RESUMO
Após a ocorrência de momentos de terror numa escola _ sejam provocados por algum dos alunos, seja por um invasor _, além de espanto, luto e tristeza, o medo passa a fazer parte do cotidiano de mães e pais. A principal pergunta que fazem é: “como evitar tragédias dessa natureza na escola onde temos de deixar nossos filhos”?
Neste artigo, para garantia de direitos fundamentais da pessoa humana e para que a escola seja um espaço seguro e de respeitável convivência democrática, pretende-se explicar, sob os enfoques psicobiológico e sociológico, o modo como se estabelecem os “papéis sociais” que unem _ num espaço compartilhado _ os agressores e a “necessária vítima”.
Pretende-se também evidenciar ser possível, nos lares e nas escolas, com apoio de profissionais de segurança pública preparados para lidar com jovens estudantes em situação de vulnerabilidade social, interferir nesse “espaço”, a partir de “políticas públicas” que poderão evitar consequências de uma “socialização malsucedida” e ensejar saudáveis processos de interação social característicos do ser humano.
Palavras-chave: Ansiedade. Bullying. Caminhos neurais. Medo. Papéis sociais. Policiamento Comunitário. Preconceito. Raiva. Reflexos inatos. Uso Adequado da Força.
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1- Graduado em Educação Física pela Escola de Educação Física do Exército (EsEFEx), graduado e pós-graduado em Segurança Pública (pelas APM/PMMG e ESPM/PMERJ) e em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), terapeuta (diretor do Instituto Mineiro de Hipnoterapia), sensei de Aikido (5.º Dan), coronel QOR e conselheiro da Academia de Letras dos Militares Mineiros (Capitão-Médico João Guimarães Rosa). E-mail: cellagares@yahoo.com.br
1. INTRODUÇÃO
A violência e os preconceitos em escolas preocupam os parlamentares que compõem o colegiado do “Centro de Estudos e Debates Estratégicos” da Câmara dos Deputados e esses procuram reunir informações que contribuam para compreender:
(1) Quais são os fatores geradores de preconceitos e de violência na escola?
(2) Por que tais violências ocorrem em alguns lugares do mundo e noutros não?
(3) Sendo a violência uma consequência, o que fazer, em termos de políticas públicas, para evitar a sua necessária causa?
(4) Estariam os Policiais Militares e Guardas Municipais que atuam nas escolas sendo preparados para lidar, em situações estressantes, com jovens estudantes em situação de vulnerabilidade social?
Acredito na humanidade em si; logo, no processo civilizatório que faz prevalecer o simbolismo altruístico sobre instintos egoísticos. Gosto de pensar, portanto, que sou um idealista.
Embora os ideais sejam utopias, porque representam o que os homens buscam e jamais o que possuem, são eles que nos permitem extrapolar do “como” a sociedade “está” para aquilo que ela deveria ser e perguntar: “Por que não?!”
Em várias línguas, não há um verbo para expressar "ser" e outro para "estar". Representam as duas ideias: em alemão, o verbo “sein”; no francês, o verbo “être”; e, no inglês, o verbo “to be”. Mas, para todo mundo que se comunica em português, existe uma grande diferença entre ser e estar.
E, porque aqui se fala em português, podemos afirmar que o Brasil NÃO É um país violento; apenas ESTÁ violento!
Dizem-nos os astrofísicos e astrônomos que a nossa galáxia (a “Via Láctea”) tem entre 100 e 400 bilhões de estrelas (ou sóis), cada uma dessas podendo ter um sistema planetário à sua volta, e que podem ser milhões as galáxias no universo! Como saber isso?
Peço a você que me lê que se imagine, numa viagem extraordinária pelo cosmos, chegando à nossa Galáxia, a Via Láctea.
Você percorreu espaços imensos numa nave, com tecnologia necessária para observar estrelas e planetas e, especialmente, para detectar vida; mas, nada encontrou além da solidão de mundos vazios.
Entediado, você está prestes a se retirar e voltar para casa, quando percebe um pequeno planeta azul e branco, pujante de vida.
Aproxima-se dele e, nesse momento, acorda. Era tudo um sonho!
Mas, ao despertar, percebe que o planeta ao qual chegara, no sonho, é exatamente onde já se encontra: a Terra, um lugar lindo, maravilhosamente cheio de vida e de inteligência!
Ao tomar o café da manhã, aquelas imagens ainda se encontram em sua cabeça e você se esforça para compreender as razões pelas quais teria tido tal sonho... qual seria o seu significado (se é que existe um significado)?
Ao ler, porém, as principais manchetes dos jornais do dia, seus pensamentos remetem-se à triste constatação de realidades contraditórias com tais maravilhas: armas, guerras, violência urbana, terror em escolas...
É, realmente, lastimável que o único ser que se diz “inteligente” neste lugar maravilhoso, seja o responsável por acontecimentos tão trágicos!
Precisamos, então, refletir sobre quais perguntas devemos fazer e quais as respostas que deveremos dar como contribuição para a humanidade nesta real e única viagem que fazemos neste planetinha azul e branco.
Dentre as perguntas que podem frequentar as nossas mentes em momentos assim singulares, quero destacar duas, relacionadas diretamente à violência e aos preconceitos na escola:
(1) haverá um dia _ consequente de um processo civilizatório cada vez mais humanista _, em que os seres humanos se reconhecerão como irmãos e as crianças não precisarão ter medo das outras crianças nem de adultos ou, contrariamente, sobreviverá para sempre o medo que a humanidade tem de si própria?
(2) Podemos substituir o atual estágio de violência pela harmonia ou devemos aceitar que as coisas permaneçam tais como as encontramos?
