GREVE E POLÍCIA MILITAR
Alcino Lagares Côrtes Costa*
SÓCRATES: _ Então, temos agora uma ideia clara das características físicas que devem possuir os guardiães?
GLAUCON: _ Sim, temos.
SÓCRATES: _ E quanto às suas qualidades mentais, sabemos que deverão ser vigorosas.
GLAUCON: _ Certamente.
SÓCRATES: _ Mas, sendo tal sua natureza, como será possível impedir que se comportem de maneira selvagem uns para com os outros e em face dos demais homens da cidade?
GLAUCON: _ Por Zeus! Não será fácil.
SÓCRATES: _ Ainda assim, precisamos fazê-los brandos no trato dos companheiros e ferozes ante o inimigo. Se não conseguirmos isso, não será necessário que o inimigo destrua a cidade porque eles próprios o farão!
(Platão, a República, Livro II)
Ingressei na Polícia Militar de Minas Gerais há 53 anos. Ao fazê-lo, prestei o juramento de defender a pátria e proteger a vida, a liberdade e a propriedade dos cidadãos, se necessário “com o sacrifício da própria vida”. Ao fazê-lo, eu tinha consciência de que, para que existisse “segurança pública”, eu deveria defender a democracia (sem poder usufruir plenamente dela, enquanto estivesse na "ativa”) e aceitar, sem discussão, as bases institucionais de “hierarquia e disciplina”.
Nos dias presentes, as agradáveis informações capixabas (sobre os encantos naturais de seu litoral, a beleza de suas cidades e a harmonia de seu povo) foram substituídas pelo noticiário da violência urbana, do vandalismo, dos saques a lojas e supermercados, de mais de uma centena de assassinatos e do medo.
Qual é a razão? Afrontando a lei, milhares de policiais militares não estão nas ruas: estão fazendo greve!
Embora pela norma cogente não possa haver greve de policiais militares, existem respeitáveis defensores de tal “direito”: o Jornal “Hoje em Dia” publicou artigo no dia 16 de Fevereiro considerando esta uma “proibição arcaica e superada”.
Com o advento do “estado moderno”, segundo Thomas Hobbes (1588-1679), para garantia da segurança de todos, pactuou-se o “uso da força como domínio exclusivo do Estado”.
Porém, adverte Hobbes, o arcabouço jurídico não é, por si só, suficiente para que o Estado ofereça tal garantia: "Sem a espada, os pactos não passam de palavras, as quais não dão a mínima segurança a ninguém".
Também para Max Weber (1864-1920), referindo-se ao “poder de coerção do indivíduo pelo Estado” para que o pacto social seja mantido, o Estado é uma comunidade humana, à qual se atribui o “monopólio legítimo da violência física” nos limites de certo território.
É da força deste todo poderoso Estado que dependem a segurança, a ordem pública e a paz entre os homens.
Em 1901, Edward Alswhorth Ross (1866-1961) publicou o livro “Social Control, a survey of the foundations of order” (“Controle Social, um estudo sobre as bases da ordem”), através do qual tornou-se formalmente o introdutor, em Sociologia, do conceito de “Controle Social”, este com tríplice função: “conquista e manutenção da ordem social”; “eficiência social”; e “proteção social”.
Para que haja “proteção social”, torna-se necessária clara definição dos “papéis sociais” e dos respectivos “atores”; logo, estabelecendo:
1) “valores”: o quê se garante;
2) “autores” da garantia: quem garante;
3) “ameaças”: contra quem ou contra o quê se garante;
4) “meios” de garantia: com o quê se garante.
O Estado é, por definição, “uma entidade soberana, instituída através de um governo, que exerce o poder político em um território”.
O exercício do poder político se faz com fundamento na ordem jurídica, a qual insere, no ápice de uma “pirâmide de leis”, a Constituição, a qual não pode ser ferida por uma lei ordinária, assim como um decreto regulamentar não pode dispor contrariamente à lei que ele próprio estiver regulamentando.
Na Constituição Federal, o artigo 9.º assegura o direito de greve aos trabalhadores e o artigo 37 (em seu inciso VI) estende ao “servidor público civil” o direito à livre associação sindical; no entanto, “ao militar” são proibidas a sindicalização e a greve (inciso IV do artigo 142); e o artigo 144 atribui às polícias militares a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (§ 5º), considerando-as forças auxiliares e reserva do Exército (§6º).
Mas, mesmo para algumas categorias de “trabalhadores civis” existem restrições ao direito de greve. Exemplifico com os “controladores de tráfego aéreo”, cuja paralisação colocaria em perigo a sobrevivência das pessoas que se encontrassem viajando de avião. Tais profissionais ficam, pela Lei 7.783/89, obrigados a garantir, mesmo durante greve, a prestação desse serviço indispensável.
O primeiro dos deveres do Estado é prover a segurança de seu povo e, para tal, cabe a ele o “monopólio do uso da força”.
Por se tratar de um “monopólio”, não pode o povo exercê-lo, nem pode o Estado omiti-lo. Portanto, não existe direito à greve para policiais militares!
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*Coronel da reserva e Presidente do Conselho Superior da Academia de Letras João Guimarães Rosa da Polícia Militar de Minas Gerais