TRIVIUM ET QUADRIVIUM
(O Brasil de volta à Idade Média)
Alcino Lagares*
Na Idade Média (do Séc. V ao Séc. XV), o “conhecimento” (baseado em dogmas, línguas antigas e literatura clássica) era propriedade da igreja. Ela decidia qual seria a grade curricular e, nesta, quais seriam os conteúdos programáticos acessíveis ao ser humano: “Trivium” (Gramática, Retórica e Lógica) e “Quadrivium” (Aritmética, Geometria, Astronomia e Música).
O ensino passou a ser questionado a partir de descobertas científicas, das revoluções industrial e francesa e da publicação dos livros: “Como Gertrudes instrui seus filhos” de Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), “A psicologia da criança” de Jean William Fritz Piaget (1896-1980) e “A origem das espécies” de Charles Robert Darwin (1809-1882).
A obra pedagógica (“Democracia e educação”) do filósofo norte americano John Dewey (1859-1952) levou o jurista e educador brasileiro, Anísio Spínola Teixeira (1900-1971), autor do livro “Educação não é privilégio”, a propor a substituição da velha escola “com seus problemazinhos de ordem e moralização” por outra que pudesse colocar os brasileiros em níveis intelectuais semelhantes aos encontrados em países evoluídos.
Abraham Maslow (1908-1970) propôs uma divisão hierárquica das necessidades humanas, começando pelas de nível mais baixo: “fisiologia” (respiração, alimentação, sono, etc.), “segurança”, “amor e relacionamentos”, “estima” (e autoestima), culminando com “realização pessoal”, onde se inserem o prazer da leitura e a procura de conhecimento.
Acredito que _ desconsideradas as necessidades básicas de alimentação e procriação que dividimos com os animais _, a educação seja a mais importante das necessidades humanas.
Há algumas décadas no Brasil a educação das crianças era responsabilidade dos pais que mostravam o caminho a ser seguido. À escola competia o ensino formal. As crianças estudavam e faziam autonomamente os “deveres de casa”.
Mas, surgiu a internet. Hoje, os pais transferem a educação para a escola e a escola coloca os pais para fazer “dever de casa” com os filhos! Há fácil divulgação de ideias e preconceitos pelas redes sociais. Pessoas pouco ou nada letradas confundem “conhecimento” sobre política, religião, sexo e gênero com adoção de “ideologias”.
Os livros estão sendo abandonados. As duas maiores livrarias do Brasil (a “Cultura” _ juntamente com a Fnac, cujo controle assumira _ e a “Saraiva”) fizeram pedido de recuperação judicial. Juntas, as duas estariam acumulando dívidas próximas a 1 bilhão de Reais!
No final de novembro de 2018, um grupo minoritário embora expressivo de pais, com apoio da Promotoria de Defesa da Criança e do Adolescente, acionou judicialmente um tradicional e católico colégio de Belo Horizonte, rebelando-se contra plano educacional do mesmo por entenderem que a escola não poderia ministrar “ideologia de gênero”. Esses pais e a Promotoria receberam a repulsa da maioria dos pais e da Promotoria Estadual de Defesa da Educação, por entenderem estes que transmitir conhecimento é missão de toda escola digna deste nome.
Com um projeto de lei denominado “Escola sem Partido”, aqueles velhos “problemazinhos de ordem e moralização” vinham sendo discutidos por uma comissão de nossos “representantes” na Câmara Federal desde julho de 2018. Felizmente ele foi arquivado por falta de quorum, sem parecer, em 11 de dezembro (sendo possível que seus preconceituosos autores o reapresentem na legislatura que se iniciará em fevereiro de 2019).
Os ilustres parlamentares deveriam saber que estudantes _ livres do “Trivium”, do “Quadrivium” e de preconceitos fundamentalistas que predominaram na Idade Média, _ têm direito ao conhecimento que lhes permita raciocínio lógico, juízo crítico e autonomia.
O Brasil é um Estado laico e estamos no Século XXI!
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Coronel QOR e presidente do Conselho Superior da Academia de Letras João Guimarães Rosa da Polícia Militar.
Publicado pelo jornal "O Tempo" em 14/12/2018.