A Campanha do Paraguai

Invocação

Ó musa, deixa do vergel sombrio

O asilo perfumoso;

Cerra o ouvido ao suave murmurio

Do arroio suspiroso.

Pendura ao ramo a lira maviosa,

Em que cantas ao céu da solidão

No remanso da sombra deleitosa

Sonhos do coração.

Além, -- não ouves? o leão da guerra

Ruge, e sacode a ensangüentada juba;

Se o fragor das batalhas não te aterra,

Se podes tanto, emboca a heróica tuba

E em valentes, altíssonos clangores

Da guerra canta as glórias e os horrores.

Vamos além, -- as vagas açoutadas

De rábidos pampeiros

Cortando afoita em rápidas jornadas,

Vamos do sul aos plainos derradeiros.

Entremos pela foz do imenso rio,

Que o ribombo escutou de cem batalhas,

Inda de sangue tinto, inda sombrio

Do fumo das metralhas:

Desse rio, que em fogo enovelado,

Refletindo clarões sanguinolentos

Vomitou no oceano horrorizado

Cadáveres aos centos.

Por essas margens onde quer que passes,

Que de ruínas! que de sangue e luto!

Do órfão, da viúva inda nas faces

Não está o pranto enxuto.

Ainda no barranco escalavrado

De ardente bombardeio

O rio lambe o sangue derramado.

Nos páramos infestos

Inda dos charcos pútridos em meio

Devora o corvo os asquerosos restos

Do festim, que dos povos a vingança

Lhe preparou nos campos da matança.

Vamos; -- não temas transviar-te, oh! musa;

Armas quebradas, corpos espargidos

Aqui e além pela floresta escusa,

Rotas trincheiras, fortes derruídos,

Montes de ossadas, poças de sangueira

Nos guiarão ao termo da carreira.

Troféus sanguinolentos, que recordam

Os nomes de uma plêiade de heróis,

Que mil proezas na memória acordam,

Serão nossos faróis.

Ali se pelejou luta gigante

Em férvidas batalhas;

Ali dos nossos o valor pujante

Fossos rompeu, tranqueiras e muralhas,

E no próprio covil duro castigo

Foi fulminar ao pérfido inimigo.

Vindicaram-se ali da espada aos fios,

Ao ronco dos canhões,

De três nações os ultrajados brios:

- Nobre desforra dos mais vis baldões!

Por esse longo esteiro sanguinoso

Que ampla ceifa de louros! que vitórias!

Que estádio luminoso

Tropel de heróis abriu às pátrias glórias!

Que nomes imortais!... Riachuelo,

Sepultura da armada paraguaia;

Humaitá, o horrível pesadelo,

Perante o qual todo o valor desmaia;

Cuevas, Itapiru,

E as alagadas, pérfidas campinas,

Que cingem Curuzu,

Itororó e Lomas Valentinas,

São páginas de luz em nossa história,

São brilhantes fanais,

Em que resplendem da brasília gloria

Reflexos imortais.

Saúda, ó musa, os sítios afamados,

Que viram tais portentos,

E da guerra aos heróis assinalados

Um hino entoa em másculos acentos.

Eia! com tuas mãos imaculadas,

Coroas tece aos filhos da vitória

De louros e perpétuas entrançadas,

E no festim da glória

Dá-lhes assento entre os mais altos vultos.

Que alcançaram no mundo eternos cultos.

Canta os heróis; -- do bardo é grato o canto

Ao coração do bravo,

Bem como roto favo,

Que mel em fio escorre; - mago encanto,

Que ao lidador a fronte desenruga,

Enquanto o sangue do montante enxuga.

Da lira o canto, que consagra a fama

De ilustres lidadores,

E aos séculos proclama

Os nomes seus da glória entre os fulgores,

De um povo inteiro o culto respeitoso,

Apoteose, que lhes sagra em vida

Do peito no sacrário generoso

A pátria agradecida,

Dos bravos eis o nobre galardão,

E nem por aí lhes bate o coração.

Longe de nós os títulos balofos,

Vistosas fitas, nítidos pendentes!

Esse falso ouropel de brasões fofos

Não tem valor aos olhos dos valentes.

Bofé, que não são mais que torpe engodo,

Que nos arrasta à podridão do lodo.

Deixai, que dos heróis fuljam na história,

Puros os nomes de apelidos vãos,

Que só podem dar lustre à vida inglória

De fofos cortesãos.

De enfeites pueris limpo apareça,

Livre respire o peito do guerreiro,

Jamais dobre a cabeça

Da corrução ao jugo lisonjeiro,

Que o prêmio no vil peito do covarde

Também verás brilhar ou cedo ou tarde.

Fundo golpe, que abriu atroz metralha,

Ou lança aguda em preito encarniçado,

Eis o brasão do herói, eis a medalha,

Que assenta mais no peito do soldado.

O povo inteiro bem vos sabe o nome,

Do Paraguai altivos vencedores;

Dos feitos vossos o gentil renome

Não precisa dos pálidos fulgores

De frívola honraria,

Que brasões tendes de maior valia

Adornos vãos de estólida vaidade

Não conhece da história a musa austera,

Que o livro escreve da posteridade,

E nos domínios do porvir impera.

Para a fronte de seus heróis queridos

Só tem louros singelos

Por suas próprias mãos entretecidos;

Esses da glória os fúlgidos emblemas,

Que têm maior valor, que são mais belos

Que os régios diademas.

Mas ai!... dessas coroas invejadas

Quantas já vão de fúnebre cipreste

Tristemente enramadas!

Quantos lá jazem na campanha agreste

-- Desamparados sobre a terra nua, -

A quem aguda lança ou bala ardente

-- Tão longe da querida pátria sua!--

Lá deixaram dormindo eternamente!

Mas se acaso não pode a pátria em pranto

Seus restos recolher em urnas de ouro,

Ergue-lhes, musa, em sonoroso canto

Padrão mais duradouro,

E os nomes seus e os louros gloriosos

Regados pelo pranto da saudade

Brilhando chegarão sempre viçosos

À mais remota idade.

Eis, ó musa, a missão, que te confia

Da pátria o amor sagrado;

Ele te inspire sonoroso brado

De máscula harmonia;

Ele me alente neste nobre empenho,

Digno por certo de mais alto engenho.

II

Lopez e Humaitá

No seio lá do paraguaio solo

Sanhudo leopardo se aninhava,

Com a pata feroz calcando o colo

De uma nação escrava.

Com torvo olhar a malfadada gente

Cioso guarda, - pavorosa esfinge;

Todos os dias o faminto dente

Em sangue humano tinge.

Do cacique na lôbrega espelunca

Do despotismo a furibunda harpia,

Feroz desconfiança a garra adunca

Amola noite e dia.

De seus escravos a caterva muda

Somente ao nome seu descora e sua;

E de joelhos tremula saúda

Té mesmo a sombra sua.

