Folhas de Outono (1883)

Não tenho por costume escrever prólogos ou preâmbulos, precedendo as poucas e fracas produções literárias, que até aqui tenho entregado à luz da publicidade. Entendo que as explicações, que aí se podem dar, as reflexões, que aí se expendem, não lhes podem atenuar os defeitos, nem realçar o mérito, que porventura tenham.

E verdade que um bom prólogo constitui às vezes por si só uma obra magistral, como são, por exemplo, o prólogo do Cromwel, de V. Hugo, alguns prefácios do visconde de Castilho, e os poscritos de José de Alencar, que são incontestavelmente de grande valor literário e filológico. Eu porém não pretendo e nem posso fazer outro tanto ao entregar ao público esta pequena coleção de poesias; mas veio-me a vontade, e me é talvez mesmo necessário por esta vez conversar um pouco com o leitor, se ele estiver por isso.

Em primeiro lugar cumpre-me pedir desculpa ao amabilíssimo e pacientíssimo leitor por não poder eu acompanhar em tudo a moderna escola poética, hoje em voga no Brasil por importação. Creio que é uma importação que, em vez de melhorar, estraga e desvaira a índole da inspiração nacional. Não posso compreendê-la, e por isso não posso acompanhá-la.

Não posso compreender, o que seja uma escola literária, que se subjuga a um sistema crítico-filosófico-histórico-filológico-etnográfico-sociológico, etc., etc.

É querer amarrar o leviano, gracioso e independente batel da inspiração ao reboque da pesada charrua da crítica moderna, tão cheia de teorias sibilinas, e ainda mais carregada de erudição do que a antiga.

Censuram muito os que ainda respeitam os preceitos gerais do bom gosto literário, - que são muito análogos aos do bom senso, prescritos por Aristóteles, Longino, Horácio, Boileau, Marmontel, Laharpe e outros, e entretanto querem nos impor, a nós imaginadores e não teoristas, o jugo ainda mais pesado dos críticos e filósofos, que cada dia surgem na Europa querendo fazer uma nova revolução ou evolução nos domínios da filosofia e da literatura.

Dessa maneira suprimir-se-ia, já não digo o individualismo, mas até o nacionalismo em literatura, causa de que tanto se preocupam nossos jovens e talentosos escritores, e que entre- tanto eles mesmos inconscientemente vão abafando ou acanhando com as subtilezas do criticismo das literaturas européias.

O gênio é com razão comparado à águia. Quem é que traça à águia o giro altaneiro de seu vôo pelos diáfanos e infindos campos do espaço?... quem lhe indica o rumo das excursões pelos livres e imensos horizontes?..

Assim também o poeta verdadeiramente inspirado, aquele que tem imaginação brilhante e fecunda, alma sensível e apaixonada pelo belo, e que dispondo de uma inteligência robusta possui idéias suas adquiridas e firmadas pelo estudo e reflexão, não deve escravizar-se a classe alguma de Aristarcos; abandone-se à sua própria inspiração, se não quiser desencarrilhar se desastradamente.

A moderna crítica literária, - principalmente no Brasil, onde ela, em meu entender, é inteiramente descabida, - atrelada ao carro da filosofia positivista, que hoje predomina, e identificando-se com ela, pretende cortar as asas à inspiração, vedar-lhe o espaço livre, e obrigá-la a arrastar-se fatalmente por uma senda por ela cientificamente demarcada.

Está no gosto deste século do vapor, das vias férreas, e da febre do progresso material, e constitui uma espécie de engenharia literária, marcando rumos e nivelamentos, e assentando trilhos, pelos quais têm de rodar irremissivelmente as musas de todos os poetas, à maneira de vagões arrastados pela locomotiva.

Parece-me contudo, que esse sistema crítico-filosófico-positivista, o mais que pode conseguir é abafar, ou amesquinhar a inspiração, suprimir mesmo a poesia, mas nunca criar, nem mesmo dirigir a nascente literatura de uma nacionalidade nova. Se alguma cousa dela pode resultar, será uma literatura fria e raquítica, factícia e convencional, que poderá constituir um ofício, mas nunca uma arte verdadeira inspirada e criadora.

Creio que os poetas brasileiros, nascidos no seio de uma pátria nova, e cheia de seiva juvenil, não devem ter os olhos incessantemente fixos nas freqüentes evoluções das literaturas cansadas das nações do velho mundo.

Se eles têm em si sangue novo e vivificante, para que recorrer ao expediente da transfusão de sangue velho e viciado por contínuas fases de transformações?

