A Baía de Botafogo (canto épico)

I

Golfo sereno que no teu regaço

A fronte espelhas de escalvados serros,

E soluçando pelas curvas praias

Límpidas ondas preguiçoso estiras;

Vales sombrios de perene esmalte,

Que em caprichosos giros coleando

Vos escondeis nas dobras da montanha

Entre muralhas de empinadas rochas;

Lindas encostas, cômoros viçosos,

Que o rico manto de verdura e flores

Alardeais à luz de um céu formoso;

Negros penhascos, arrojados píncaros,

Que mergulhais as enrugadas frontes

De luz dourada em vislumbrante pego;

Dizei, não éreis vós mansão querida

Do gênio, que Deus pôs guardando a entrada

Das vastas solidões americanas?

Não era aqui seu templo?... estes penedos

Que se perdem no azul do firmamento,

Quais os braços da terra, que estendidos

Como em solene prece a Deus se exalçam,

Nao eram os altares sacrossantos

Sobre os quais a opulenta natureza,

Que o seio anima ao trópico fecundo,

Aos céus erguia as oblações da terra?

E esses vales profundos, essas grutas,

Onde revoam místicas aragens,

De brando aroma saturando os ares,

Os venerandos penetrais não eram,

Onde em santo mistério resguardados

Do futuro os arcanos se escondiam?

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Por sobre vós os séculos passaram,

E um dia o nauta audaz transpondo os mares,

Do inculto Éden veio bater às portas,

E devassar recônditos mistérios

Que em vosso seio os fados ocultavam.

Quebrou-se a paz das solidões profundas,

E o silêncio que há séculos pousava

Sobre estes lindos, ignorados ermos.

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II

Estas viçosas e gentis colinas

Aos golpes do machado um dia viram

Tombar-lhe aos pés a secular madeixa

De selvas seculares, que oscilavam

A sussurrar-lhes nos sombrios topes;

E gemeram os ásperos fraguedos

Atônitos ouvindo em suas bases

Retinindo a alavanca e a picareta

A lacerar-lhe os flancos de granito,

E aos sons estranhos nas profundas grutas

Em sobressalto os ecos acordavam.

Eis já da indústria o espírito fecundo

Da natureza inculta se apodera,

E a branca pedra e os lenhos da montanha

No incessante lidar vai transformando

Em risonhos casais, jardins formosos,

Que entre folhudas moutas de esmeralda,

Entre festões floridos e latadas,

Alvejam na colina, ou se derramam

Nos sinuosos vales, semelhando

Níveos cisnes, que em bando se recreiam

De quieto lago nas ervosas margens;

Do futuro os arcanos se desvendam

À luz que vem das regiões da aurora;

Rasgam-se os véus que em carregadas trevas

Do novo mundo os fados escondiam,

E às novas gerações o anjo das artes

Vai pelos campos do porvir traçando

As do progresso luminosas sendas.

Da bronca barbaria o inerte gênio

Sobre as montanhas exalçando o vôo

Pesaroso bateu as fuscas asas.

III

Ó colinas, ó veigas perfumadas,

Deleitosos vergéis, jardins de fadas,

Em quanta linda cismadora fronte

Que em vaporosos devaneios perde-se

De vago amor e de emoções sem causa,

Não derramais a sombra benfazeja!

Que segredos, que meigas confidências

Não recatais co'a trêmula folhagem!

Que virginais e cândidos anelos,

Quanto cismar de túmida esperança,

À frouxa luz da tarde, que esmorece,

Ou de brando luar ao clarão pálido,

Não embalais com vagos rumorejos!

Sim, é aqui pelas discretas sombras

Destas silenciosas alamedas,

Que fatigada dos saraus brilhantes,

E do febril turbilhonar das festas,

Vem a beleza em horas de remanso,

A conversar co'as flores, co'as aragens,

Para acalmar dos seios ofegantes

O mui ansioso arfar, e entre suspiros,

Que os róseos lábios leves lhe desfloram,

Dar livremente às virações da tarde

As fugitivas emoções do baile.