Sem nunca descansar sanguenta fúria

Ao cutelo do algoz afia o corte;

Vela incessante na sombria cúria

Por sentinela a morte.

Folga nas trevas qual sinistro mocho,

E do mistério a escuridão só busca;

Da luz do céu um raio inda que frouxo

Os olhos seus ofusca.

Com vesgo olhar desconfiado espia

O forasteiro, que lhe bate à porta;

Vê-lo é crime; falar-lhe é ousadia

Que pouca vez suporta.

Feroz rudeza, estúpida indolência

Por seus domínios sem contraste impera,

Nem um raio da luz da inteligência

Nos antros seus tolera.

Com muralha de bronze bem quisera

Cingir em torno as terras paraguajas,

E ai daquele que ao covil da fera

Transpor ousasse as raias!

Sim, bem quisera qual em turvo mangue

Bojudo sucuri, torpe reptil,

Devorar em segredo a seiva, o sangue

De seu rebanho vil.

Mas vêde lá, na esquerda ribanceira

Onde em crescente encurva-se a barranca,

Do rio seu com hórrida tranqueira,

As portas atravanca.

Como bulcão de feia catadura

Ao longo da ribeira ei-la acolá,

A colossal, terrifica estrutura,

Soberba Humaitá!

É qual montanha de vulcões c'roada,

De baluartes um congesto enorme;

A mole imensa de canhões crivada

Estende-se disforme,

Da riba ao longo o bastião sombrio

Em vasto semicírculo se encurva,

E o sinistro perfil no longo rio

Estampa a sombra turva.

Ali co'a hiante fauce aterradora

As portas guarda à bárbara nação,

Como estendida garra ameaçadora

De colossal dragão.

Por trás desse reduto alapardado

O monstro as rédeas solta ao desatino,

E cuida ter em suas mãos fechado

Da América o destino.

* * *

Mas ainda dos seus o sangue é pouco

Para aplacar-lhe a sede; das entranhas

Um rugido soltando horrendo e rouco

Olhar de inveja às regiões estranhas

Alonga cobiçoso,

E em fel lhe ferve o peito ambicioso.

De seu merlão sentado nas ameias,

O déspota sombrio

Covarde insulta as flâmulas alheias,

E ultraje atroz, tremendo desafio

Do Brasil descuidado atira à face,

E antes que este acordasse da surpresa,

E irado o colo alçasse

De seus calcados brios em defesa,

Ei-lo que desleal, insana guerra

Ao seio leva da brasília terra.

Qual venenoso, tredo escorpião,

Que sem sair do ninho em que se encerra

O farpado ferrão no dorso enterra

De intrépido leão,

Tal a garra feroz o monstro vil

Estende e crava em terras do Brasil.

E enquanto com a cauda morde e açoita

De Mato Grosso as plagas indefesas,

A medonha cabeça erguendo afoita,

Nas regiões do sul atraca as presas.

Exulta o monstro, e já por acabada

A empresa dá, que ousado cometeu,

E cuida ver a América assustada

Tremer ao nome seu!

Exulta o monstro, e pavoroso brado

Arranca de selvática alegria,

E nos festins de sangue embriagado

Insano tripudia.

***

Ruges em vão, ó tigre famulento,

Em teu covil infando,

E em teu feroz intento

Insultos e ameaças borbotando,

Movendo às gentes traiçoeira guerra

Cuidas gelar de susto o mar e a terra!

Em vão de tuas selvas desenterras

Esquálidas coortes;

Em vão desse covil em que te encerras

Ergues à entrada monstruosos fortes;

Dos muros teus em triplicado cinto

Em vão medroso buscas o recinto.

Por engrossar as bárbaras falanges

Em vão, em vão porfias;

Dos velhos à mão tremula confias

Ferrugentos alfanjes,

E a matrona, e a donzela e a criança

Levas sem dó ao corro da matança.

Em vão de teu covil ergues à entrada

De Humaitá o horrífico espantalho,

Rude colosso, máquina abortada

De um século de trabalho.

De teus escravos às legiões bravias

Ébrio de orgulho dás fatal rebate,

E os povos, teus vizinhos, desafias

Aos campos do combate.

Fatal cegueira!... cuidas que na história

Brilhante nome vais gravar eterno

Em páginas de glória,

E julgando-te já Breno moderno,

De um ligeiro triunfo entumecido

No peito alentas esperança insana

De lançar tua espada de bandido

Na concha da balança americana.

Co'essa espada infeliz, que nas refegas

Dos rins jamais te sai,

Ah! tu não vês, que vais cavando às cegas

O sepulcro, em que já tombando vai

Contigo o povo, que jungido trazes

Do jugo teu aos vínculos falazes?...

Águia quiseste ser; - cabe-te o nome

De carniceiro abutre,

Que em cadav'res corrutos mata a fome,

E só de sangue e podridão se nutre.

A águia empolga a presa que cobiça

Com sua própria garra;

Mas ninguém viu pela sangrenta liça

O lampejo de tua cimitarra.

Sobre esses tristes campos desolados

Convertidos em pântanos de sangue,

Entre montões de corpos degolados

Por sepultura tendo infecto mangue,

Desce, ó monstro, os adejos teus abate

Que já vai longe o fumo do combate.

De teus famintos perros a matilha

Na erma granja, na indefesa aldeia,

De sangue, incêndio e roubos a mão-cheia

Abriu-te larga trilha.

Vem cevar com satânica alegria

De teus brutais instintos a fereza;

Vem, que de tua sanguinosa orgia

Está servida a mesa

É esta a presa que afanoso empolgas:

Éste o festim em que risonho folgas.

Mas... ergue um pouco a fronte,

Olha... não vês no lobrego horizonte

Uma estrela de sangue que se some

Nas sombras de um bulcão?

Teu castigo prediz... cobre teu nome

De eterna maldição.

III

Osório e a passagem passo da pátria

Eis já de Osório além do Paraná

O heróico vulto assoma,

Arde-lhe o peito em belicoso afã;

No árdido arrojo tudo vence e doma.

Brada avante!, - e voando impetuoso

De combate em combate

Com a ponta da lança às portas bate

Do déspota orgulhoso.

Onde vais, lidador aventureiro,

Que impávido e sereno,

E quase só calcar ousas primeiro

Do inimigo o pérfido terreno!...

Por sobre a tua fronte,

Por baixo de teus pés, a cada lado,

No campo ou selva, na valada ou monte

Vais achar teu exício aparelhado,

Por toda parte como por encanto.

Surdem perigos mil, erguem-se escolhos,

E com famintos olhos

Te espreita a morte oculta em cada canto.

Da floresta nos antros tenebrosos

Rubras crateras súbito se acendem,

E em roncos pavorosos

Do seio ardente mil trovões desprendem.

Aqui um som confuso remurmura

Em hórrido covil,

E súbito rompendo a mata escura

Flamejam lanças mil.