O que pode ter de comum a musa brasileira com as musas que inspiraram Goethe o panteista, Byron o céptico misantropo, Musset o sensualista tresvairado?..

Para que havemos de nos enredar nos mistérios herméticos do Fausto, nas paixões turbulentas, sombrias, libertinas de Lara, de Manfredo, de D. Juan, de Rolla?...

Hoje os grandes modelos, os faróis, que os jovens poetas brasileiros têm diante dos olhos, são Zola, e Guerra Junqueiro.

Dois ilustres poetas sem dúvida, no gênero que cultivam na sociedade em que vivem, na evolução, que seguem.

Mas nós devemos, ou podemos seguir a mesma trilha?...

Nosso país é tão diverso, nosso clima tão diferente nossa índole tão divergente, nossos costumes tão outros, nosso estado de nascente civilização ainda tão distanciado desse requinte de poesia real, ou realismo poético, que a escola dos dois ilustres poetas não pode vingar, nem dar bons frutos na terra de Santa Cruz.

Podemos e devemos admirá-los, mas não tomá-los por modelo.

Zola e Guerra Junqueiro não são mais que continuadores de Byron e A. de Musset; levam avante a mesma obra com mais desgarre e mais requinte ainda. Essa hoje tão preconizada escola realista é muito mais velha do que pensam. A Damas das Camélias, de A. Dumas filho, quase nenhuma diferença tem da Marion de Lorme, de V. Hugo, e a Luciola, de José de Alencar, é uma fusão das duas primeiras. Podemos ainda remontar a muito mais alta antiguidade, e apontar o Decameron, de Boccaccio. Este sim é o verdadeiro fundador da escola realista, a qual por conseqüência existe já há mais de quatro séculos.

No meu entender o que se chama escola realista, com mais propriedade se deve chamar um gênero, a que qualquer pode se entregar, uma vez que se sinta com pendor e aptidão para ele. Porém é o maior dos absurdos querer inculcá-la como a última, a única, a mais perfeita manifestação do belo em literatura.

Mas não devo ocupar por mais tempo a atenção do leitor com uma questão, que exige longos desenvolvimentos, e não cabe portanto nos limites de um prólogo a um limitado número de poesias de bem pouco valor. Aventurando estas reflexões, é meu único propósito exibir minha profissão de fé em literatura, declarando que sou eclético, isto é, que sigo todas as escolas, ou por outra que não sigo escola nenhuma.

Por isso não se me vá atribuir a ambiciosa pretensão de querer passar por um gênio criador, por chefe de escola, abrindo novos horizontes, explorando minas desconhecidas e fazendo o batel da inspiração vogar

"Por mares nunca dantes navegados".

Pelo contrário procuro moldar minhas fracas produções pelos melhores tipos da arte quer antiga, quer moderna. Somente procuro não ser imitador servil de nenhum deles.

Há também outra inovação, com a qual não tenho podido me conformar. A primeira, de que tratei, ocupa-se com o fundo; esta porém diz respeito à forma.

Quero falar do verso alexandrino, hoje tão em voga, de preferência a outro qualquer metro. É moda. Já não se diz - fazer versos -, mas sim - fazer alexandrinos. A moda, não contente de exercer império absoluto no vestuário da espécie humana, pretende também invadir a região das artes, da poesia e da literatura.

Ao balão e à crinolina sucedeu o alto grudado no trajo feminil. Na poesia aconteceu o mesmo, porém com inversão. Aos antigos e variadíssimos metros tão vantajosamente usados na poesia portuguesa, vai-se substituindo o predomínio quase exclusivo do verso alexandrino, que bem se pode chamar o balão da moderna poesia; o metro das palavras balofas e retumbantes; dos plurais enfáticos - como eternidades - imensidades; - das sinonímias intermináveis, metro, que reclama, não por necessidade ou elegância, mas para encher medida, o emprego da conjunção e a cada passo; metro enfim de incontestável monotonia.

Perdoem-me os adoradores do alexandrino, não me excomunguem. Se a tolerância religiosa é um dogma da moderna civilização, não o deve ser menos a tolerância em doutrinas literárias. Demais eu não sou propagandista; apenas enuncio e procuro justificar simplesmente e sem pretensão alguma a minha opinião individual.

Entendo que o metro alexandrino é o mais monótono, pesado e inflexível, de que pode dispor a língua portuguesa, e que, não é sem razão, que os antigos bem raras vezes o empregavam. Não devemos de todo abandoná-lo; há ocasiões, em que tem ele todo o cabimento; mas parece-me que só emprega do com muita parcimônia, ou intercalado com outros ritmos, e manejado por mãos habilíssimas pode produzir bom efeito.

