À sepultura de um escravo

Não vês nessa colina solitária

Aquela ermida, que sozinha alveja

O esguio campanário aos céus erguendo,

Como garça, que em meio das campinas

Alça o colo de neve?

E junto a ela um tésco muro cinge

A pousada dos mortos nua e triste,

Onde, plantada em meio, a cruz se eleva,

A cruz, bússola santa e venerável

Que nas tormentas e vaivéns da vida

O porto indica da celeste pátria....

Nem moimento, nem piedosa letra

Vem aqui iludir a lei do olvido;

Nem árvore funérea aí sussurra,

Prestando pia sombra ao chão dos mortos;

Nada quebra no lúgubre recinto

A paz sinistra que rodeia os túmulos:

Ali reina sozinha

Na hedionda nudez calcando as campas

A implacável rainha dos sepulcros;

E só de quando em quando

Vento da soidão passa gemendo,

E levanta a poeira dos jazigos.

Aqui tristes lembranças dentro d'alma

Eu sinto que se acordam, como cinza,

Que o vento de entre os túmulos revolve;

Meu infeliz irmão, aqui me surges,

Como a imagem de um sonho esvaecido,

E no meu coração sinto ecoando,

Qual débil som de suspirosa aragem,

Tua voz querida a murmurar meu nome.

Pobre amigo! - no albor dos anos tenros,

Quando a esperança com donoso riso

Nos braços te afagava,

E desdobrava com brilhantes cores

O painel do futuro ante os teus olhos,

Eis que sob teus passos se abre súbito

O abismo do sepulcro....

E aquela fronte juvenil e pura,

Tão prenhe de futuro e d'esperança,

Aquela fronte que talvez sonhava

Ir no outro dia, - ó irrisão amarga!

Repousar docemente em niveo seio,

Entre os risos de amor adormecida,

Vergada pela férrea mão da morte,

Caiu lívida e fria

No duro chão, em que repousa agora.

E hoje que venho no aposento lúgubre

Verter piedoso orvalho de saudade

Na planta emurchecida,

Ah! nem ao menos nesse chão funéreo

Os vestígios da morte encontrar posso!

Tudo aqui é silêncio, tudo olvido,

Tudo apagou-se sob os pés do tempo...

Oh! que é consolo ver ondear a coma

Duma árvore funérea sobre a lousa,

Que escondeu para sempre a nossos olhos

D'um ente amado inanimados restos.

Cremos que a anima o espírito do morto;

Nos místicos rumores da folhagem

Cuidamos escutar-lhe a voz dorida

Alta noite gemendo, e em sons confusos

Mistérios murmurando d'além-mundo.

Desgrenhado chorão, cipreste esguio,

Funéreas plantas dos jardins da morte,

Monumentos de dor, em que a saudade

Em nênia perenal vive gemendo,

Parece que com lúgubre sussurro

Ao nosso dó piedosos se associam,

E erguendo ao ar os verde-negros ramos

Apontam para o céu, sagrado asilo,

Refúgio extremo a corações viúvos,

Que colados à pedra funerária,

Tão fria, tão estéril de consolos,

O seu dorido luto em vãos lamentos

Arrastam pelo pó das sepulturas.

Mas - nem um goivo, nem funérea letra,

Amiga mão plantou neste jazigo;

Ah! ninguém disse à árvore dos túmulos

- Aqui sobre esta campa

Cresce, ó cipreste, e geme sobre ela,

Qual minha dor, em murmurio eterno! -

Sob essa grama pálida e enfezada

Entre os outros aqui perdido jazes

Dormindo o teu eterno e fundo sono...

Sim, pobre flor, sem vida aqui ficaste,

Envolta em pó, dos homens esquecida.

"Dá-me tua mão, amigo,

"Marchemos juntos nesta vida estéril,

"Vereda escura que conduz ao túmulo;

"O anjo da amizade desde o berço

"Nossos dias urdiu na mesma teia;

"Ele é quem doura os nossos horizontes,

"E a nossos pés alguma flor esparge....

"Quais dous regatos, que ao cair das urnas

"Se encontram na valada, e num só leito

"Se abraçam, se confundem,

"E quer volvam serenos, refletindo

"O azul do céu e as florejantes ribas,

"Quer furiosos ronquem

"Em boqueirões sombrios despenhados,

"Sempre unidos num só vão serpeando

"Té se perderem na amplidão dos mares,

"Tais volvam nossos dias;

"A mesma taça no festim da vida

"Para ambos sirva, seja fel ou néctar:

"E quando enfim, completo o nosso estádio,

"Formos pedir um leito de repouso

"No asilo dos finados,

"A mesma pedra nossos ossos cubra!"

É assim que tu falavas

Ao amigo, que aos cândidos acentos

De teu falar suave atento ouvido

Inclinava sorrindo:

E hoje o que é feito desse sonho ameno,

Que nos dourava a ardente fantasia?

Dessas palavras de magia cheias,

Que em melíflua torrente deslizavam

De teus lábios sublimes?

São vagos sons, que me murmuram n'alma,

Qual reboa gemendo no alaúde

A corda que estalara.

Ledo arroio que vinhas da montanha

Descendo alvo e sonoro,

O sol abraseado do deserto

Num dia te secou as ondas límpidas,

E eu fiquei só, trilhando a escura senda,

Sem tuas puras águas

Para orvalhar-me os ressequidos lábios,

Sem mais ouvir o trepido murmúrio,

Que em tão plácidos sonhos m'embalava....

Mas - cessem nossas queixas, e curvemo-nos

Aos pés daquela cruz, que ali se exalça,

Símbolo sacrossanto do martírio,

Fanal de redenção,

Que na hora do extremo passamento

Por entre a escura sombra do sepulcro

Mostra ao cristão as portas radiantes

Da celeste Solima, - ei-la que fulge

Como luz de esperança ao caminhante,

Que transviou-se em noite de tormenta;

E alçada sobre as campas

Parece estar dizendo à humanidade:

Não choreis sobre aqueles que aqui dormem;

Não mais turbeis com vossos vãos lamentos

O sono dos finados.

Eles foram gozar bens inefáveis

Na pura esfera, onde d'aurora os raios

Seu brilho perenal jamais extinguem,

Deixando sobre a margem do jazigo

A cruz dos sofrimentos.

Adeus, portanto, fúnebre recinto!

E tu, amigo, que tão cedo vieste

Pedir pousada na mansão dos mortos,

Adeus! - foste feliz, - que a senda é rude,

O céu é tormentoso, e o pouso incerto.