O ermo

Quæ sint, quæ fuerint, quæ sunt ventura, trahentur.

(Virgílio.)

Ao ermo, ó musa: – além daqueles montes,

Que, em vaporoso manta rebuçados,

Avultam já na extrema do horizonte...

Eia, vamos; – lá onde a natureza

Bela e virgem se mostra aos olhos do homem,

Qual moça indiana, que as ingênuas graças

Em formosa nudez sem arte ostenta!...

Lá onde a solidão ante nós surge,

Majestosa e solene como um templo,

Em que sob as abóbadas sagradas,

Inundadas de luz e de harmonia,

Êxtase santo paira entre perfumes,

E se ouve a voz de Deus. – Ó musa, ao ermo!...

Como é formoso o céu da pátria minha!

Que sol brilhante e vívido resplende

Suspenso nessa cúpula serena!

Terra feliz, tu és da natureza

A filha mais mimosa; – ela sorrindo

Num enlevo de amor te encheu d'encantos,

Das mais danosas galas enfeitou-te;

Beleza e vida te espargiu na face,

E em teu seio entornou fecunda seiva!

Oh! paire sempre sobre os teus desertos

Celeste bênção; bem-fadada sejas

Em teu destino, ó pátria; – em ti recobre

A prole de Eva o Éden que perdera!

II

Olha : – qual vasto manto que flutua

Sobre os ombros da terra, ondeia a selva,

E ora surdo murmúrio ao céu levanta,

Qual prece humilde, que no ar se perde,

Ora açoutada dos tufões revoltos,

Ruge, sibila, sacudindo a grenha

Qual hórrida bacante : – ali despenha-se

Pelo dorso do monte alva cascata,

Que, de alcantis enormes debruçada,

Em argentea espadana ao longe brilha,

Qual longo véu de neve, que esvoaça,

Pendente aos ombros de formosa virgem,

E já, descendo a colear nos vales,

As plagas fertiliza, e as sombras peja

D'almo frescor, e plácidos murmúrios...

Ali campinas, róseos horizontes,

Límpidas veias, onde o sol tremula,

Como em dourada escama refletindo

Flóreas balsas, colinas vicejantes,

Toucadas de palmeiras graciosas,

Que em céu límpido e claro balanceiam

A coma verde-escura. – Além montanhas,

Eternos cofres d'ouro e pedraria,

Coroados de píncaros rugosos,

Que se embebem no azul do firmamento!

Ou se te apraz, desçamos nesse vale,

Manso asilo de sombras e mistério,

Cuja mudez talvez jamais quebrara

Humano passo revolvendo as folhas,

E que nunca escutou mais que os arrulhos

Da casta pomba, e o soluçar da fonte...

Onde se cuida ouvir, entre os suspiros

Da folha que estremece, os ais carpidos

Dos manes do Indiano, que inda chora

O doce Éden que os brancos lhe roubaram!...

Que é feito pois dessas guerreiras tribos,

Que outrora estes desertos animavam?

Onde foi esse povo inquieto e rude,

De bronzea cor, de torva catadura,

Com seus cantos selváticos de guerra

Restrugindo no fundo dos desertos,

A cujos sons medonhos a pantera

Em seu covil de susto estremecia?

Oh! floresta – que é feito de teus filhos?

Dorme em silêncio o eco das montanhas,

Sem que o acorde mais o rude acento

Das guerreiras inúbias : – nem nas sombras

Seminua, do bosque a ingênua filha

Na preguiçosa rede se embalança.

Calaram-se para sempre nessas grutas

Os proféticos cantos do piaga;

Nem mais o vale vê esses caudilhos,

Seus cocar na fronte balançando,

Por entre o fumo espesso das fogueiras,

Com sombrio lentor tecer, cantando,

Essas solenes e sinistras danças,

Que o festim da vingança precediam.....

