“Na minha opinião, enganam-se os que distinguem a intolerância civil da intolerância teológica. Essas duas intolerâncias são inseparáveis.” (Jean Jacques Rousseau,1712-1778)
Com a expressão “cultura do estupro” quero significar toda e qualquer relativização da violência sexual contra a mulher.
O homem que interpretar tal violência como comportamento “normal” ou “natural” _ não importa em que tempo, lugar ou contexto o faça ou o tenha feito, seja atuando politicamente no “processo legislativo” na Câmara dos Deputados, seja no exercício sacerdotal de uma “ordem religiosa” numa igreja _ é e será tido por mim em conta de um rematado canalha.
Desde a Antiguidade as mulheres são discriminadas.
Trata-se da “invenção” de uma hierarquia entre homens e mulheres que ocorreu em algum momento do processo evolutivo que se seguiu à “Revolução Agrícola” (iniciada por algumas tribos de Sapiens, entre 8 e 14 mil anos atrás) e foi formalmente justificada no “Velho Testamento” (um texto bíblico de duvidável autoria, porém atribuído a “Moisés”, um certo escritor israelita/egípcio que teria vivido entre os séculos XIII e XII a.C.) e permanece influenciando bilhões de judeus, cristãos e muçulmanos que estão espalhados pela terra e interpretam literalmente as metáforas e fantasias ali narradas.
“Moisés” relata que o Criador fez os machos e as fêmeas de todos os animais, mas apenas “o macho” da espécie humana, Adão. De uma costela dele foi feita a fêmea da espécie, a mulher, Eva!
No “Deuteronômio” (um dos 5 livros atribuídos a “Moisés” que compõem o texto veterotestamentário) o seguinte “mandamento” assim foi redigido: “Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o escravo, nem a escrava, nem o boi, nem o jumento, nem coisa alguma do teu próximo.”
Entre aqueles nômades misóginos, portanto, a mulher, o boi e o jumento deveriam ser propriedades e o “teu próximo” um grande proprietário!
Após traduções para o grego (Septuaginta) e deste para o latim (Vulgata), a igreja católica resumiu o versículo, eliminando a grotesca equiparação da mulher aos animais, mas a manteve como “propriedade” do homem, no “nono mandamento”: “Não desejar a mulher do próximo”.
O Código Penal do Império (1830) punia o crime de “estupro”, desde que a vítima fosse “virgem, honesta ou menor de 17 anos”.
Em 7 de dezembro de 1940, o Decreto-Lei 2848 (tempo do Governo de Getúlio Vargas), manteve o crime de “estupro”, mas incluiu a “extinção da punibilidade” no inciso VIII do artigo 108, “pelo casamento do agente com a ofendida”; ou seja, se a menina recebesse “a honraria” de passar o resto da sua vida, servindo ao estuprador.
Quando o mestre Jesus habitava entre nós, mostrou-se contra a discriminação da mulher. Escribas e fariseus levaram-lhe uma mulher “apanhada em adultério” e lhe disseram:
“(...) na lei, manda Moisés que ela seja apedrejada”. Jesus lhes disse: “Aquele que dentre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela”.
Vendo o que ele escrevera no chão,2 todos os homens largaram as pedras e se foram. Jesus disse à mulher: “Ninguém te condenou? Nem eu também te condeno”.
Pela Constituição Federal, a República Federativa do Brasil tem a dignidade da pessoa humana como fundamento (inciso III do art 1.º).
Ah! Mas, eu ia me esquecendo que, para certos “religiosos”, a mulher não é “pessoa humana”; pois, na noite de 12 de junho de 2024, a Câmara dos Deputados aprovou um “pedido de urgência” para ser “votado diretamente pelo plenário” o “PL 1.904/2024”, visando punir, com até 20 anos de prisão, a menina que for vítima de estupro e ficar grávida, se ela ousar interromper a gravidez!
Até quando (nesta sociedade que foi construída sobre um inventado alicerce misógino) vamos ignorar o ensinamento de Jesus e tratar as mulheres segundo a “Lei de Moisés”? Eis algo para se pensar.
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1- coronel QOR e conselheiro da Academia de Letras dos Militares Mineiros Capitão-Médico João Guimarães Rosa. E-mail: cellagares@yahoo.com.br
2- No chão, Jesus escreveu os nomes dos homens adúlteros que seguravam as pedras, porque, pela lei dos judeus, a testemunha de acusação deveria atirar a primeira pedra; mas, se a testemunha tivesse igual “pecado”, também deveria ser apedrejada.
Artigo publicado no Jornal "O Tempo" em 20/06/2024.