Qual doida nuvem, que zunindo passa

Impelida de rijo furacão,

Tudo fere, abalroa, e despedaça

O rápido esquadrão;

Corre, voa, destroça, e de hora a hora

Some-se aqui, além de novo brame,

Combate e foge, surde e se evapora

Qual de duendes pavoroso enxame.

Diante de teus passos

De ciladas um dédalo se enreda;

E o chão crivado de traidores laços

Passar além te veda.

De trás de cada tronco um combatente

Verás surgir, e a balsa verdejante,

Que além vês sussurrando, de repente

Em bulcão se transforma chamejante

Vomitando em borrissonos estouros

Um chuveiro de bombas e pelouros.

Atravancam-se aqui enormes pilhas

De árvores tombadas,

Que contra o rosto teu em mil estilhas

Erriçam-se farpadas,

Além sob o tapiz viçoso e mole

Falaz e liso esteiro

Esconde o tremedal, que inteiro engole

Cavalo e cavaleiro.

Onde vais, lidador aventureiro

Que impávido e sereno,

A cravar tua lança és o primeiro

No pérfido terreno?...

Mas quem pode deter o astro brilhante

No giro glorioso,

Ou da torrente férvida, espumante

Opor um dique ao curso impetuoso!...

Já longe avante vai; já dos perigos

Na medonha voragem se arremessa,

E com olhar tranqüilo ei-lo atravessa

Os fogos inimigos,

Que nas veredas ásperas da glória

Por guia leva o anjo da vitória.

Igneo lampejo o gládio seu fulmina

Por entre o nevoeiro das metralhas;

Um semideus parece, que domina

A sorte das batalhas,

Ei-lo que além desaparece envolto

De fumo e fogo em turbilhão revolto.

Qual o condor pairando em céu escuro,

Donde bramindo o raio se despede,

Assim Osório com olhar seguro

O paraguaio campo explora e mede;

Os ardilosos planos lhe adivinha,

E os mais esconsos antros esquadrinha.

Veloz como o tufão perlustra e bate

Em toda a linha a frente do inimigo,

E combate ferindo após combate

De covil em covil os desaloja,

E ao derradeiro abrigo

Dos baluartes seus os punge e arroja.

Assim quando o jaguar sanhudo invade

Dos caititus a solapada roca,

E derrama o terror e a mortandade

Pela sombria toca,

Em derredor da truculenta fera

Encarniçada a turba se aglomera.

Girando em turbilhões enovelados

Com hórrido estrugido

Roncam trincando os dentes navalhados.

Solta o jaguar um pávido bramido,

E à revolta caterva as garras lança;

Com eles entra em áspera refega,

E tudo, quanto o irado bote alcança,

Mutila, rasga, e rábido estrafega.

Ei-los em fuga lá se vão rosnando

Nova guarida ao longe procurando.

..............................................................

Salve Itapiru!... bronca atalaia,

Que as ameias ao céu ergues sombrias,

E à terra paraguaia

As fronteiras inóspitas vigias!...

Salve, ó tu, que primeira

Nos teus rotos merlões viste plantada

A gloriosa, nacional bandeira;

Tu, que a fronte humilhada

Ante o herói brasileiro inclinas muda,

Itapiru, a musa te saúda!...

Diante de teus muros

Que esplêndido painel se desenrola!

Vê como alegre aos troféus futuros

A brasileira flâmula tremola!...

O undoso Paraná vê entre assombros

Da temerária empresa o estranho arrojo;

De carga ufano, que conduz nos ombros

De inúmeros batéis no curvo bojo,

Em cada onda, que as areias beija,

Centos de heróis nas praias te despeja.

Em vão a tua irada artilharia

Qual molosso feroz espuma e ladra;

Despejando a tremenda bateria

Já lhe responde a brasileira esquadra.

Dos bordos o canhão rebrama iroso,

Ruína e mortes trovejando entorna;

Do Paraná o veio caudaloso

Em cratera de fogo se transtorna.

Horrível asteróide, a ardente bomba

Curvo giro traçando nos espaços

Rebenta, e num chuveiro de estilhaços

Dentro em teus muros tudo arrasa, e arromba.

Olha, que nobre ardor, quanto heroismo

Da denodada turba o peito inflama!

Tendo aos pés o voraz, undoso abismo,

Sobre a fronte um dossel de fumo e chama,

Já dos domínios teus rompe a baliza,

E o solo do inimigo afoita pisa.

Em torno de teus muros ondeando

A carabina, a baioneta, o sabre

Estrago e morte a eito derramando

Ao seio teu amplos caminhos abre,

E com bramido horrendo a artilharia

Atroadora saudação te envia.

Eis já por fim baqueias,

E de teu derrocado bastião,

Ondulando lá vejo nas ameias

Vitorioso o nacional pendão,

Avante! avante! heróicos lidadores

Longa a lide será, dura e fragueira;

Ainda longe está dos vencedores

A palma derradeira.

Avante! avante! - Osório é quem vos brada.

Ele aos campos da glória

Vos chama, e com a fulgurante espada

Vos aponta o caminho da vitória.

Avante! além! - já gloriosa estréia

Deixais ali gravada

De Itapiru na fronte esmoronada.

Dos feitos vossos na imortal cadeia

Forjastes o primeiro elo brilhante,

Prelúdio deslumbrante,

Dessa epopéia de gentis façanhas,

Quais esta idade nunca viu tamanhas,

Camaradas de Osório, avante, avante!...

IV

Riachuelo e Barroso

Salve, grão Paraná! - como se estira

Por páramos sem fim teu largo leito,

Abrindo ampla avenida de safira

Entre dosséis de nítida esmeralda,

Desde as montanhas de sombrio aspecto,

Que em borbotões te entornam pela espalda,

Té as risonhas, argentinas plagas,

Que no curso caudal soberbo alagas!

Qual boicininga enorme

A rugidora cauda sacudindo

Pelas montanhas no despenho insano,

O corpo estendes no deserto infindo,

E léguas trinta abrindo a boca informe

Vais morder o oceano.

Salve, gigante! - nos excelsos montes

Se assenta o trono eterno, em que dominas;

São teus remos intérminas campinas,

Infindos horizontes.

Os verdes pampas tens por escabelo,

Tens por dos sel o firmamento azul;

Salve, gigante majestoso e belo,

Rei das águas do sul!

Pelos ermos tranqüilo resvalando,

Campinas banhas, selvas e palmares,

E te acalentas ao murmúrio brando

Das selvas seculares.

Na vasta zona, que teu veio inunda,

Do virgem solo o seio fecundando,

Só vês da natureza a mão jucunda

Seus ricos dons risonha alardeando,

Ampara-te do sol contra o mormaço

Da selva intonsa o flutuante véu,

E no cristal do límpido regaço

Sorri-se a paz do céu.

A Deus prouvera de hórrido combate

Nunca ouvisses a grita furiosa,

Nem te tremesse o seio ao rijo embate

Da guerra sanguinosa!...

