À memória do monsenhor Felicíssimo

Bem poucas lousas há que em si contenham

Cinzas mais preciosas,

Bem poucas há que merecido tenham

Pranto mais puro, bênçãos mais saudosas.

Do povo desolado.

Que viu da morte ao golpe despiedado

Tombar ao chão da campa o altivo cimo

Do tronco que lhe dava sombra e arrimo.

Mas o tronco tombado entre os viventes

Deixou frutos benditos;

Seus feitos e virtudes eminentes

Em eternos padrões acham-se escritos;

Das doutrinas do mártir do Calvário

Foi denodado intérprete fiel.

Desta vida no túrbido cenário,

Como outrora o profeta Samuel,

Foi sua escola o templo,

Em que o espírito vivaz e penetrante

Bebeu seiva abundante

De altas lições e salutar exemplo;

Dedicou todo o ardor da juventude

Da liberdade ao culto,

Sofrendo com estóica e sã virtude

Por amor dela o desacato, o insulto,

Contratempos, trabalhos, amargores,

Fadigas mil, terríveis dissabores;

Mas prosseguindo impávido e altaneiro

No começado, glorioso esteiro,

Como o arroio que desce da montanha

De cascata em cascata,

E contra as rochas a bramir se assanha

Desdobrando-se em ondas cor de prata;

E se afastando do obscuro ninho

Lá vai-se engrandecendo em seu caminho,

Depois por largos planos deslizando

Tranqüilo e majestoso.

Em longo curso vai fertilizando

As margens que percorre caudaloso,

Até que através de mil azares,

Vai-se embeber na vastidão dos mares:

Tal foi o curso da afanosa vida

Do exímio sacerdote,

Da caridade luminoso archote,

Que há pouco se apagou!

Foi seu começo luta embravecida

Contra a tormenta e desfavor da sorte,

Até que um dia achou

A seus anelos glorioso norte.

O manto desdobrou da caridade

Por sobre um povo inteiro,

E exalando o suspiro derradeiro

Passou sereno ao mar da eternidade.

Sobre o seu berço bruxuleia incerta

A sombra do mistério;

Mas sobre sua campa há pouco aberta

Verte clarão sidéreo

Lâmpada eterna, que à posteridade

Recomenda o herói da caridade.

Esse poema foi escrito por B.G. dias antes de sua

morte, que ocorreu em Ouro Preto no dia 10 de março de 1884.

Foi o seu último poema. Monsenhor José Felicíssimo do Nascimento,

amigo do poeta, representou Minas Gerais na Assembléia Provincial

no período 1857-1860 e participou do Movimento Revolucionário de 1842.