Por esses ermos não vereis pirâmides

Nem mármores, nem bronzes, que assinalem

Nas eras do porvir feitos de glória;

Da natureza os filhos não sabiam

Aos céus erguer soberbos monumentos,

E nem perpetuar do bardo os cantos,

Que celebram façanhas do guerreiro,

– Esses fanais, que acende a mão do gênio,

E vão no mar infindo das idades

Alumiando as trevas do passado.

Seus insepultos ossos alvejando

Aqui e além nos solitários campos,

Rotos tacapes, ressequidos crânios,

Que estalam sob os pés de errante gado,

As tabas em ruína, e os mal extintos

Vestígios das ocaras, onde o sangue

Do vencido corria em largo jorro

Entre as pocemas de feroz vingança,

Eis as relíquias que recordam feitos

Do forte lidador da rude selva.

De virgem mata a sussurrante cúpula,

Ou gruta escura, disputada às feras,

Ou frágil taba, num momento erguida,

Desfeita no outro dia, eram bastantes

Para abrigar o filho do deserto;

No carcás bem provido repousavam

De todo o seu porvir as esperanças,

Que suas eram da floresta as aves,

E nem lhes nega o córrego do vale,

Límpido jorro que lhe estanque a sede.

No sol, fonte de luz e de beleza,

Viam seu Deus, prostrados o adoravam,

Na terra a mãe, que os nutre com seus frutos,

Sua única lei – na liberdade.

Oh! floresta, que é feito de teus filhos?

Esta mudez profunda dos desertos

Um crime – bem atroz! – nos denuncia.

O extermínio, o cativeiro, a morte

Para sempre varreu de sobre a terra

Essa mísera raça, – nem ficou-lhes

Um canto ao menos, onde em paz morressem!

Como cinza, que os euros arrebatam,

Se esvaeceram, – e do tempo a destra

Seus nomes mergulho no esquecimento.

Mas tu, ó musa, que piedosa choras,

Curvada sobre a urna do passado,

Tu, que jamais negaste ao infortúnio

Um canto expiatório, eia, consola

Do pobre Indiano os erradios manes,

E sobre a inglória cinza dos proscritos

Com teus cantos ao menos uma lágrima

Faze correr de compaixão tardia.

III

Ei-lo, que vem, de ferro e fogo armado,

Da destruição o gênio formidável,

Em sua fatal marcha devastando

O que de mais esplêndido e formoso

Alardeia no ermo a natureza;

Que nem somente o íncola das selvas

De seu furor foi vítima; – após ele

Rui também a cúpula virente,

Único abrigo seu, – sua riqueza.

Esta trêmula abóbada, que ruge

Por seculares troncos sustentada,

Este silêncio místico, estas sombras,

Que agora me derramam sobre a fronte

Suave inspiração, cismar saudoso,

Vão em breve morrer ; – lá vem o escravo,

Brandindo o ferro, que dá morte às selvas,

E – afanoso – põe peito à ímpia obra: –

Já o tronco, que os séculos criaram,

Ao som dos cantos do africano adusto

Geme aos sonoros, compassados golpes,

Que vão nas brenhas ressoando ao longe;

Soa o último golpe, – range o tronco,

O tope excelso trêmulo vacila,

E desabando com gemido horrendo

Restruge qual trovão de monte em monte

Nas solidões profundas reboando.

Assim vão baqueando uma após outra

Da floresta as colunas venerandas;

E todas essas cúpulas imensas,

Que inça há pouco no céu balanceando,

A sanha dos tufões desafiavam,

Aí jazem, como ossadas de gigantes,

Que num dia de cólera prostrara

O raio do Senhor.

Oh! mais terrível

Que o raio, que o dilúvio, o rubro incêndio

Vem consumar essa obra deplorável.....

Qual hidra formidável, no ar exalça

A crista sanguinosa, sacudindo

Com medonho rugido as ígneas asas,

E negros turbilhões de fumo ardente

Das abrasadas fauces vomitando,

Em hórrido negrume os céus sepulta.....