Oh! quem dera jamais outros rumores

Ouvisses mais que o canto do barqueiro

Cantando os seus amores,

Ou da floresta o múrmuro fagueiro,

E entre o farfalhar de auras suaves

Brandos gorjeios de inocentes aves.

Mas tu, que ora sereno e majestoso

Por solidões tranqüilas te derramas

Tintas de sangue em breve as tuas águas

Dos canhões ao ribombo pavoroso,

Verás arder entre vermelhas fráguas,

Não luz do céu, porém do inferno as chamas

Refletirás em teu turbado veio,

E em vascas de inaudito cataclismo

Ao choque horrendo tremerá teu seio

Desde o profundo abismo.

Como um bando de cisnes dorme arfando

A foz do Riachuelo

Dona das águas a brasília frota,

- Do paraguaio eterno pesadelo; -

E do inimigo os passos vigiando

Do grande rio lhe atravanca a rota.

Jura o cacique em fúria aniquilá-la;

E em peso a sua armada

De mortais apetrechos atulhada

Contra a esquadrilha descuidada abala.

Eia, Barroso... lá desponta a aurora

Do teu dia de glória,

O sol, que em Riachuelo surge agora

Esplêndido e formoso

Abre nos fastos da brasília história

Para teu nome espaço luminoso.

Leão do mar, sacode altivo a coma,

Que a presa tua no horizonte assoma.

Qual de abutres famintos negro bando

Águas abaixo ei-los que vêm singrando

Os lenhos paraguaios.

Trazem furor e sede de carnagem,

Monstros marinhos têm por equipagem,

Guardam no bojo da vingança os raios.

Vê, como audazes pela frente passam

Da brasileira frota;

Como dos lados todos a ameaçam

De inevitável, mísera derrota!

Atroadora em uma e outra borda

A voz tremenda dos canhões acorda.

Mas Barroso os espera calmo e quedo:

Bem como soberana águia altaneira

Pousada no rochedo,

Do convés da possante canhoneira

Um por um os contempla, os mede e conta,

E a cair sobre eles já se apronta.

Eis já do seio da inimiga esquadra

De balas mil um turbilhão rebenta;

Cada batei em fúrias ruge e ladra,

Qual de lobos matilha famulenta,

Expande-se no ar negrume horrendo,

De mil vermelhas chispas retalhado,

Como imensa caldeira refervendo,

Se empola ao rio o seio alvorotado,

Reproduzindo em lôbrega miragem

Do bombardeio a pavorosa imagem.

Não só das naus; - também da ribanceira

Na mata oculta horrível canhonada

Ferve e troveja ao longo da ribeira;

Qual do seio de nuvem lacerada

Ardente chuva de metralha e bomba

D'alta barranca sem cessar ribomba.

Dragões do mar com hórrido zumbido

Rugindo as asas rápidas agitam

Os lenhos artilhados;

Estua o rio ao tétrico estampido

Das torrentes de chama que vomitam

Dos rábidos costados!

Como vogando em céu tempestuoso

Densas nuvens ao sopro do tufão

Abalroando em choque temeroso

Rebentam com horríssona explosão,

Tais se entrevelam pávidos arfando

Os monstros flutuantes

Nuvens de ardentes balas despejando

Dos flancos fumegantes.

Urge o perigo; - assanha-se a tormenta,

O ar é fumo e fogo; - é sangue o rio; -

Ao clarão torvo de uma luz sangüenta

Ressalta o horror desse painel sombrio.

Entre rolos de fumo esbraseado

As trovejantes naus,

Dos canhões ao troar descompassado

Vogar parecem pelo horror do caos!

À súbita borrasca impetuosa

Impávida e tranqüila

Em seu posto um momento não vacila

A esquadra gloriosa,

Que em Paissandu ergueu nobre troféu,

E ante a qual tremeu Montevidéu,

Mas ai! urge o perigo; atroz carnagem

Entorna sangue em jorros no convés

De uma nau, que atracada de abordagem

Luta em perigo de fatal revés!

Além outra infeliz em transe incerto

Não tarda a sucumbir na heróica luta;

Por três navios fulminada ao perto

Em desigual combate em vão labuta.

Outra mais longe em cheio recebendo

Da ribanceira horrível bombardeio,

Ao peso verga do bulcão tremendo

E enterra n'água o lacerado seio...

Eia, Barros!... quase lá naufraga

Do brasileiro pavilhão a glória!.

Já do inimigo audaz, que nos esmaga

Nos lábios paira o grito da vitória.

Mas não: é cedo ainda; - o grito ousado

Convertido em gemidos de agonia

Vai no peito morrer-lhes - afogado

No próprio sangue, e na torrente fria

Lá vem cortando as ondas espumantes

Do "Amazonas" a proa gloriosa,

E sacudindo as asas sussurrantes

Vomita fogo a mole poderosa!

Qual monstruoso, rábido espadarte

Tudo, que encontra, fere, esmaga e parte.

Já do convés o impávido almirante

Sobre o inimigo aproa a férrea tromba

De seu batel pujante,

Que empurra, fere, despedaça e arromba

E no abismo sepulta de repente,

Quanta inimiga nau encontra em frente!

Ao rude choque das fatais marradas

Já três delas de morte estão feridas,

E pelo undoso vórtice engolidas

Lá ficam para sempre sepultadas.

As outras assombradas receando

O desastroso fim das companheiras,

Fogem, fogem ligeiras

Para evitar o exídio miserando.

Elas, que há pouco feras e bizarras

Vitória iam cantar... ai das mesquinhas

Medrosas andorinhas

Lá vão fugindo do condor às garras!

Levam da esfrega as asas derreadas,

Mas do pavor nas asas vão voando;

Das argentinas águas enxotadas

Para sempre se vai o turvo bando

Esconder-se de medo e de vergonha

Dos antros seus na solidão medonha.

Da aliança à cruzada generosa

Eis livre o passo sobre o vasto leito

Da imensa estrada undosa:

Para seguir no glorioso pleito

Já tu lhe abriste, intrépido Barroso,

Amplo caminho sobre o largo rio

Té plantar o pendão vitorioso

Nas ameias do déspota sombrio.

Salve, Barroso, nauta glorioso!

Salve, "Amazonas", imortal navio!

Salve, ó nomes tão dignos de memória!

Vós sós sois um poema!

E entre os troféus da brasileira glória

O mais formoso emblema!

........................................................................

Porém que atroz painel!... da luta insana

Vede o cenário horrendo!

Espesso fumo ainda os céus empana

Do turvo rio o seio escurecendo.

Tristes destroços, corpos mutilados,

Troncos, cabeças, braços decepados

Lá vão rolando... mas silêncio, ó musa ...

Cantar não tentes a gentil proeza;

Arcar não deves com tamanha empresa

Que a teus débeis acentos se recusa...

Vem tu, Meireles; vem, preclaro artista!

Rei do pincel, em meu socorro acode:

Desdobra à nossa vista

A tua radiante, imensa tela,

Mais eloqüente, mais vivaz, mais bela

Que a mais formosa ode.