E quem sabe?... por vezes menos leda

Talvez pensar de amor fundas feridas

Que o coração teimosas lhe devoram.

E qual é o infortúnio que não acha

Um bálsamo eficaz neste ambiente,

Pejado de perfumes, nestes quadros

Donosos, que sorrindo ao longe e ao perto,

À alegria, aos prazeres vos convidam;

E que parece estarem de seu seio

A respirar eflúvias de ventura!

Quem nestas puras brisas, que bafejam

Âmbar e rosas no macio adejo,

Pressuroso não bebe a longos tragos

Suave olvido às mais pungentes mágoas?

IV

Vede quando o sol se ergue sobre as vagas

Nestas manhãs de abril, como são lindos

Esses céus, essas águas, vales, montes,

Bosques, jardins, palácios e choupanas

Que ao longe e ao perto em maga perspectiva,

Em painéis variados se desdobram.

Do fundo da valada se desprendem

Brancas névoas, que pela azul esfera

A brisa carda em lúcidos vapores.

Além num céu, por onde desdobrado

Um véu sutil de brumas transparentes

Os mui vivos fulgores esmorece,

As colossais figuras se desenham

Dos altaneiros píncaros, perdidos

No vago azul, pilastras de granito

A sustentar a abóbada luzente

De ouro e safira. __ Tu dirias antes

Caprichoso painel, que sobre a tela

Arrojado pincel fantasiara;

Ou encantado Elísio que das ondas,

Das fadas o condão maravilhoso

Vos fez surgir aos olhos vislumbrados.

V

Ó amor, se ainda hoje perdurassem

Essas mimosas crenças, com que outrora

Se embalava a risonha fantasia

Ao engenhoso habitador da Grécia,

Idálias selvas, Amatunta e Pafos,

Com tua gentil mãe desertarias,

E as aras tuas, teus risonhos cultos

Plantar virias nestas lindas veigas;

Aqui ao sol dos trópicos mais viva

Em teus altares arderia a chama;

E nestes vales, onde a flor não murcha

E os verdores jamais empalidecem,

Mais grato asilo, mais propícias sombras

A teus doces mistérios encontraras.

Porém que digo? acaso em cada gruta,

Em cada asilo desses, que se esconde

Entre enleadas redes de verdura,

Entre esses brandos ninhos de esmeralda,

Que pendem pelo viso dos outeiros,

Não tens um templo, em que piedoso aceitas

Constantes oblações, votos ardentes?

Desses vergéis nos áditos umbrosos

Mais de uma Vênus tem aras e templo,

Onde entre aromas e festivos hinos

Em mago enlevo sem cessar recebem

Fiéis adorações, férvidos cultos.

VI

Por esses troncos vagas hamadríadas

Recatam seus encantos; essas fontes

No seio abrigam náiades mimosas,

Que sem temer os atrevidos faunos

Os torneados membros de alabastro

Tranqüilas banham no cristal brilhante.

Se o triste Acteu aqui surpreendesse

Diana a se banhar na clara fonte,

Não fora transformado em feio lobo,

Nem pelos cães famintos devorado;

Mas primeiro de amores morreria.

Não é mister aqui que o belo Adônis

De suas rotas veias verta o sangue

Para dar cor às pudibundas rosas.

Por estes vales Eco só repete

Festivos sons, sem nos lembrar a história

De seu nefasto amor; e nunca mesmo,

Ao mirar-se no espelho destas fontes,

Os Narcisos em flores se convertem,

Por mais que de si mesmos se namorem.

Pode Leda vagar por essas praias

Sem recear os disfarçados cisnes;

Nem os touros aqui por mar em fora

Soem levar as descuidadas ninfas.

Nestas fecundas, venturosas plagas,

Não têm domínio vingativos numes,

Nem malfazejas fadas nelas reinam

Aqui somente a próvida natura

Das engenhosas artes ajudada,

E sem auxílio de sonhados numes,

Prodígios gera, como a Grécia nunca

Em seus mais belos sonhos fabulara.

VII

Vede aquele rochedo, que isolado

Com temeroso vulto se levanta

Por sobre as águas; __ atalaia eterna,

Que nos céus embebendo a fronte imóvel

Ampara as terras e vigia os mares.

