Alcino Lagares*
AMPLIUS JUVAT VIRTUS, QUAM MULTITUDO
A equivocada divulgação feita, em 27 de março de 2014, pelo IPEA (um órgão oficial da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República), de um relatório de pesquisa intitulado “A tolerância social à violência contra as mulheres” causou espanto, indignação, e medo na população brasileira, e está associando na opinião pública mundial, via imprensa internacional, os homens brasileiros, no mínimo, a um bando de estupradores potenciais.
No último fim de semana, vários veículos de informação europeus (a exemplo do jornal “Libération” e da revista “Le Point” franceses) deram destaque às surpreendentes afirmações de que “65,1% dos entrevistados pensam que uma mulher usando roupas provocantes merece ser estuprada”, e que “58,5% declararam que, se as mulheres se comportassem melhor, haveria menos estupros.”
O IPEA (talvez por ter-se metido num objeto de pesquisa diverso de sua vocação natural, já que a sigla significa “Instituto de pesquisa econômica aplicada”) cometeu, no mínimo, dois erros gravíssimos:
(1) Elaborou um questionário com indagações imprecisas, duvidosas, e de natureza subjetiva com “questões fechadas”. Pior, apresentou-o a 41,5% dos entrevistados que têm “menos que o ensino fundamental”; logo, indivíduos que teriam evidente dificuldade de perceber o sentido dos aspectos subjetivos propostos.
Exemplifico:
No gráfico 25: “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros?”
O genial Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936) tornou-se famoso pela descoberta do “Reflexo Condicionado” que lhe valeu o prêmio Nobel em 1904, e constitui a base para entendimento e aplicação do “condicionamento clássico”.
No entanto talvez mais importante do que a apresentação da descoberta do reflexo condicionado ao mundo, tenha sido o enunciado que ele apresentou a respeito de dois “sistemas de sinais” _ embora poucas pessoas tenham dado atenção a este segundo fato _: o “primeiro sistema de sinais” refere-se à realidade objetiva e nos é dado pelos sentidos (e este sistema nós compartilhamos com os animais, eis que temos um corpo).
Os animais vivem em função dos sinais da realidade: veem, ouvem, sentem o cheiro, etc. Mas, para os seres humanos, existe o simbolismo.
No universo simbólico, as palavras extrapolam os sons (o primeiro sistema de sinais), adquirem um significado, e tornam-se parte essencial do “segundo sistema de sinais”.
As palavras são, consequentemente, “sinais de sinais” e dão sentido à realidade reconstruída em nossas mentes, possibilitam formular conceitos, juízos, e raciocínios, e caracterizam a condição superior do ser humano em relação às demais espécies vivas da Terra.
Em meu consultório, com alguma frequência, pessoas comparecem vivenciando problemas, dos quais muitos têm origem no modo errado como fazem as perguntas. Esta questão do IPEA é uma típica pergunta que induz ao erro: “Se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros?”
a) O primeiro pressuposto induzido em nossa mente com tal pergunta é: “as mulheres não sabem se comportar”;
b) O segundo pressuposto induzido pela pergunta é: “há mais estupros porque elas não sabem se comportar”;
c) Aí vem o início da questão que, pela lógica induzida, conduz a resposta: “se as mulheres soubessem se comportar...”
Admirável mesmo era o filósofo Sócrates _ imortalizado na obra de Platão _ que sabia fazer perguntas. Seria bom se os pesquisadores do IPEA estudassem um pouco da maiêutica socrática.
(2) A análise dos dados coletados é desvirtuada e contraditória: apenas 33,5% dos entrevistados era do sexo masculino. Não é possível, portanto, inferir que 65,1% _ nem de homens, muito menos das próprias mulheres _ pensem que uma mulher “mereça” ser estuprada!
Aliás, a pergunta feita não o foi nestes termos e sim (No gráfico 24):
“Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas?”
Não pretendo fazer qualquer crítica à amostra utilizada em seu aspecto quantitativo, uma vez que, para adoção dos modelos reduzidos, foi utilizado o critério de informação bayesiano, BIC, e ela poderia ser significativa (3810 indivíduos, num universo de 200.000.000); porém, deixa muito a desejar no aspecto qualitativo, o que a impede de ser representativa. O relatório em si é, consequentemente, falho.
“Instinto” é o nome que se dá a um “impulso” espontâneo, automático, com origem biológica, e independente de aprendizado, cuja eficácia consiste em desencadear ações involuntárias nos animais, objetivando sua sobrevivência, conservação, e reprodução.
O ser humano (por possuir um corpo animal, portanto uma base hilética) caracteriza-se pela presença de três instintos básicos: Sobrevivência, Conservação, e Reprodução. Tais ações independentes são “reflexos incondicionados”, ou inatos, e são semelhantes em todos os indivíduos da espécie.
Essas funções e ações autodefensivas precedem a tomada de sua consciência pelo nosso psiquismo.
Somos seres naturais (já que temos um corpo); consequentemente, a própria natureza impõe-nos um imperativo biológico essencial _ a reprodução _, e tal imperativo pressupõe comportamentos específicos de cada gênero, a fim de que haja acasalamento e descendência.
Mas, temos também uma mente (portanto uma base noética), a qual faz de nós seres sociais (move-nos a razão).
Em seu estado natural, a mulher precisa ser desejada, e o homem precisa desejá-la. Na sociedade humana (um sistema, no qual cada indivíduo interpreta “papéis sociais”), no século XXI, especialmente no Brasil, os homens não se realizam pela violência contra a mulher. Pelo contrário, orgulham-se de sua capacidade de conquista, de sedução, e de construir com a sua parceira “um encanto” que legitima o sexo.
Viktor Emil Frankl (1905-1997), autor da terceira linha vienense de psicoterapia (Análise Existencial e Logoterapia), acrescentou um “inconsciente espiritual” ao “inconsciente instintivo” _ a “vontade de prazer”_ de Sigmund Freud (1856-1939); e, às teorias do psicólogo austríaco Alfred Adler (1870-1937) referentes à “vontade de poder” _ já defendidas filosoficamente por Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900)_, acrescentou a “vontade de sentido”.
Todos nós, brasileiros, homens e mulheres, nascemos de uma mulher, para sermos conscientes, livres, e responsáveis.
As mulheres são e devem ser lindas, e atraentes, e devem ter sua vontade e liberdade respeitadas, mesmo quando, às vezes, nos sentimos um pouco “inseguros”, como nos versos que conheci na infância (a qual vai longe, nestes 66 anos):
“Deus quando fez a mulher
De entusiasmo vibrou
Mas disse um anjo qualquer
Nosso sossego acabou”
O relatório apresentado pelo IPEA, por suas falhas técnicas _ e por sua precipitada e desastrosa apresentação ao povo brasileiro _ deve ser ignorado.
Que se apresente para uma pesquisa séria e responsável _ se tal tema for considerado necessário _ um instituto especializado em humanidades.
Afinal, “Amplius juvat virtus, quam multitudo” (Mais vale a qualidade que a quantidade).
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* Coronel da reserva e presidente do Conselho Superior da Academia de Letras "João Guimarães Rosa" da Polícia Militar de Minas Gerais.
Contatos: cellagares@yahoo.com.br