QUIS CUSTODIET IPSOS CUSTODES?
Alcino Lagares*
“SÓCRATES: _ Sendo vigorosa a natureza dos guardiães, como será possível impedir que se comportem de maneira selvagem uns para com os outros e em face dos demais homens da cidade?
GLAUCON: _ Por Zeus! Não será fácil.
SÓCRATES: _ Ainda assim, precisamos fazê-los brandos no trato dos companheiros e ferozes ante o inimigo. Se não conseguirmos isso, não será necessário que o inimigo destrua a cidade porque eles próprios o farão!” (Platão, a República, Livro II)
O nosso Ministro da Justiça, Sérgio Moro, apresentou um projeto para mudanças na lei, ao qual chamou “anticrime”. Vou ater-me apenas às mudanças sugeridas no Código Penal.
A “exclusão da ilicitude” é tratada nos seguintes termos: “Art. 23. - Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Excesso punível: Parágrafo único. O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.” (grifei)
Propõe o ministro acrescentar-lhe um segundo parágrafo: “§ 2º O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção." (grifei).
Quanto à “legítima defesa” os termos vigentes são: “Art. 25. - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.” (grifei)
Pela proposta do ministro, deve-se acrescentar um parágrafo: “Parágrafo único. Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa: I - o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e II - o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes." (grifei)
Numa carreira de 30 anos na Polícia Militar de Minas Gerais, eu e meus comandados nos mantivemos nos limites da lei, acreditando ser esta suficiente e necessária para o nosso trabalho de proteger e socorrer o povo.
Há poucos dias, no Rio de Janeiro, o pacífico deslocamento de cinco pessoas de uma família (entre essas uma criança de 7 anos) foi brutalmente interrompido, quando pelo menos 80 tiros de fuzis atingiram o veículo que ocupavam. Diante da criança, o pai, Evaldo Rosa dos Santos, um músico, morreu. Os disparos foram efetuados por 9 militares do Exército, comandados por um tenente, sob alegações de “um equívoco”, acreditando que fosse um carro conduzindo criminosos.
A primeira questão que mereceria uma resposta do ministro Sérgio Moro é: teriam os agentes sentido “medo, surpresa, ou violenta emoção” merecendo amparo em seu projeto? A segunda, também relacionada com o projeto, remete-nos a uma preocupação já existente na Roma antiga do satírico Decimus Iunius Iuvenalis: senhor ministro, se seu projeto for aprovado, quem vai nos guardar dos guardiães? (“quis custodiet ipsos custodes?”).
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*coronel da reserva e presidente do Conselho Superior da Academia de Letras João Guimarães Rosa da Polícia Militar de Minas Gerais. E-mail: cellagares@yahoo.com.br
Publicado no jornal "O Tempo" (com o título "Pergunta para Moro") em 16/04/2019.