Estala, ruge, silva, devorando

Da floresta os cadáveres gigantes;

Voam sem tino as aves assustadas

No ar soltando pios lamentosos,

E as feras, em tropel tímidas correm,

A se embrenhar no fundo dos desertos,

Onde vão demandar nova guarida.....

Tudo é cinza e ruína: – adeus, ó sombra,

Adeus, murmúrio, que embalou meus sonhos,

Adeus, sonoro frêmito das auras,

Sussurros, queixas, suspirosos ecos,

Da solidão misterioso encanto!

Adeus! – Em vão a pomba esvoaçando

Procura um ramo em que fabrique o ninho;

Em vão suspira o viajor cansado

Por uma sombra, onde repouse os membros

Repassados do ardor do sol a pino!

Tudo é cinza e ruína, – tudo é morto!!

E tu, ó musa, que amas o deserto

E das caladas sombras o mistério,

Que folgas de embalar-te aos sons aéreos

D’almas canções, que a solidão murmura,

Que amas a criação, qual Deus formou-a,

– Sublime e bela – vem sentar-te, ó musa,

Sobre estas ruínas, vem chorar sobre elas.

Chora com a avezinha, a quem roubaram

O ninho seu querido, e com teus cantos

Procura adormecer o férreo braço

Do impróvido colono, que semeia

Somente estragos neste chão fecundo!

IV

Mas, não te queixes, musa; – são decretos

Da eterna providência irrevogáveis!

Deixa passar destruição e morte

Nessas risonhas e fecundas plagas,

Como charrua, que revolve a terra,

Onde terminam do porvir os frutos.

O homem fraco ainda, e que hoje a custo,

Da criação a obra mutilando,

Sem nada produzir destrói apenas,

Amanhã criará; sua mão potente,

Que doma e sobrepuja a natureza,

Há de imprimir um dia forma nova

Na face deste solo imenso e belo:

Tempo virá em que nessa valada

Onde flutua a coma da floresta,

Linda cidade surja, branquejando

Como um bando de garças na planície;

E em lugar desse brando rumorejo

Aí murmurará a voz de um povo;

Essas encostas broncas e sombrias

Serão risonhos parques suntuosos;

E esses rios, que vão por entre sombras

Ondas caudais serenos resvalando,

Em vez do tope escuro das florestas,

Refletirão no límpido regaço

Torres, palácios, coruchéus brilhantes,

Zimbórios majestosos, e castelos

De bastiões sombrios coroados,

Esses bulcões da guerra, que do seio

Com horrendo fragor raios despejam.

Rasgar-se-ão os serros altaneiros,

Encher-se-ão dos vales os abismos:

Mil estradas, qual vasto labirinto,

Cruzar-se-ão por montes e planuras;

Curvar-se-ão os rios sob arcadas

De pontes colossais; – canais imensos

Virão sulcar a face das campinas,

E estes montes verão talvez um dia,

Cheios de assombro, junto às abas suas

Velejarem os lenhos do oceano!

Sim, ó virgem dos trópicos formosa,

Nua e singela filha da floresta,

Um dia, em vez da simples arazóia,

Que mal te encobre o gracioso talhe,

Te envolverás em flutuantes sedas,

E abandonando o canitar de plumas,

Que te sombreia o rosto cor de jambo,

Apanharás em tranças perfumadas

A coma escura, e dos danosos ombros

Finos véus penderão. Em vez da rede,

Em que te embalas da palmeira à sombra,

Repousarás sobre coxins de púrpura,

Sob dosséis esplêndidos. – Ó virgem,

Serás então princesa, – forte e grande,

Temida pelos príncipes da terra;

E de brilhante auréola cingida

Sobre o mundo alçarás a fronte altiva!

Mas, quando em tua mente revolveres

As memórias das eras que já foram,

Lá quando dentro d’alma despertares

Do passado lembranças quase extintas,

Dos bosques teus, de tua rude infância

Talvez terás saudade.