O precursor do sertanismo

por Armelim Guimarães

Bernardo Guimarães foi “um sertanejo”. Esse é o lugar-comum usado com freqüência tanto por seus biógrafos como pelos críticos.

Reconheça-se que o poeta e prosador mineiro era mesmo refratário à sociedade de salão, de casas, de espartilhos e saias-balão, de cerimônias, da aristocracia, das luvas e lencinhos perfumados. Só sabia respirar no mato, metido nas searas, no rancho de tropeiros, em companhia de gente de povo e dos taberéus, mordido, à beira do rio e de lagoas, pelos anjos-bentos e mutucas. Amava a fala labrega dos homens das arroteias, o gemido do carro de bois, o murmúrio dos ribeiros, o ranger do monjolo nos seus gonzos de peroba, o aboio do vaqueiro.

Acha Agripino Grieco que o criador de “A Escrava Isaura”, vivendo longo do mar e da metrópole, foi ele o nosso primeiro sertanista em verso, em rústico, um paisagista da pena. Compreendeu a alma vegetal da gente da roça.” (“Evolução da Poesia Brasileira, 1947)

Em 13 de agosto de 1925, em discurso pronunciado na Academia Brasileira de Letras, afirmava Augusto de Lima:

“Ninguém conheceu melhor o sertão que o autor de “Jupira” e do “Índio Afonso”, na sua topografia, na sua vida, no seu colorido, na sua força e nos seus rumores misteriosos. Ninguém melhor –os costumes, a índole, a ingenuidade, a esperteza, a bravura ou a perfídia da gente sertaneja. Todo o folclore da roça, dos arraiais e das matas selvagens que lhe eram familiares. O batuque. A quatragem, o cateretê, e outras danças indígenas, africanas, que animavam os festejos populares das fogueiras de Santo Antônio, São João, São Pedro e Santana, Bernardo as descrevia com todo o seu pitoresco característico.

“Ninguém melhor aproveitou, para o interesse das narrativas e entrecho dos contos e romances, as lendas de superstições das ingênuas populações dos campos.”

O próprio Bernardo Guimarães fazia esta revelação:

“Em compensação aí tendes em vossa Corte –dizia ele aos seus leitores – bom número de insignes talentos, que com tanta habilidade e elegância sabem manejar a pluma de romancista, e que podem admiravelmente acaraciar-vos a fantasia com lindas e galantes históricas de amores nascidos à sobra de caramanchão de jardim e desenvolvidos ao esplendor dos lustres do salão de baile ou do teatro, ou no convívio dos serões de família ao pé do piano entre ondas de harmonia, ou em roda de uma mesa ao calor de um bule de chá. E isso não me pe possível, já o disse. A minha musa é essencialmente sertaneja, sertaneja de nascimento, sertaneja por hábito, sertaneja por inclinação.” (“O Índio Afonso”).

“Bernardo Guimarães é o iniciador do sertanismo no nosso romance.” É a confirmação de Estevão Cruz na sua “História Universal da Literatura”, de 1939.

Estudou ele o índio que bem conheceu, “e, melhor ainda, integrou o matuto em nossa literatura, precedendo nisso a Franklin Távora”, observa Basílio.

“Muitos antes dele, [outros escritores] abrasileiraram a novela, é fato indiscutível, atestado pelas datas. Mas esse abrasileiramento ou foi incompleto ou não passou de pastiche. Considere-se caso de Alencar. A um espírito de portentoso talento, qual o imortal cearense, era possível estilizar índios, gaúchos e sertanejos, que não observou nunca no hiterland pátrio; não, porém, fixar-lhes as características reais, de tão difícil apreensão para quem nas perscrutam, de visu, no seu meio existencial.