O alexandrino não dispensa a rima. Sem ela e às vezes mesmo com ela quase se confunde com a prosa. Poderia aqui citar numerosíssuimos exemplos; mas não devo estender muito estas páginas. Se o consoante no alexandrino é trelado dous a dous, é de uma monotonia abominável; se distancia-se um pouco, a rima torna-se quase insensível, e portanto de muito fraco efeito.

Entretanto, - não sei por que razão -, o verso francês que tem número de sílabas igual ao do nosso alexandrino e o verso heróico latino, que é ainda mais extenso, possuem muito mais flexibilidade, são muito mais maleáveis, ou por outros termos, prestam-se a exprimir com mais facilidade a forma o som, a cor, o movimento da idéia.

O alexandrino, pelo contrário, com sua pesada monotonia e inflexibilidade, torna-se quase absolutamente refratário à onomatopéia, sem a qual não há no verso nem harmonia nem melodia. A poesia constitui como um meio termo entre a prosa e a música, e portanto não deve prescindir daquelas duas condições; é de sua essência harmoniosa e melodiosa. O verso pode estar construído com irrepreensível correção; mas se não contém ao menos uma daquelas qualidades, é verso sem poesia, ou por outra, é prosa em verso. É o que seria uma música falada, em cuja execução só se observa o compasso, da medida do tempo.

Em confirmação do que levo dito, indicarei alguns exemplos.

Leia-se os primeiros versos da Henriade, que são rápidos e calorosos:

Je chante ce heros, qui regna sur la France

Et par droit de eonquête et par droit de naissance.

Leia-se depois estes da Passagem. do Reno de Boileau:

Au pied du mont Adule entre milie roseaux

Le Rhin tranquille et fier du progres de ses eaux,

Appuié d'une main sur son urne penchante

Dormait au bruit flateur de son onde naissante,

Lorsqu'un cri tout à coup, suivi de mille cris...

Note-se o contraste que há entre os quatro primeiros versos, repassados de pausada e majestosa melodia, e o último, que brusco e rápido indica belamente a transição para nova ordem de idéias.

Confronte-se ainda este verso de Mellevoie:

Je meurs et sur ma tombe, ou lentement j'arrive

Com este outro, não me lembro de que poeta:

Apprentis cavallier chevauchait à ta trace.

Que diferença de movimento, de entonação, e pode-se dizer mesmo de colorido!

Passemos agora ao metro latino, e exemplifiquemos ainda, que é este o melhor meio de fazer sentira minha opinião.

Arma, virumque cano, Trojoe qui primus ab oris

Italiam fato profugus, lavinaque venit, etc.

Há aqui o tom altivo e entusiástico de quem vai entrar na exposição de grandiosos acontecimentos.

Confronte-se com estes versos o princípio do canto IV do mesmo poema:

At regina gravi jamdudum sacia cura...

Vemos nestes exemplos, como a mesma metrificação, na língua francesa e latina, se acomoda admiravelmente a todos os assuntos, a todos os tons. Esses exemplos poderia eu multiplicá-los a ponto de fatigar, mas a preguiça de escrevê-los, e o receio de enjoar o leitor, me aconselham que não cite senão mais um exemplo, e este o mais frisante de entre os versos do grande poeta e grande metrificador latino. São os seguintes:

Ille latus niveum molli fultus hyacyntho

.....................................................................................

Quadrupedante putrem sonitu quatit ungula campum

.....................................................................................

Agora peço licença aos idólatras do alexandrino para perguntar-lhes, se o seu metro favorito é susceptível de tamanha variação de tom, colorido e movimento?...

Por mais que leia essa infinidade de alexandrinos, que anda por aí a granel em livros e jornais, encontro neles por vezes muita inspiração, estilo brilhante e elevado, belíssimos conceitos, mas quase nunca essa túnica prestigiosa, que reveste a verdadeira poesia, e sem a qual a musa é uma estátua fria, imóvel, incolora; quase nunca essa cadência musical e imitativa, que coloca a arte de Homero e Virgílio entre a de Demóstenes e Cícero e a de Rossini e Verdi, fazendo-a participar das vantagens de uma e de outra, encantando ao mesmo tempo o pensamento e os ouvidos.