E o que da musa o canto desmaiado

A custo mal exprime,

Vem revelar ao mundo deslumbrado

Com teu pincel sublime.

V

Uruguaiana e Canavarro

Agora, enquanto o pavilhão formoso

Da inclita aliança

Após novos lauréis correndo ansioso

Desassombrado em seu caminho avança;

Enquanto Osório a heróica espada arranca,

De derrota em derrota

O fugitivo paraguaio espanca,

E para além do Paraná o enxota;

Nós, oh musa, deixemos por momentos

Do grande rio a riba ensangüentada,

Por onde agora dos canhões cruentos

Flameja e ruge ainda a boca irada;

Desviemos um pouco da carreira,

Que vai trilhando a hoste gloriosa,

E ganhemos de um vôo a ribanceira

Do rio, que na lira harmoniosa

O cantor de Lindóia, o ilustre Gama

Encheu de eterna fama.

Uruguaiana, linda flor viçosa

Das campinas do sul,

Que a branca fronte espelhas orgulhosa

Do pátrio rio no regaço azul,

Tu, que em frente da Espanha americana

Gentil, nobre atalaia

Ao sul vigias do Brasil a raia,

Salve, Uruguaiana!

Um dia o pé brutal do paraguaio

Calcou-te o colo, profanou-te o seio;

Mas pronta como o raio

Mão vingadora em teu auxilio veio.

Dos filhos teus a indômita bravura

Oh! não, por muito tempo não consente,

Que em teu seio se abrigue a horda impura

Do bárbaro insolente,

Que da pátria as campinas tala e assola,

E o que há mais santo sem pudor viola!

O monstro carniceiro, que surgira

Das selvas paraguaias,

E com ousada planta conseguira

Do pátrio solo violar as raias;

Que rugia famélico e sedento

De sangue e de carniça,

E vinha ansioso em teu solo opulento

Fartar de roubos a feroz cobiça;

Ei-lo que arqueja hidrófobo, espumante

Colhido em fatal rede,

Ei-lo dobra o joelho suplicante

Morrendo à fome e à sede,

E à terra em vão, em vão aos céus implora

Lenitivo ao tormento, que o devora!

Mas passemos por alto a cena inglória

Da triste rendição;

Ela só nos acorda na memória

Horror e compaixão...

Desfile embora a mísera coorte

De esquálidos fantasmas,

Inda em vida exalando já da morte

Os pútridos miasmas.

Deixa passar o macilento bando

Para dar pasto à vã curiosidade,

E sorrir-se ante o quadro miserando

Dos cortesãos a bárbara vaidade.

De míseros espectros inanidos,

Que parecem dos túmulos surgidos

Quem quer preito e homenagem?

Glória se colhe ao silvo das metralhas,

Por entre o horror de ríspidas batalhas,

Em meio da carnagem!

Vamos além... já o canhão nos chama,

Ó musa, a outros lugares,

Onde a peleja hórrida rebrama...

Vamos além; mas antes de deixares

Estes sítios famosos,

Despeita ainda os ecos, e saúda

De Canavarro os manes gloriosos!

Não, não podes, não deves ficar muda

Ante a sombra do velho lidador,

Guerreiro ilustre das antigas lides,

Cavalheiro sem mancha, e sem pavor!

Suas cinzas venera, e não trepides

Em consagrar-lhe a glória

Entre os heróis mais dignos de memória.

Quem por essas intérminas campanhas

Deste solo de heróis não sabe o nome

E as inclitas façanhas

Do valente, que a terra hoje consome

No túmulo singelo, em que descansa?

Podem mil gerações se suceder,

Esse nome do povo na lembrança

Jamais há de morrer

Nesta terra, em que des da tenra idade

Brandiu a lança em prol da liberdade!

Quem não conhece o forte cavaleiro,

O lidador ousado?

Pelos rincões veloz como o pampeiro

Voar parece num ginete alado!

Mui de longe o gaúcho o reconhece,

E ao tropear do rápido corcel

O inimigo pávido estremece,

E foge de tropel...

Já no declínio dos cansados anos,

Quando a pátria em perigo

Os filhos chama a vindicar os danos,

Com que a ultraja pérfido inimigo,

Ei-lo de novo o campeão valente

Das glórias de outras eras,

Ei-lo o primeiro se apresenta em frente

Contra as hordas selváticas e feras,

Que o pátrio solo amado,

Com roubo, ultraje e morte hão profanado!

Com ardilosa tática prudente

De Estigarríbia a bárbara coorte

De Uruguaiana leva ao matadouro,

Onde o chefe insolente

Já preferindo o cativeiro a morte

A vil espada entrega com desdouro...

Ah! por que sobre a fronte veneranda

Pairar fizeram pérfido baldão,

E torpe aleive de injustica infanda

Teve por galardão

O herói, que os restos da cansada vida

Dava por sua pátria tão querida?!

Mas. . . tu morreste, Canavarro! A história

Que sobre as campas a verdade escreve,

Guardou teu nome; enxovalhar-lhe a glória

Quem mais aí se atreve?

Enquanto nessa altiva e nobre terra

De Osório, dos Menas, e de Andrade,

Terra, que aos centos gera heróis de guerra,

Uma centelha houver de liberdade;

Enquanto do gaúcho sobre a tenda

Férreo pé não calcar o despotismo,

Será sempre teu nome unia legenda

De glória e de heroísmo!

VI

Tuiuti e 24 de Maio

De Tuiuti nas margens paludosas

Já da aliança o pavilhão flutua;

Ante as fortes falanges valorosas

O paraguaio atônito recua,

E tenta com trincheiras, muros, fossos

Opor um dique ao ímpeto dos nossos.

Onde estão eles, onde, esses guerreiros

Que inda há pouco no meio do combate

Se arrojavam quais lobos carniceiros?

Onde os valentes, que ao tremendo embate

De nossas legiões quedos morriam,

E quais duendes mais além surgiam?

Que é deles?... num momento se sumiram

Nas sombras dos escuros matagais,

Quais vampiros da noite, e se esvaíram

Esgueirando por entre os tremedais,

Que não se atrevem mais em campo aberto

Travar combate a peito descoberto

Ante a espada de Osório atropelados

Lá vão correndo a demandar guarida

Por trás de imensos muros artilhados,

Onde esperam não só salvar a vida,

Como também com tredos embaraços

De nós dar cabo, ou nos tolher os passos.

Lá se levanta em triplicada linha

De altas trincheiras muro insuperável,

Bem como longa, monstruosa espinha

De terrível dragão imensurável,

Que em meio da planura alagadiça

O dorso enorme pavoroso erriça.

Quais traiçoeiras serpes enroscadas

Ocultas no capim o bote armando,

Tais por brenhas e brejos abrigadas

A cada canto nos estão mirando

As paraguaias bordas fementidas

Por trás de seus redutos escondidas.

