Hino à tarde

A tarde está tão bela e tão serena

Que convida a cismar ...

Ei-la saudosa e meiga reclinada

Em seu etéreo leito,

Da muda noite amável precursora;

Do róseo seio aromas transpirando,

Com vagos cantos, com gentil sorriso

Ao repouso convida a natureza.

Montão de nuvens, como vasto incêndio,

Resplende no horizonte, e o clarão rábido

Céus e montes ao longe purpureia.

Pelas odoras veigas

As auras brandamente se espreguiçam,

E o sabiá na encosta solitária

Saudoso cadenceia

Pousado arpejo, que entristece os termos.

Oh! que grato remanso! — que hora amena,

Propícia aos sonhos d'alma!

Quem me dera voltar à feliz quadra,

Em que este coração me transbordava

De emoções virginais, de afetos puros!

Em que esta alma em seu selo refletia,

Como o cristal da fonte, pura ainda,

Todo o fulgor do céu, toda a beleza

E magia da terra! ...ó doce quadrar

Quão veloz te sumiste — como um sonho

Nas sombras do passado!

Quanto eu te amava então, tarde formosa.

Qual pastora gentil, que se reclina

Rósea e louçã, sobre a macia relva,

Das diurnas fadigas descansando;

A face em que o afã lhe acende as cores,

Na mão repousa — os seios lhe estremecem

No mole arfar, e o lume de seus olhos

Em suave langor vai desmaiando;

Assim me aparecias, meiga tarde,

Sobre os montes do ocaso debruçada;

Tu eras o anjo da melancolia

Que à paz da solidão me convidava.

Então no tronco, que o tufão prostrava

No viso da colina ou na erma rocha,

Sobre a margem do abismo pendurada,

Me assentava a cismar, nutrindo a mente

De arroubadas visões, de aéreos sonhos.

Contigo a sós sentindo o teu bafejo

De aromas e frescor banhar-me a fronte,

E afagar brandamente os meus cabelos,

Minh'alma então boiava docemente

Por um mar de ilusões e parecia

Que um coro aéreo, pelo azul do espaço,

Me ia embalando com sonoras dálias:

De um puro sonho sobre as asas de ouro

Me voava enlevado o pensamento,

Encantadas paragens devassando;

Ou nas vagas de luz que o ocaso inundam

Afoito me embebia, e o espaço infindo

Transpondo, ia entrever no estranho arroubo

Os radiantes pórticos do Elísio.

Ó sonhos meus, ó ilusões amenas

De meus primeiros anos,

Poesia, amor, Saudades, esperanças,

Onde fostes? por que me abandonasses?

Inda do tempo me não pesa a destra

E não me alveja a fronte; — inda não sinto

Cercar-me o coração da idade os gelos,

E já vós me fugis, ó ledas flores

De minha primavera!

E assim vós me deixais, — tronco sem seiva,

Só, definhando na aridez do mundo?

sonhos meus, por que me abandonasses?

A tarde está tão bela e tão serena

Que convida a cismar: — vai pouco a pouco

Desmaiando o rubor dos horizontes,

E pela amena solidão dos vales

Caladas sombras pousam: — breve a noite

Abrigará com a sombra de seu manto

A terra adormecida.

Vinde ainda uma vez, meus sonhos de ouro,

Nesta hora, em que tudo sobre a terra

Suspira, cisma ou canta,

Como esse afagador extremo raio,

Que à tarde pousa sobre as grimpas ermas,

Vinde pairar ainda sobre a fronte

Do bardo pensativo; — iluminara

Com um raio inspirado;

Antes que os ecos todos adormeçam

Da noite no silêncio,

Quero um hino vibrar nas cordas d'harpa

Para saudar a filha do crepúsculo.

Ai de mim! — esses tempos já caíram

Na sombria voragem do passado!

Os meus Sonhos queridos se esvaíram,

Como após o festim murchas se espalham

As flores da grinalda:

Perdeu a fantasia as asas d'ouro,

Com que Se alava às regiões sublimes

De mágica poesia,

E despojada de seus doces sonhos

Minh'alma vela a sós com o sofrimento,

Qual vela o condenado

Em sombria masmorra à luz sinistra

De amortecida lâmpada.

Adeus, formosa filha do Ocidente,

Virgem de olhar sereno que meus sonhos

Em doces harmonias transformavas,

Adeus, ó tarde! — já nas frouxas cordas

Rouqueja o vento e a voz me desfalece...

Mil e mil vezes raiarás ainda

Nestes sítios saudosos que escutaram

De minha lira o desleixado acento;

Mas ai de mim! nas solitárias veigas

Não mais escutarás a voz do bardo,

Hinos casando ao sussurrar da brisa

Para saudar teus mágicos fulgores.

Silenciosa e triste está minh'alma,

Bem como lira de estaladas cordas

Que o trovador esquece pendurada

No ramo do arvoredo,

Em ócio triste balançando ao vento.