Vou ainda citar um exemplo, e este é de um gênio. O visconde de Castilho, que além de possuir uma imaginação brilhante e fecunda como bem poucos, era um adestrado metrificador, deixou-nos, ao par de magníficos exemplos, preciosas teorias. Mas infelizmente foi ele que nos últimos quartéis da vida introduziu em Portugal a mania do moroso e arrastado alexandrino, que os poetas brasileiros adotaram, abraçaram com um fervor, um fanatismo tal, que... parece, que ainda estamos nos tempos coloniais, durante os quais só era bom o que nos vinha do Reino. E dele mesmo, desse bardo imortal, que vou tirar o exemplo, do quanto é superior o nosso verso de onze sílabas ao de treze para todos os assuntos, e principalmente para assuntos elevados. Quem não tem lido e não sabe até de cor os Ciúes do bardo? Esses magníficos versos hendecassílabos, apesar de não rimados, gravam-se por si mesmos na memória do leitor. Há entretanto uma produção do mesmo poeta, recheada dos mais engenhosos conceitos, rica de imagens e dessa brilhante e variada linguagem, que soía empregar o grande bardo lusitano, mas que, em meu entender, perde grande parte do seu valor, não tanto por ser longa, mas por ser escrita em versos alexandrinos rimados dous a dous. E custoso lê-la de fio a pavio sem fadiga e mesmo sem algum enfado.

Refiro-me a uma poesia, que li na "Revista Contemporânea" de Portugal, notável e preciosa revista, em que colaboravam, além do mesmo Castilho, as outras sumidades da literatura portuguesa, como A. Herculano, E. Castelo Branco, Latino Coelho, J. Machado, etc., etc. Foi feita expressamente para uma célebre atriz portuguesa Emilia das Neves, e devia ser por ela recitada em uma representação, que não se realizou, infelizmente para o fim humanitário, a que era destinada, mas felizmente para a poesia, que mesmo lida não deixa de ser monótona e fatigante em razão do ritmo, em que é escrita, e que recitada ainda mesmo por essa hábil artista, com custo, creio eu, poderia ser ouvida e entendida.

Basta sobre este assunto, a respeito do qual bem desejara eu estender-me mais um pouco a fim de provocar alguma discussão entre meus colegas, e nomeadamente o meu amigo Machado de Assis, poeta de forma pura e elegante, e primoroso romancista, o qual sei que é também apaixonado do alexandrino, posto que dele não faça uso exclusivo. [Nota do responsável deste site: os biógrafos de B.G. afirmam que esta é a única citação que o poeta e romancista faz de Machado de Assis.]

Outro motivo, que me induziu a fazer um prólogo a esta pequena coleção de poesias, foi o ter lido há tempos em um jornal da Corte um artigo do Sr. Valentim Magalhães, em que tratando de um outro poeta novo de Minas, o Sr. Augusto de Lima, lê-se o seguinte trecho, que parece aludir à minha pessoa:

"Deve orgulhar-se nele (Augusto Lima) a província de Minas, cujo maior poeta, outrora tão ardido e fecundo, hoje se esteriliza numa apatia mórbida, donde só rebentam monótonas cantilenas em honra de César".

Não me tenho em conta do maior poeta da província de Minas, nem mesmo do cantão, em que resido; mas é bem certo que só eu, ao que me consta, fiz algumas poesias em homenagem a SS. MM. II., quando visitaram a capital desta província, e portanto creio que não vou errado tomando para mim a alusão do Sr. Valentim. Como nenhum outro se apresentara para solenizar com os produtos de sua musa tão auspicioso acontecimento, se não era de minha rigorosa obrigação, julguei ser ao menos um dever de civilidade da minha parte, render aos ilustres hóspedes as devidas homenagens pelos meios ao meu alcance.

Mas essa alusão, em parte tão honrosa para mim, e tão acima do meu mérito real, é de todo o ponto injusta, quando me supõe engolfado em mórbida apatia, donde só rebentam monótonas cantilenas em honra de César. Com a publicação desta coleção o Sr. Valentim se convencerá, que não é tanto assim.

Que essas cantilenas, - apenas duas, - são monótonas, eu o reconheço, e até mesmo mal feitas, porque foram quase improvisadas no meio do tumulto e ruído das festas. Mas agora, ao editá-las de novo na presente coleção, tomei o cuidado de corrigi-las e melhorá-las, - não sei se o consegui, - a fim de torná-las mais dignas dos altos personagens, a quem são dirigidas, e mais merecedoras da indulgência do Sr. Valentim Magalhães, cujo alto critério e ilustração muito respeito.

B. Guimarães

Ouro Preto, 10 de agosto de 1882.