Ei-lo campeia, qual o negro eunuco,

Ali postado, taciturno e quedo,

De harém vedado defendendo a entrada.

Junto a seus pés as ondas marulhosas

Com medonhos bramidos rebentando

Na rocha nua, as bases lhe debruam

De um cinto de alva espuma. __ Tal diríeis

De brancos ursos apinhados bandos,

Que atropelados pelas praias correm,

Qual se feroz matilha os perseguira.

Para galgar as íngremes encostas,

Em furiosos saltos se arremessam

Pela empinada, rija penedia!

Em vão forcejam... pela rocha lisa

As impotentes garras escorregam;

E de novo rosnando se despenham

A sumir-se no pego, que os devora,

E de novo os vomita a prosseguirem

No eterno assalto contra a rocha imóvel.

VIII

Na crista dessa roca inacessível

O Querubim, a quem Deus confiara

Da juvenil América os destinos,

Se entronizava, há séculos, guardando

Essas risonhas plagas opulentas,

Que um dia os fados franquear deviam

Do orbe antigo aos cultos habitantes.

Ali serenas vistas derramando

Pela cerúlea imensidão dos mares,

Esperançoso olhar contínuo volve

Para o oriente, donde a luz emana;

Não como outrora o arcanjo inexorável

Com espada de fogo, colocado

Do Paraíso à porta, onde iracundo

Aos miserandos pais da humanidade

Dos perdidos jardins vedava a entrada:

Mas ansioso aguardando o fausto dia,

Em que aprouvesse à Eterna Providência

De par em par abrir as portas de ouro

De um novo Éden, que a sorte mitigasse

De Eva infeliz à deserdada prole.

Enfim lá surge um dia, em que nas orlas

Extremas do oriente vê singrando

- Como galhos de arbustos enfezados

Medrando a custo em páramos de areia -

No equóreo plaino os suspirados mastros,

Que vêm ao continente americano

Novos homens trazer, destinos novos.

Então sorriu-se o Querubim formoso,

E de celeste júbilo banhadas

As faces lhe resplendem; - crava os olhos

De inefável fulgor no firmamento,

E este hosana de amor aos céus exalça:

IX

"Salve, dia feliz, que no oriente

Entre formosas galas despontando,

De uma era nova as portas vens abrindo!

Salve, ditosos nautas, brancas velas,

Que das remotas regiões da aurora,

No mar traçando glorioso esteiro,

Vindes quebrar a secular barreira

Que em vosso mal o espírito das trevas

Entre os dous hemisférios levantava!

Sede bem-vindos nestas ermas praias

Da América formosa, que nest'hora

Agita de prazer o escuro manto

De intonsas selvas, que lhe veste os ombros,

E pressurosa já os mil tesouros

Do fecundo regaço vos oferta.

Já do seio da esconsa eternidade

Nova série de séculos dourados

Vejo surgirem!... - Novos horizontes

Cheios de luz pelo porvir resplendem!...

Já desparece a bárbara rudeza

Dos primitivos íncolas das selvas,

E à luz imensa que da aurora surge

Da ignorância as sombras se esvaecem!

Os torpes manitós, fuscos vampiros,

Das trevas filhos, de tropel desertam

As lôbregas cavernas, onde há pouco

Hediondas oferendas recebiam;

E o torvado pajé, hirto de espanto,

No imundo altar, onde fumega o sangue,

Vê a chama apagar-se, e pelas brenhas

Agoureiras, espíritos escuta

Sinistros vaticínios ululando!..

Dos maracás o ríspido arruído,

Os rudes sons de dissonante inúbia,

As orgias de sangue, os alaridos

De ferozes poemas entoadas

Entre ranger de dentes, entre pragas,

Entre o estourar de crânios, que rebentam

Aos golpes do terrível tangapema,

Vão ser trocados pelos doces quebros

Do passarinho, que saúda a aurora,

Pelo sonoro ciciar da brisa

Que dos canaviais açouta a coma,

Ou do milho os pendões leve debruça,

Pelo cantar singelo do campônio,

Que bendizendo as horas do repouso,

Co'a enxada ao ombro, ao descair da tarde,

Busca do alvergue o sossegado abrigo,

Onde entre os filhos meneando a roca,

A fiel companheira à porta o espera.

