POR QUE EU POSSO FAZER TUDO QUE CONDENO EM VOCÊ?
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.” (Nelson Mandela)
Prezado senhor Mário Lúcio Duarte Costa (Aranha),
A escravidão _ o homem como propriedade _ existiu em quase todo o mundo conhecido desde a Antiguidade: por volta do ano 2.000 a.C., os sumérios já escravizavam prisioneiros de guerra, e havia escravidão no Egito, na Grécia, em Roma, na Índia, e na China. Durante a Modernidade (Do Séc. XV ao Séc. XVIII), predominou a escravidão de negros, alcançando seu apogeu no século XVIII, a qual somente terminou na Idade Pós-Moderna (Do Séc. XVIII ao Séc. XX), quando o Brasil _ último país do mundo que a mantinha _ aboliu-a pela lei de 1888!
Tenho o dobro da sua idade. Sou branco. Já vi (poucas vezes) manifestações verbais de discriminação racial. Nunca pude concordar com pensamentos racistas.
1) “Racismo” é um crime previsto no artigo 20 na Lei nº 7.716/89:
“Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa.”
2) “Injúria” é crime tipificado no Código Penal:
“Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.”
Quando alguém chama o outro de “ladrão” (por exemplo) comete um crime. Nos estádios, praticamente em todas as partidas de futebol, o juiz recebe tais injúrias. Porém, nunca ouvi que algum juiz tivesse escrito numa súmula ter sido chamado de “ladrão” pela torcida “A” ou pela torcida “B”. Nunca vi um torcedor ser preso _ nem mesmo simplesmente colocado para fora do estádio _ por chamar o juiz de “ladrão”, ou a um goleiro de “frangueiro”... Mas, diante da letra fria da lei, isso é crime.
3) “Injúria de conteúdo racial” é o crime de injúria com agravante:
“Art. 140 § 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Pena - reclusão de um a três anos e multa.”
Moro em Belo Horizonte. Conheço você pela TV. Vi imagens de cenas ocorridas durante aquele jogo entre “Grêmio” e “Santos”, nas quais uma jovem torcedora “gremista” foi escolhida (entre várias pessoas, brancas e negras, que diziam impropérios contra você) pelas câmeras de televisão porque o ofendia, chamando-o de “macaco”. Embora existam macacos de várias cores (o Uacari-branco, por exemplo, tem pelagem clara, variando entre as cores amarela e laranja), ficava evidente que ela fazia alusão comparativa entre um símio de pelo escuro e a cor da sua pele. Então, você _ e só você _ estava sendo injuriado.
Desencadearam-se em todo o País manifestações pela imprensa e pela internet (esta, possivelmente em todo o planeta) mais contra aquela senhorita do que contra as atitudes dela.
Embora seja esta uma justa manifestação da indignação nacional (principalmente porque a imprensa passou a dar destaque ao fato e à escolhida infratora), excessos foram e estão sendo cometidos: houve covarde apedrejamento da casa onde ela morava (talvez até alguns dos autores do apedrejamento tivessem estado igualmente se vociferando no estádio contra você) e, segundo noticiário jornalístico, iniciaram-se ameaças contra ela e contra familiares dela. Ela teria até saído da cidade para esconder-se. Mas, ir para onde se, pela imprensa e pela internet, em todos os lugares “todo mundo” a viu e “todo mundo” está sendo colocado contra ela?
Pessoas às vezes exageram.
Passaram-se 126 anos desde o término no Brasil daquela vergonhosa forma de estratificação social, a escravidão. Não vive mais nenhum remanescente _ nem branco, nem negro _ daquele período. Portanto, ninguém neste país pode “lembrar-se” da escravidão. Mas, histórias e “estórias” são contadas de uma geração para outra e pessoas frequentemente fazem coisas por terem aprendido que “é assim que se faz”.
Mas, pelo que li aquela moça nunca fora racista. Pelo contrário, teria amigos brancos, negros, amarelos, etc. Pelo que parece, ela “empolgou-se” num esforço tolo _ e reprovável, é claro! _ de desestabilizar o goleiro do time adversário (no caso, você que fechava o gol) uma vez que o time dela estava sendo derrotado e ela o fez utilizando-se de ofensas verbais.
Conforme expus acima, o “racismo” (que discrimina uma raça inteira) e “injúria de conteúdo racial” (que ofende um indivíduo, no caso você) são figuras diferentes na lei.
Neste planeta azul e branco não se diz claramente, mas se pensa assim: “_ Eu posso fazer tudo que condeno em você”. Por isso, pessoas que “condenam” a moça pela injúria praticada estão fazendo a mesma coisa contra ela... e com maior gravidade! São hipócritas!
Essa moça está sendo muito castigada!
A situação pela qual ela está passando, certamente, é bem pior do que qualquer punição que a lei possa lhe impor. Em face dessa sanção social, a sanção jurídica torna-se até desnecessária (mas, isso é assunto da justiça criminal e devemos entregar a decisão à prudência dos magistrados). Ela está também correndo grave risco quanto à própria integridade física (e isso é assunto seu).
Mário Lúcio, desta vez é necessário fazer uma coisa diferente: É preciso mostrar que não temos de continuar fazendo coisas só porque tínhamos aprendido que “é assim que se faz”. Chega de “meninas não sobem em árvores”, chega de “homens não choram”. Peixes não precisam ter vergonha de nadar. Pássaros não precisam ter vergonha de voar. Seres humanos não precisam sentir vergonha porque se emocionam... e perdoam.
Talvez seja esta a melhor oportunidade em sua vida de acabar com o sofrimento de outro ser humano, e talvez só você possa fazer este gesto de grandeza: Que tal você ir até lá _ onde ela estiver _ e salvar essa menina?
Quem sabe, se você abraçá-la publicamente, e mostrar ao mundo que ela errou, mas está perdoada, as pessoas comecem a perceber que brancos e negros são igualmente humanos e podem construir, juntos, uma sociedade mais justa?
Atenciosamente,
Alcino Lagares*
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* Coronel da reserva e presidente do Conselho Superior da Academia de Letras "João Guimarães Rosa" da Polícia Militar de Minas Gerais. Contatos: cellagares@yahoo.com.br