“Por isso, a Bernardo Guimarães –‘um benemérito intérprete dos sentidos do nosso povo’ na luminosa expressão de Clóvis Bevilaqua (“Épocas e Individualidades”) – que nele preferia o romancista ao poeta, foi que couberam a primazia e a glória de haver integrado nas letras nacionais o homem do interior, estancieiro ou garimpeiro, campônio ou matuto, quilombola ou mameluco, com todas as suas virtudes e com todos os seus defeitos, com todos os seus traços éticos e com todas as suas usanças materiais, cada qual em nítido destaque no seu nativo ambiente físico e social”

Para Ronald de Carvalho, com Bernardo Guimarães “tivemos as primícias do sertanismo, do romance campesino, que Arinos, nos contos do “Pelo Sertão” poliu e desenvolveu de um modo quase definitivo, usando dos mesmos processos de Turgeneif, nas “Histórias de Um Caçador”. (“Pequena História da Literatura Brasileira”, 1915).

Salienta João Alphonsus:

“Ainda que outros méritos não tivesse, restaria a Bernardo Guimarães historicamente a glória de iniciador do nosso sertanismo literário, iniciação espontânea ou, quando menos, livre de paternidade européia ou americana como o indianismo ou o antiescravismo”.

Foi Bernardo, diz o mesmo autor, o “Fundador da nossa literatura”. (“Revista do Brasil”, maio de 1941).

Naturalismo

Não só o sertanismo, mas o naturalismo (ou realismo) deve ao boêmio das Alterosas a sua introdução nas nossas letras, embora em doses homeopáticas. E naturalismo sem episódios de lubricidade. Pouco realismo, mas com “papel saliente na evolução do romance nacional”, conforme a afirmação de Artur Mota “(Revista do Brasil”, janeiro de 1920).

Se por naturalismo só se concebe a expansão da fisiologia do sexo, nada há, em torno desse aspecto, o que se possa admirar em Bernardo Guimarães. Mas se as operações mentais e as atividades psíquicas, que se extravasam da animalidade, também fazem parte do naturalismo humano e do realismo, então não se pode negar a contribuição do escritor a essa faceta das letras.

Basílio de Magalhães opina que em “Rosaura” e em “O Seminarista” “é que deve o escritor o título de precursor da escola realista no Brasil”.

E por que não também em “A Escrava Isaura”?

Sílvio Romero, na sua clássica “História da Literatura Brasileira” (2º volume, 1903), faz excelente estudo do naturalismo em Bernardo Guimarães, observando que o escritor, “como um sertanejo, um homem habituado à vida singela e pitoresca do interior, não era um desses espíritos curtos e maldizentes, que praguejam contra todo o progresso, um desses obcecados que desejariam ficasse o Brasil perpetuamente entregue aos caboclos na sua inveterada estupidez. Muito ao contrário, Bernardo foi sempre avesso ao caboclismos exagerados. Era um espírito liberal e progressivo”.

E fala Romero, com argumentos aceitáveis, da intuição renovadora do romancista, mostrando como ele “teve um pressentimento poético da intuição contemporânea”. Emparelha-o, o grande crítico, a Franklin Távora, assegurando: “Este romancista e Bernardo Guimarães são, pois, dois predecessores do naturalismo à contemporânea e merecem honroso lugar na pátria literária.”

Duas opiniões de Basílio de Magalhães:

Se José Veríssimo tem plena razão, quando assegura que ‘Bernardo Guimarães, como romancista, é um espontâneo, sem alguma prevenção literária, propósito estético ou filiação consciente de nenhuma escola, não menos acerta Ronald de Carvalho, ao afirmar em “Pequena Histórica da Literatura Brasileira” que o escritor mineiro não conseguiu ‘fixar um só tipo, realmente perfeito’, pois ‘todos eles são mais ou menos postiços, convencionais, muito embora houvesse da parte de Bernardo uma decidida vontade de pintar ao natural as criaturas que lhe passaram sob os olhos’. Não foi um criador, pois para tanto lhe faltou a imprescindível genialidade; foi, sim, um observador, simples e arguto.”