Não mais abrigarão estas florestas

Co'as sussurrantes, perfumadas sombras,

Fadadas a mais plácidos misteres,

Ritos de sangue e bárbaras usanças;

E leis mais brandas, mais humano culto

Aqui bafejarão os áureos berços

De novas gerações, a quem os fados

No regaço da paz e da abundância

Grandioso porvir hão preparado."

X

Calou-se um pouco o espírito celeste,

Qual se uma nuvem lhe roubasse aos olhos

O brilhante painel, que nesse instante

O transportava em divinais arroubos.

Cruza os braços no peito, e após instantes,

Um suspiro exalando, assim prossegue:

XI

"Mas ah! - que véu fatídico e sinistro

Me enturva os olhos!... Lutuosas sombras

Pairam pelo horizonte, que inda há pouco

Se me antolhava límpido e sereno!...

De luta e sangue séculos ainda

Sobre estas regiões têm de volver-se,

Té que se cumpra a última palavra

Dos desígnios do Eterno, e abra-se esplêndido

Esse porvir de luz e de venturas,

Do qual hoje desponta o albor primeiro

Na infinita cadeia das idades!

Por largo tempo ainda o anjo das artes

Gastará seus cinzéis na rude crosta

De feroz barbaria, que estas plagas

A seus domínios traz avassaladas.

Mal regradas paixões, torpe cobiça,

Covarde ignávia, cálculos estúpidos,

Trarão ainda à terra da abundância,

Da riqueza e da paz, miséria e fome,

Guerra e flagícios, cativeiro e morte!

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Ó vós, a quem os fados incumbiram

De abrir o seio destas virgens plagas

Às luzes da verdade e do progresso,

Cuidais que aos sons da algema e do azorrague

A missão cumprireis santa e sublime,

Que mal compreendeis?... oh! sois indignos,

Sois traidores ao céu, que vos envia!..

Ingratos!... aqui onde a liberdade,

De vossos tristes climas foragida,

Um asilo feliz vos preparava,

Onde nunca aos ouvidos dos humanos

O retinir dos ferros ecoasse,

Por que vindes vós mesmos algemá-la,

E com dobrados nós atá-la ao tronco,

A cuja sombra em doce paz dormia?...

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Deixai, deixai lá nos talados campos

Da velha Europa, aonde em holocausto

De seus tiranos ao feroz capricho

Os povos uns aos outros se degolam,

Onde os tronos um'hora se levantam

Sobre montões de ruínas e cadáveres,

Ora tombando com fracasso horrendo

Com seus destroços as nações esmagam,

Deixai o jugo, e códigos de sangue,

Ominoso legado que heis herdado

Da tirania aos séculos ferrenhos.

Não, não venhais nestes tão puros climas

Inocular o pestilente gérmen

De ruins paixões, de vícios execráveis,

Que das velhas nações corrompe a seiva;

E nem tenteis plantar por estas margens

Vãos preconceitos, fósmeas da antigualha,

Estranhas leis, instituições caducas,

Que em vosso mal impróvidos deixastes

Cravar no chão raízes seculares!

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Deixai, que nestas veigas solitárias

Renasça a tolerância, e que algum dia

Novos costumes, leis, que se harmonizem

Aos ditames da eterna sapiência,

Da liberdade à sombra aqui floresçam...

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Porém se um dia, ó santa liberdade,

Tens de ver teus altares profanados

Neste país, que os céus te destinaram;

Estas imensas regiões fecundas,

Com toda essa opulência e louçania,

Aos olhos dos mortais, indignos delas,

De chofre pelas ondas devoradas,

De novo nos abismos se sovertam!"

XII

Disse, e no espaço desprendendo o vôo

Foi ocultar seu pranto e seus queixumes

Aos pés do excelso trono de Jeová!

Rio de Janeiro, outubro de 1864.