Aqui abre-se um fosso, além um muro

Se ergue altaneiro, além mais outro ainda;

Ali se cava boqueirão escuro,

Além um forte, e em sucessão infinda

Trincheiras, muros, fossos se apresentam,

Que o valor mais constante impacientam.

No meio do intrincado labirinto

De valas, baluartes e muralhas,

Formando em torno tresdobrado cinto

Compacto e urdido de valentes malhas

Como aranha no centro de uma teia

A temerosa Humaitá campeia!

Diante dessa mole poderosa

A hoste da aliança pára e hesita;

Do grande Osório a espada gloriosa

Metida na bainha geme aflita;

Já não lhe é dado mais vencer batalhas,

Mas só romper tranqueiras e muralhas!

Pára e hesita; porém não desalenta

A valente cruzada ante esse dique,

De dia em dia mais e mais se alenta

Para vencer a sanha do cacique,

E a pé quedo em seu posto, firme espera

Que dentro do covil ruia a pantera.

***

Erguei, erguei muralhas e trincheiras,

Cavai bem fundo os fossos,

Noite e dia empregai vossas fileiras

Em construir colossos

Por terra derribai bosques sombrios,

Minai a terra, desviai os rios!

Erguei, erguei muralhas, estacadas,

Merlões edificai.

Vossas tredas planícies alagadas

De valas retalhai,

Levantai ante vós muros titânicos.

Desenvolvei vossos ardis satânicos!

Embalde!... esses horríficos colossos

Por terra tombarão...

E em sua queda vossos próprios ossos

Um dia esmagarão!...

Cairão sobre vós os próprios muros,

Em que campais agora tão seguros!

Sim, muito cedo tombarás em ruínas,

Soberba Jericó;

Não ficará das moles ressupinas

Nem uma pedra só,

Ligeira a hora do castigo avança.

Vão troar as trombetas da vingança.

É Deus, quem guia da cruzada honrosa

Os santos estandartes,

Que através dessa mole temerosa

De horrendos baluartes

Vão em nome do céu, da humanidade

Anunciar-vos paz, e liberdade!

***

Nos muros seus o déspota escondido

Medita ainda um derradeiro esforço

E de tantos reveses, que há sofrido,

Procura enfim tomar cabal desforço.

É ânsia extrema, arranco de agonia,

De quem seu fim não muito longe encara,

É mais um belo glorioso dia,

Que a sorte dos combates nos prepara.

De novo louro em meio das metralhas

Vais ter, Osório, a fronte circundada;

Inda uma vez o anjo das batalhas

Te diz - herói, desembainha a espada!

Apenas suas tendas hão plantado

Em Tuiuti as hostes aliadas,

E em guarnecer o campo abandonado

Se ocupam do inimigo descuidadas,

Eis de improviso lanças mil rutilam

Entre as sombras dos comoros fronteiros,

E sobre o campo rápidas desfilam

Colunas e colunas de guerreiros.

Lá da floresta surge outra floresta

De lanças, de fuzis, de baionetas;

Das brenhas a favor caminha lesta

Sem troar de tambores nem trombetas.

Como caudal torrente represada,

Que os diques colossais enfim rebenta,

E em meio das planícies despenhada

Em borbotões se arroja turbulenta,

Tal de seus baluartes despedida

Vem ruindo a coorte ameaçadora,

E de indomável ímpeto impelida

De chofre sobre nós rugindo estoura!

Troa o clarim, e súbito se estendem

De nossa linha as alas formidáveis,

E em seu posto galhardas se defendem

Sustendo o rijo choque inabaláveis.

De flanco a flanco ateia-se a refrega,

O fuzil e o canhão brama, e troveja;

Em rubros turbilhões arde e fumega

Como um vulcão o campo da peleja!

***

Avante! avante! fogo! - Osório brada

As filas perlustrando;

Na destra lhe reluz a heróica espada

As valerosas legiões guiando,

Como um farol de glória

Lhes apontando a senda da vitória.

Avante! avante! - a valorosa gente

Um passo não recua,

Pois está vendo reluzir-lhe à frente

Do legendário Osório a espada nua,

E a hoste belicosa

De Osório ao grito avança impetuosa.

Bem como em alta e tórrida macega

O incêndio estala e ruge,

Assim por todo o campo arde a refrega,

E rábida restruge;

O ronco do canhão, que ao longe troa,

Nas fundas selvas pavoroso ecoa.

Entre o fumo da ríspida contenda

As lâminas rutilam,

Quais entre nuvens de procela horrenda

Coriscos mil fuzilam;

E da peleja na sangüenta liça

De mais em mais a fúria se encarniça.

Em nuvens de pelouros sibilando

A morte cruza os ares,

E pelo campo a eito vai ceifando

Guerreiros aos milhares

Como virente selva truculenta,

Que tomba ao rijo sopro da tormenta!

Corre o sangue em regatos, que serpeiam

Tingindo o turvo mangue;

Os corcéis ofegantes golpeiam

Em lodaçal de sangue.

Por entre furiosa gritaria

Ouvem-se ais, gemidos de agonia!

De Osório surge no infernal estrondo

A marcial figura,

E nas sombras do báratro hediondo

Um gênio se afigura,

Que rege, ateia e apaga a seu talante

Todo aquele oceano flamejante.

Avante! avante! fogo! - Osório brada

As filas perlustrando;

Retine a lança, a baioneta, a espada,

No prélio fuzilando,

E nas últimas ânsias a peleja

Em mar de fogo furiosa arqueja!

Avante!... porém já desbaratado

Volta a face o inimigo,

E de Rojas no campo entrincheirado

Vai procurar abrigo.

Qual de javardos horda perseguida,

Que se recolhe a toca conhecida,

Quais voam pelo céu despedaçadas,

No fim do temporal,

As nuvens pelo sepro dispersadas

De rijo vendaval,

Tais de tropel buscando os seus merlões

Lá vão fugindo os rotos batalhões.

Foi este um dia de sangrenta glória,

Também de luto e pranto;

Já pelo campo da feliz vitória

Restruge altivo o canto,

E a clangorosa, bélica harmonia

Abafa mil gemidos de agonia!

***

És tu ainda, Osório, que na história

Da brilhante epopéia grandiosa

Burilas com a espada valorosa

A mais brilhante página de glória.

Sim - é o teu montante formidável,

Que inda uma vez esmaga o paraguaio,

E eterniza esta data memorável -

- Vinte e quatro de maio!

Glória ainda uma vez ao nome teu,

Ilustre lidador!...

Nova coroa a fronte te envolveu

De eterno resplandor,

Honra a ti, e a teus bravos companheiros

Glória aos heróicos, imortais guerreiros!...

VII

Porto-Alegre

Já não somente a bala, a lança, o sabre

Em contínuas batalhas carniceiras

De dia em dia imensos claros abre

Das aliadas hostes nas fileiras.

Novo inimigo surde lá do fundo

Dos mangues lodacentos:

Da peste se levanta o monstro imundo,

E das fauces infectas exalando

Miasmas peçonhentos

Vai pelo campo estragos derramando.

