A profecia de Brasília

por Armelim Guimarães

São João Bosco, piedoso sacerdote italiano -- nasceu em Castelnuovo de Asti, em 1815, e morreu em Turim, em 1888 -- teve, em sonhos, uma visão de Brasília. Tornou-se por isso o padroeiro da nova capital federal. Em sua homenagem, foi, na nova urbe metropolitana, erguida a sua estátua. Ao benzê-la em 30 de junho de 1980, disse o Santo Padre João Paulo 2º:

"Brasília está para sempre ligada a Dom Bosco através daquele misterioso sonho, no qual, à distância de 75 anos, ele parece ter entrevisto o nascimento da cidade, em meio ao cerrado escaldante, sobre o planalto até então deserto." ("Pronunciamento do Papa no Brasil", Edições Loyola, São Paulo, 10ª edição, pág. 19).

Mas e Bernardo Guimarães?

O Papa informa ter havido uma "distância" de 75 anos entre a concretização de Brasília (1960) e o sonho profético de um santo taumaturgo salesiano, que deve, portanto, ter ocorrido em 1885. Muito antes disso, porém, o poeta de Ouro Preto, que desde sua infância conhecia o planalto central do Brasil, compôs o não menos profético o poema "O Ermo", que incluiu na coleção dos "Cantos da Solidão", em 1852.

No meio daquelas chãs longínquas e infindas, daquela imensa savana brasileira, o vate de Vila Rica divisou uma grande e moderna cidade. Extraordinária visão: foi a profecia de Brasília!

Depois de cantar o céu, os "róseos horizontes", as

"Límpidas veias, onde o sol tremula,

Como em dourada escama refletindo

Flóreas balsas, colinas vicejantes,

Toucadas de palmeiras graciosas,

Que em céu límpido e claro balanceiam

A coma verde-escura. – Além montanhas,

Eternos cofres d'ouro e pedraria,

Coroados de píncaros rugosos,

Que se embebem no azul do firmamento!

Ou se te apraz, desçamos nesse vale,

Manso asilo de sombras e mistério,

Cuja mudez talvez jamais quebrara

Humano passo revolvendo as folhas,

E que nunca escutou mais que os arrulhos

Da casta pomba, e o soluçar da fonte...

Onde se cuida ouvir, entre os suspiros

Da folha que estremece, os ais carpidos

Dos manes do Indiano, que inda chora

O doce Éden que os brancos lhe roubaram!..."

Pergunta o poeta:

"Que é feito pois dessas guerreiras tribos,

Que outrora estes desertos animavam?

Onde foi esse povo inquieto e rude,

De brônzea cor, de torva catadura,

Com seus cantos selváticos de guerra

Restrugindo no fundo dos desertos,

A cujos sons medonhos a pantera

Em seu covil de susto estremecia?

Oh! floresta – que é feito de teus filhos?

Dorme em silêncio o eco das montanhas,

Sem que o acorde mais o rude acento

Das guerreiras inúbias : – nem nas sombras

Seminua, do bosque a ingênua filha

Na preguiçosa rede se embalança.

Calaram-se para sempre nessas grutas

Os proféticos cantos do piaga;

Nem mais o vale vê esses caudilhos,

Seus cocar na fronte balançando,

Por entre o fumo espesso das fogueiras,

Com sombrio lentor tecer, cantando,

Essas solenes e sinistras danças,

Que o festim da vingança precediam....."

E surge aos olhos do poeta e sonhador, em lugar das tabas de tribos selvagens e tatuadas, a miragem do futuro, num estupendo vaticínio da nova capital de Brasília:

"Mas, não te queixes, musa; – são decretos

Da eterna providência irrevogáveis!

Deixa passar destruição e morte

Nessas risonhas e fecundas plagas,

Como charrua, que revolve a terra,

Onde terminam do porvir os frutos.

O homem fraco ainda, e que hoje a custo,

Da criação a obra mutilando,

Sem nada produzir destrói apenas,

Amanhã criará; sua mão potente,

Que doma e sobrepuja a natureza,

Há de imprimir um dia forma nova

Na face deste solo imenso e belo:

Tempo virá em que nessa valada

Onde flutua a coma da floresta,

Linda cidade surja, branquejando

Como um bando de garças na planície;

E em lugar desse brando rumorejo

Aí murmurará a voz de um povo;

Essas encostas broncas e sombrias

Serão risonhos parques suntuosos;

E esses rios, que vão por entre sombras

Ondas caudais serenos resvalando,

Em vez do tope escuro das florestas,

Refletirão no límpido regaço

Torres, palácios, coruchéus brilhantes,

Zimbórios majestosos, e castelos

De bastiões sombrios coroados,

Esses bulcões da guerra, que do seio

Com horrendo fragor raios despejam.

Rasgar-se-ão os serros altaneiros,

Encher-se-ão dos vales os abismos:

Mil estradas, qual vasto labirinto,

Cruzar-se-ão por montes e planuras;

Curvar-se-ão os rios sob arcadas

De pontes colossais; – canais imensos

Virão sulcar a face das campinas..."

Nem seria preciso dizer que o emprego de letras em negrito nos versos que melhor definem a então futura capital do Brasil são acentuações de minha iniciativa.

"Torres, palácios, coruchéus brilhantes, zimbórios majestosos e castelos de bastiões sombrios", a cidade iria surgir com "um bando de garças na planície", são as poéticas imagens concebidas por Bernardo Guimarães, e isso mais de um século antes de Juscelino Kubitschek, para figurar as criatividades arquitetônicas surdidas do lápis de Oscar Niemeyer para a nova capital do Brasil, no planalto central.

Íntegra do poema O Ermo