Alcino Lagares Côrtes Costa¹
Desde a Antiguidade as mulheres são discriminadas. Essa discriminação se confunde com a própria invenção da “hierarquia” pelo ser humano: Moisés relata que o Criador fez “machos e fêmeas” de todos os animais, mas apenas o macho da espécie humana. De uma costela dele foi feita a fêmea da espécie, a mulher!
Nas “Tábuas da Lei”, o último versículo assim foi redigido em hebraico: “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o escravo, nem a escrava, nem o boi, nem o jumento, nem coisa alguma do teu próximo.”
Teria Deus ditado tal aberração ou, entre aqueles nômades, a mulher seria uma propriedade e o “teu próximo” um grande proprietário?
Após traduções para o grego (Septuaginta) e deste para o latim (Vulgata), a igreja católica resumiu o versículo, eliminando a grotesca equiparação da mulher aos animais, mas a manteve como propriedade do homem: “Não desejar a mulher do próximo”.
Ampla publicidade é dada sobre um “B.O.” que envolve um famoso jogador de futebol e uma mulher, ambos brasileiros. Pela “notitia criminis”, o jogador a teria estuprado num hotel em Paris, no dia 15 de maio.
Uma vez que ele nega e ela confirma, não sabemos o que aconteceu naquele quarto.
Contudo, muitos brasileiros _ homens e mulheres! _ tendem a condenar a mulher, sob argumento de que ela viajou do Brasil à França e hospedou-se num hotel em Paris para um encontro erótico, com as despesas pagas por ele.
Há pessoas que acreditam ter legitimidade para aplicar sanções sociais (a ironia, o ridículo, a má fama) contra uma mulher, por pior que tenha sido a atitude do homem.
Mas, eis como o mestre Jesus percebia a discriminação da mulher: escribas e fariseus levaram-lhe uma mulher “apanhada em adultério” e lhe disseram:“(...) na lei, manda Moisés que ela seja apedrejada”. Jesus escreveu algo com o dedo na terra e lhes disse: “Aquele que dentre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela”. Vendo o que ele escrevera no chão,² todos os homens largaram as pedras e se foram. Jesus disse à mulher: “Ninguém te condenou? Nem eu também te condeno”.
Quatro séculos antes de Jesus, o filósofo Platão escrevera “O Banquete”, uma instigante obra relacionada a três percepções do amor: “Ágape”, “Filia”, e “Eros”.
Ágape é um amor divino por todos os seres. Filia é um encanto: o sentimento que, partindo de um corpo belo “eleva-se até a beleza em si” e “enche as almas com uma emoção que as perturba”. Eros é a paixão que aproxima os namorados. É desejo!
A partir da compreensão de ter sido a nossa sociedade construída sobre um inventado alicerce de hierarquia (a estúpida discriminação da mulher que vem sendo mantida desde Moisés), proponho que os leitores considerem duas simples possibilidades: teria essa mulher brasileira se iludido, acreditando estar seduzindo o homem que admirava, imaginando-se (Filia e _ por que não? _ Eros) “a namorada” dele? O jogador brasileiro, por ter dinheiro e pagar as despesas, tê-la-ia tratado de um modo que nenhum homem deveria tratar uma mulher?
Independentemente do que tenha ocorrido entre eles, até quando vamos ignorar o ensinamento de Jesus e tratar as mulheres segundo a “Lei de Moisés”?
Eis algo para se pensar.
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¹coronel da reserva e presidente do Conselho Superior da Academia de Letras João Guimarães Rosa da Polícia Militar de Minas Gerais.
E-mail: cellagares@yahoo.com.br
²Pela lei dos judeus, a testemunha de acusação deveria atirar a primeira pedra. Se o testemunho fosse falso, ela também deveria ser apedrejada. É provável que Jesus tenha escrito os nomes dos adúlteros que seguravam pedras.