No leito inglório exânimes expiram

Aos centos os heróicos lidadores,

Que já em cem combates vencedores

De glória se cobriram,

Des lá de Uruguaiana e Iataí

Té os tredos pauis de Tuiuti.

Calam-se os bronzes ante o mal horrível,

Pende o arcabuz, a espada se embainha,

E dizimado o exército invencível

Em forçada inação jaz e definha,

E fraco mal responde

Aos tiros do inimigo, que se esconde!

Mas já no campo surge radiante

De Porto-Alegre a homérica figura;

Dos heróis entre a plêiade brilhante

Mais um nome fulgura!

Das campinas do Sul é mais um filho,

Que às pátrias armas vem dar novo brilho.

Traz consigo coortes valerosas,

Lidadores novéis,

Pouco afeitos às lides sanginosas,

Mas bravos e fiéis,

Que ansejam pela hora do perigo

E ardem por ver a face do inimigo.

Pesa-lhes n'alma esse silêncio inglório

Dos canhões da aliança.

Aos veteranos do valente Osório

A palma de pujança

A todo transe disputar pretendem,

E em belicosa emulação se acendem!

Quem sopeá-los pode na afouteza

Daquele ardente afogo?...

Querem já receber em luta acesa

O batismo de fogo

Em nobre ardor não menos ansioso

Ofega o peito ao chefe glorioso.

Para Curupaiti! marchemos!...eia! -

O chefe ilustre brada:

- Para Curupaiti! - alto vozeia

A gente alvoroçada,

E como quem se vai para uma festa

Já prazenteira e férvida se apresta.

De escarpada eminência no recosto

Curupaiti lá está,

Qual molosso feroz de guarda posto

À horrenda Humaitá,

Muros, trincheiras, brejos, socavões

Cingem-lhe em torno os negros bastiões.

Para tornar de todo insuperável

O altivo baluarte

Concorreram de modo formidável

A natureza e a arte.

Por toda parte o circunscreve todo

E água, e fosso, e fogo, e mato e lodo.

Do Paraguai as águas dominando

Repousa os pés nas margens;

De cem canhões o fogo despejando

Nas alagadas vargens

Do alto dos terríficos merlões

Fulmina de uma vez cem batalhões.

Que importa! abram-se embora ante seus passos

Flamívomas crateras:

Sobre eles rebentando em estilhaços

Desabem as esferas;

Também os montes, cavem-se os abismos,

Trema a terra em medonhos cataclismos.

Que importa!... que torrente furiosa,

Que desce da montanha,

A brilhante coluna impetuosa

De façanha em façanha

À voz do bravo chefe irá rompendo

Morte ou vitória só por senha tendo!

Em possantes navios conduzida

Pelas águas do undoso Paraguai

De Porto-Alegre a gente destemida

Mil glórias a sonhar subindo vai.

Vai-lhe na frente a esquadra gloriosa,

Que em lenta marcha avança cautelosa.

Sabe do rio o leito estar trancado

De mortais empecilhos e torpedos;

Que do tirano o espírito atilado,

Sempre fecundo de artifícios tredos,

Se não sabe brandir no campo a espada,

Tigre covarde prima na cilada.

Vai subindo a falange valorosa

Mil glórias a sonhar lhe anseia o peito,

Enquanto a armada corta a estrada undosa,

Que se espreguiça no profundo leito.

De olhos fitos no chefe seu querido

Conter não pode o ímpeto insofrido.

Eis lá do seio de bravia brenha

Troa o sinal há tanto suspirado.

Invisível canhão com voz rouquenha

Na funda selva estruge inopinado

Qual ronco de medonha sucuriba

Feroz rugindo pela bronca riba!

Mais um dragão oculto na espelunca

Bramido horrendo espalha pelos ares

Na densa mata alapardado! - Nunca

Ninguém o ouviu, nem viu nesses lugares.

É sempre assim que de guarida oculta

Esse inimigo astuto nos insulta.

De Porto-Alegre sobre a heróica fronte

Resplende calmo um raio de alegria,

Como no tope de elevado monte

A luz se esbate de formoso dia.

Parece ver no céu o anjo da glória

A lhe acenar co'as palmas da vitória.

Dele ao aceno lépidos saltando

Pela deserta, ¨memorosa margem

As galhardas fileiras desdobrando

Os denodados batalhões se espargem.

Um chuveiro de bombas e granadas

Sobre eles tomba em hórridas rajadas!

Mas já se embrenham pela mata adentro

Qual matilha de galgos adestrados;

Vão destemidos procurar o centro

Donde trovejam os canhões irados.

Querem ver o inimigo fronte a fronte,

De tanto estrondo querem ver a fonte.

Por entre as furnas da floresta hirsuta

O combate feroz estoura e ruge,

Qual incêndio voraz. Medonha a luta

Encarniçada e férvida restruge!

Parece temporal que atroa os ares,

Deitando em terra troncos seculares!

De covil em covil escorraçado

O inimigo por fim se vai sumindo

E da rude refrega escarmentado

Pelas brenhas se acoita. Vem caindo

A noite e com seu plácido remanso

À fúria da matança impõe descanso.

VIII

Assalto a Curuzu

E noite. - Pelos céus a lua branca

Esparge saudosíssimos fulgores,

E ao longo da barranca

Murmura o rio lânguidos rumores,

A densa brenha arqueja

Ao branco sopro d'aura, que a bafeja.

Na bronca selva de arcabuz ao lado

Em frio e duro chão dorme o guerreiro,

Outros também no solo ensanguentado

Estão dormindo o sono derradeiro.

Tudo é sombra e mudez

Pela sombria, lôbrega espessura;

Do vento, que murmura

se ouve a voz, e lá de vez em vez

Retroando da brenha entre os algares

O tiro da vedeta acorda os ares.

É noite. A lua vai silenciosa

Pelos celestes páramos boiando;

Qual charpa luminosa

Resplende o largo rio espreguiçando,

E brandamente arqueja

Sobre as areias, que amoroso beija.

Que solidão! que paz do céu descida

Sonhos derrama de saudade e amor,

Pairando sobre a fronte adormecida

Do rude lidador!

Talvez a esta hora uma visão celeste

Vem sorrindo pousar-lhe à cabeceira

Do ingrato leito agreste,

E docemente com a mão fagueira

Da guerra aplaca a voz sanguinolenta,

E entre idéias saudosas o acalenta.

Sim, talvez lhe sorriem nesse instante

Imagens bem-queridas:

A pátria, o lar, a esposa, a doce amante

No troar dos combates esquecidas

Vêm a furto afagá-lo

E com meigas lembranças embalá-lo.

Mas dura pouco a paz, que o céu envia

Sobre a face da terra.

O peito humano estua noite e dia

Entre sonhos de guerra.

Avança! fogo! mata! avança! avança !

Mesmo dormindo o lábio remurmura,

Sede fatal de sangue e de matança

Lhes anuncia a torva catadura.

