Hino à Preguiça

... Viridi projectus in antro...

(Virgílio)

Meiga Preguiça, velha amiga minha,

Recebe-me em teus braços,

E para o quente, conchegado leito

Vem dirigir meus passos.

Ou, se te apraz, na rede sonolenta,

À sombra do arvoredo,

Vamos dormir ao som d'água, que jorra

Do próximo rochedo.

Mas vamos perto; à orla solitária

De algum bosque vizinho,

Onde haja relva mole, e onde se chegue

Sempre por bom caminho.

Aí, vendo cair uma por uma

As folhas pelo chão,

Pensaremos conosco: -- são as horas,

Que aos poucos lá se vão. --

Feita esta reflexão sublime e grave

De sã filosofia,

Em desleixada cisma deixaremos

Vogar a fantasia,

Até que ao doce e tépido mormaço

Do brando sol do outono

Em santa paz possamos quietamente

Conciliar o sono.

Para dormir à sesta às garras fujo

Do improbo trabalho,

E venho em teu regaço deleitoso

Buscar doce agasalho.

Caluniam-te muito, amiga minha,

Donzela inofensiva,

Dos pecados mortais te colocando

Na horrenda comitiva.

O que tens de comum com a soberba?...

E nem com a cobiça?...

Tu, que às honras e ao ouro dás as costas,

Lhana e santa Preguiça?

Com a pálida inveja macilenta

Em que é que te assemelhas,

Tu, que, sempre tranqüila, tens as faces

Tão nédias e vermelhas?

Jamais a feroz ira sanguinária

Terás por tua igual,

E é por isso, que aos festins da gula

Não tens ódio mortal.

Com a luxúria sempre dás uns visos,

Porém muito de longe,

Porque também não é do teu programa

Fazer vida de monge.

Quando volves os mal abertos olhos

Em frouxa sonolência,

Que feitiço não tens!... que eflúvios vertes

De mórbida indolência!...

Es discreta e calada como a noute;

És carinhosa e meiga,

Como a luz do poente, que à tardinha

Se esbate pela veiga.

Quando apareces, coroada a fronte

De roxas dormideiras,

Longe espancas cuidados importunos,

E agitações fragueiras;

Emudece do ríspido trabalho

A atroadora lida;

Repousa o corpo, o espírito se acalma,

E corre em paz a vida.

Até dos claustros pelas celas reinas

Em ar de santidade,

E no gordo toutiço te entronizas

De rechonchudo abade.

Quem, senão tu, os sonhos alimenta

Da cândida donzela,

Quando sozinha vago amor delira

Cismando na janela?...

Não é também, ao descair da tarde,

Que o vate nos teus braços

Deixa à vontade a fantasia ardente

Vagar pelos espaços?...

Maldigam-te outros; eu, na minha lira

Mil hinos cantarei

Em honra tua, e ao pé de teus altares

Sempre cochilarei.

Nasceste outrora em plaga americana

À luz de ardente sesta,

Junto de um manso arroio, que corria

À sombra da floresta.

Gentil cabocla de fagueiro rosto,

De índole indolente,

Sem dor te concebeu entre as delícias

De um sonho inconsciente.

E nessa hora as auras nem buliam

Nas ramas do arvoredo,

E o rio a deslizar de vagaroso

Quase que estava quedo.

Calou-se o sabiá, deixando em meio

O canto harmonioso,

E para o ninho junto da consorte

Voou silencioso.

A águia, que, adejando sobre as nuvens,

Dos ares é princesa,

Sentiu frouxas as asas, e do bico

Deixou cair a presa.

De murmurar, manando entre pedrinhas

A fonte se esqueceu,

E nos imóveis cálices das flores

A brisa adormeceu.

Por todo o mundo o manto do repouso

Então se desdobrou,

E até dizem, que o sol naquele dia

Seu giro retardou.

E eu também já vou sentindo agora

A mágica influência

De teu condão; os membros se entorpecem

Em branda sonolência.

Tudo a dormir convida; a mente e o corpo

Nesta hora tão serena

Lânguidos vergam; dos inertes dedos

Sinto cair-me a pena.

Mas ai!... dos braços teus hoje me arranca

Fatal necessidade!...

Preguiça, é tempo de dizer-te adeus,

Ó céus!... com que saudade!