível como a serpente e ágil como a cotia", o mameluco Tiago, parente de Antonio, "é velhaco, como um jacaré velho", "Bueno exalou um gemido surdo e ameaçador, como o ronco da sucuri no fundo da lagoa, quando ouve o trovão roncar ao longe".

Além de prolóquios lusitanos, a que deu preferência a linguagem vulgar, "plantar verde para colher maduro", tão boa é a corda, como a caçamba", encontram-se ali expressões populares, "lascar guascadas", "ir por súcia", "punir por alguém", "judiar como" (maltratar), e modismos nossos, "bandeireiros" (por bandeirantes), "onceiro" (cão), "ambicioneiro" (ambicioso), "desensarado", "cangapé (corruptela de "cambapé"), "buracada", malvadeza (malvadez), "estrafegado", alinhavar" (por matar), "escorvetear", "prudenciar", "patetear".

Sei que Bernardo Guimarães, para poder elaborar "Maurício" e "O Bandido do rio das Mortes", percorreu meticulosamente todo o cenário, São João del Rey, São José del Rey (hoje Tiradentes) e região. Já havia prometido o primeiro à Casa Garnier, à qual o vendeu por 800$000. Gastou cerca de quatro meses, escrevendo-o numa fazenda de sua sogra d. Felicidade, sita no lugar denominado Rancharia, a cerca de duas léguas de Ouro Preto, faltando-lhe ali papel em branco para terminá-lo, serviu-se das margens de jornais velhos, o que avolumou consideravelmente o original.

(A propósito de d. Felicidade: Bernardo não deixava nunca de fazer espírito até com o belo nome da sogra. Toda vez que alguém lhe aplaudia pelos triunfos literários - pois outros não alcançou ele em vida - ponderava sempre que era "genro da Felicidade...")

Ante as reclamações do editor, meteu o manuscrito num saco de aniagem e assim o despachou. Imagine-se o espanto do velho Garnier, quando recebeu tamanho volume!.

"O Bandido do rio das Mortes" ficou inacabado, mas a dedicada viúva de Bernardo Guimarães, d. Teresa, cuja memória, ainda hoje feliz, conservava bem os episódios bem os episódios que o marido lhe expusera para remate do romance, completou-o, auxiliada nisso, e no conseguimento da impressão, pelo ilustre monsenhor João Paio de Sousa Reis, cujo talento e patriotismo honram o clero nacional. A obra, por isso, não veio à luz pública senão em 1905.

Além do mais que tão enaltecedoramente disse de d. Teresa Guimarães o consagrado poeta e romancista sr. conde de Afonso Celso, a propósito da salvação do "Bandido do rio das Martes", faço meu o seu seguinte juízo: "Revelou inteligente devotamente à obra do esposo morto, equiparável ao de madame Michelet ou ao de madame Alphonse Daudet, acrescentando que a soma de esforços, necessária no Brasil, foi incomparavelmente mais meritória do que a reclamada em Franca".

É irrecusável, nos lineamentos gerais e em certas particularidades, a semelhança do "Maurício" de Bernardo Guimarães com "O padre Belchior de Pontes", de Júlio Ribeiro. O episódio fundamental é o mesmo - o da guerra dos emboabas -- e há cenas evidentemente comuns às duas obras, como a caçada, a da luta com a onça e até a descrição da gruta de calcarea, além de que em ambas se encontra a figura de Amador Bueno, relembrando ainda o Antonio Francisco e a Guiomar da segunda as personagens de Maurício e Leonor.

A primeira parte, isto é, o prólogo "O Iluminado", do romance de Júlio Ribeiro, foi escrita em Sorocaba e inserta no periódico "O Sorocabano", que ele fundou e redigiu ali de 1870 a 1872, tirado logo depois em "raquítico volume", que o próprio autor inutilizou, quando, em virtude de um incidente com a Casa Garnier, lhe entrou na alma o desânimo de ver impressa toda a composição; a segunda parte, "O Sertão", e a terceura, "O Emboabas", foram elaboradas em Campinas, em 1875.

Incumbiu-se desinteressadamente a publicação de toda aquela publicação de toda aquela obra do pujante escritor sabarense e cantor das "Estrelas Errantes" o dr. Francisco Quirino dos Santos, jornalista republicano, saindo ela dos prelos da "Gazeta de Campinas" em dois volumes, o primeiro em 1876 e o segundo em 1877.

Os originais de Maurício" deve ter sido entregues à Casa Garnier em meados de 1876 pelo menos, porque esse romance, em dois tomos de 340 e 294 páginas, respectivamente, foi impresso no Havre, e, como os jornais do Rio de Janeiro só se ocupavam dele em começo de 1877, acredito que foi nessa época que os editores puseram no mercado. É lícito, portanto, presumir que os dois mineiros não se imitaram, nem se influenciaram, mas convergiram fortuitamente e simultaneamente o espírito para a explanação do mesmo assunto histórico e ali se congenializaram em quase forçados aspectos, oriundos dos homens que evocaram e do meio que descreveram.

José Veríssimo ("Estudos de Literatura Brasileira"), que, divergindo da opinião generalizada, considera Bernardo Guimarães melhor poeta do que romancista, diz que o "Maurício" é uma "obra de decadência". Como, porém, o famoso crítico confessa que, ao reler aquele romance, não passou dos primeiros capítulos, cumpre não se tenha em conta de firme e valioso o seu infundamentado laudo.