Mas que sinistro estrondo desusado

Lá vem roncando pela escura brenha?

Que horrendo temporal desatinado

Pela bravia encosta se despenha,

E a faz bramir qual fero leopardo,

A quem cravaram venenoso dardo?

Não é dos bronzes o trovão, que brame

De ocultos bastiões,

Nem de inimigos é feroz enxame,

Que em densos turbilhoes

Despejando mortal fuzilaria

Nas trevas a lutar nos desafia.

Não é também furor dos elementos,

Nem vendaval raivoso,

Que atira em terra os troncos corpulentos,

E em torvelim ruidoso

Galopando com fúria irresistível

As selvas enche de alarido horrível.

Que será?...de vermelha luz tingido

Afogueado o azul do céu resplende;

Vasto clarão nos ares difundido

Por céus e terra súbito se estende;

Do rio a larga veia

De rúbidos reflexos se incendeia;

Pelos grotões do bosque emaranhado

Pavoroso sussurro se propaga,

Como ao longe oceano encapelado

Arrebentando vaga sobre vaga;

Tremenda ventania

A melena dos bosques arripia!

Pelos selvosos antros, que restrugem,

Um mar de fogo em turbilhão rebrama;

As chamas em furor crepitam, rugem,

Nos ares se derrama

De espesso fumo tolda abraseada

Como de bronze abóbada inflamada.

Já da floresta as árvores copadas

De rubras labaredas se coroam;

Mil chispas abrasadas

Turbilhonando pelo espaço voam;

Línguas de fogo pelo ar se estiram,

E em fúria espadanando ao céu se atiram.

Mas do inimigo a ardil imprevidente

Contra si mesmo açula os elementos;

Contra eles soprando de repente

Em nosso auxílio vêm propícios ventos,

E aquele mar de horrendas labaredas

De rijo vento súbito açoitadas

Contra quem o acendeu se voltam tredas,

E sobre eles rugindo encapeladas

De rojo os levam por grotões escuros

A demandar o abrigo de seus muros!

A noite inteira as selvas devorando

Arde e esbraveja o incêndio furioso,

O sinistro clarão reverberando

Por brenhas, céus e águas;

Retroa ao longe o eco pavoroso

Das rugidoras fráguas.

De Porto-Alegre entanto a heróica gente

Junto à barranca o posto firme guarda

E espera impaciente

O primo albor da aurora que não tarda.

Não tarda; - róseos véus já do levante

As orlas purpureiam.

Em breve de uma faixa cambiante

Os horizontes lúcidos se arreiam,

E entre estrondos de bélica harmonia

Refulge enfim o suspirado dia.

Mais longe, além, num claro da floresta

De alto redente lá negreja o vulto,

Que sobre nós grossos canhões assesta

Por entre densas brenhas quase oculto;

Guarda avançada em matagal sombrio

A cavaleiro vigiando o rio.

Curuzu, pantera traiçoeira,

Que na moita emboscada alto rebrama,

E ao longo da ribeira

A morte, o susto, a confusão derrama.

E Curuzu!.... a ela! eia, guerreiros!

Com passo firme, sus!... voai ligeiros!

Mas entre vós e o forte um mar ondeia

De cinza ardente e de abrasados troncos;

O inimigo canhão feroz vozeia

A cada canto pelos sítios broncos:

Crivado o chão de brasas e estilhaços

A cada instante vos suspende os passos!

Que importa!... pelas sendas incendidas,

Através dos escombros fumegantes

Das selvas derruídas,

Entre nuvens de balas sibilantes,

Olhos fechando ao tétrico perigo

Buscais caminho ao antro do inimigo.

Em vão lá das ameias iracundas

Troveja o horrendo forte,

E a toda parte pelas brenhas fundas

Envia horror e morte!

Em vão pelo selvático esconderijo

Do ínvio matagal

Rebenta a cada passo fogo rijo

Qual rude vendaval,

E sem cessar as filas denodadas

Açoita com mortíferas rajadas!

A Curuzu!... avante sempre!...avante!

De Porto-Alegre as válidas falanges

Se arrojam. - Já no prélio delirante

Emudece o fuzil, cruzam-se alfanges,

E em toda a linha, selva movediça

De baionetas súbito se erriça.

Há muito já do forte combalido

Calaram-se os canhões desmantelados;

Da heróica esquadra o fogo bem nutrido

Abafou-lhes na goela a chama e os brados.

Mas entre os grossos rolos de fumaça

Que em torno dele ondeia,

Torva ressumbra ainda a escura massa,

Minaz inda campeia,

Mal extinta cratera

De fumo em borbotões toldando a esfera.

Avante! avante! a hoste destemida

Estragos derramando em toda a parte

Vai bater como a onda enfurecida

Na barbacá do horrendo baluarte,

Às ameias se arroja, e a ferro frio

As portas quebra ao bastião sombrio.

De seus leais, valentes defensores

Nenhum cuida em fugir, nenhum se rende;

Contra a sanha dos fortes agressores

Cada um a pé quedo se defende,

E com torvado gesto sobranceiro

Morre um por um até o derradeiro!

Sublime devoção! alto heroismo!

Coragem digna de melhor destino!...

Não fosse ela estulto fanatismo

Em defesa de um déspota assassino,

Que aos povos seus em sorte

Só sabe dar escravidão ou morte!

Dos hinos da vitória entre os clangores

Desfralda ao vento suas lindas cores

A nacional bandeira,

Com tiros e clamores de alegria

Do rio a esquadra saudações envia

À flâmula altaneira.

Salve, nobre falange denodada,

Que os feitos teus com tanto brilho estreias!

Tua senda de louros vai juncada,

Nada tens que invejar glórias alheias,

E ao lado dos mais bravos veteranos

Podeis agora erguer a fronte ufanos!

Do livre bardo a musa te corteja,

Ilustre e bravo conde,

E aos hinos, com que a glória te festeja,

Alegre corresponde,

E se lhe é dado, teus brilhantes louros

Há de enviar aos séculos vindouros!

Mas que estrela fatal teu passo ousado

Vem suspender na triunfal carreira

Que intrépido encetavas?

E de Curupaiti ante a trincheira

Sem vitória combate ensangüentado

A todo transe travas?

Curupaiti!.. essa fatal lembrança

Deve amargar-te n'alma, ó lidador

Quando teu vôo alçavas com pujança,

Arrancaram-te as asas, ó condor!

Mas nem um raio só se escureceu

Da glória, que circunda o nome teu.

Golpe mortal sobre o colosso ingente

Ias pronto vibrar com mão segura;

Eis que infeliz, fatídico incidente

Turba-te os planos, balda-te a bravura,

E te diz - não irás; - é cedo - Espera,

Que em seu covil se refocile a fera.

Assim das mãos arrancam-te a vitória

Expondo-te à cruel calamidade.

Porém silêncio, ó musa; um dia a história

Dirá toda a verdade...