2. PROCURANDO COMPREENDER O ESPAÇO ONDE SE UNEM OS AGRESSORES E A VÍTIMA
2.1 Socialização malsucedida
Especialmente a partir da metade do século XX, a humanidade eliminou alguns dos medos que tinha graças aos avanços (do conhecimento e da consequente tecnologia) que possibilitaram, se não evitar totalmente, pelo menos reduzir danos de perigos naturais (terremotos, vulcões, Tsunamis, etc.).
Mas, há um medo que a humanidade tem (desde sempre) e não conseguiu reduzir: medo de si própria!
A teoria de “Psicologia individual” de Alfred Adler (1870-1937) _ coerente com a “vontade de poder” enunciada filosoficamente por Friedrich W. Nietzsche (1844-1900) _ explica que, ao se perceber “inferior” numa relação, a pessoa sente necessidade de buscar por “superioridade”.
A existência do ser humano não se explica em termos de processos biológicos. Apenas o indivíduo solitário encontra-se no nível animal. Nosso período fetal estende-se por um ano após o nascimento e nosso organismo ainda está se desenvolvendo quando já nos encontramos em relação com uma ordem social.
INSTINTOS EMOÇÕES BÁSICAS
(1) SOBREVIVÊNCIA................................................................MEDO
(2) CONSERVAÇÃO..................................................................RAIVA
(REFLEXO DE AUTOAFIRMAÇÃO) (VONTADE DE PODER)
Assim como o Medo é a emoção principal relacionada ao “instinto de sobrevivência”, a Raiva a é em relação ao instinto de “conservação, ou expansão do ser” que contém o reflexo inato de “autoafirmação” (que nos leva a buscar aprovação e reconhecimento e temer a ironia, o ridículo e a má-fama).
É o “reflexo inato de autoafirmação” que potencializa um ambiente de “prazer e de poder” que a crueldade e a violência (verbal ou física) proporcionam e, inicialmente, unem o “agressor” _ uma pessoa que tem “necessidade” de se sentir “valorizada” no grupo _, aos colegas que assistem as agressões e delas participam (passiva ou ativamente), movidos por análoga “necessidade” de “serem reconhecidos” por seus pares.
O fenômeno é perceptível também em episódios de “linchamentos”, nos quais pessoas que não têm nenhum vínculo com o “fato causal” (e até o desconhecem) se somam animalescamente aos agressores.
Esse ambiente de “prazer e poder” necessariamente inclui a presença de uma “impotente vítima” que sente raiva e é dominada pelo medo.
Embora tendo consciência de si como pensamento, o ser humano tem um corpo e convive com instintos egoístas.
Nosso cérebro recebe sinais pelos pensamentos e pelos sentidos (exteroceptores, proprioceptores e interoceptores) e faz com que nossa mente atribua um significado a um dado fenômeno (um ser ontológico, exterior às nossas mentes, que adquire “legitimidade existencial” após a nossa experiência sensorial), ou a um noúmeno (um produto de origem noológica (mental ou espiritual), de existência independente de nossa experiência sensível). Tais sinais podem se apresentar através de uma das três fontes: sentidos (sensação, percepção), memória (evocação, lembrança) ou fantasia (imaginação, criação).
Consequentemente, um fenômeno e (ou) um noúmeno somente passam a existir para nós no momento em que os percebemos, os lembramos, ou os fantasiamos.
A este processo mental de construir (ou de reconstruir) internamente a coisa existente denominamos “Representação”. Por este raciocínio, podemos inferir que toda existência seja o produto da Representação.
“A sociedade é um sistema de papéis: papéis sociais” (Costa, 2003, pág.85).2
Mas, o processo de “socialização” pode ser malsucedido: uma pessoa (criança ou adolescente) que, em razão de sua aparência física por exemplo, é considerada objeto de atos de violência física ou psicológica por colegas na escola, fica sem “defesa subjetiva”, recebe a identidade estigmatizada que lhe é atribuída, sente-se “inferior” na relação social e reage ao seu “destino” com raiva.
Decorrente da raiva, a “Inveja” pode levar uma pessoa a querer que o outro “perca aquilo que ela não pode ter”, agredir quem tem, ou sentir-se feliz com a desgraça alheia.
A pessoa que é colocada na condição de “vítima impotente”, movida pelo reflexo inato de “autoafirmação” torna-se uma pessoa “em busca de potência para a vingança” e, ao atingir um estado paroxístico, pode apresentar uma “resposta” violenta.
Para aquela “impotente vítima” a “representação” daqueles que a agridem se estende a todos que lhe parecem “semelhantes” aos agressores, porque também possuem “aquilo que ela não pode ter” _ a aparência física, por exemplo _; logo, igualmente, “merecem” ser punidos.
A passagem “da quantidade à qualidade”, neste caso, consiste numa mudança do papel social de “impotente vítima” para o papel social de “potente agressor”: aquele que nutria o “sentimento de inferioridade” agora se enche de “superioridade”.
É, pois, o “reflexo inato de autoafirmação” que une vítima e agressor e pode levar a uma inversão de papéis: transformar a vítima em agressor e agressor em vítima.
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2- É a sociedade que nos faz tais como somos. O desempenho de um “papel social” corresponde, então, a uma resposta favorável a uma expectativa do grupo. O “papel”, por um lado, impõe certas ações e, por outro, reforça nossas emoções ao desempenhá-lo: quando uma pessoa se ajoelha numa igreja (ação) sente-se mais humilde diante da divindade (emoção); quando avança em direção a um perigo (ação) sente-se mais corajosa (emoção) e, ao contrário, à medida em que dele foge (ação) mais covarde se sente (emoção).
2.2 Ausência de sentido
E quanto aos jovens em “sofrimento mental”?
VIOLÊNCIA NA ESCOLA
CONSTRANGIMENTO,
HUMILHAÇÃO,
VIOLÊNCIA VERBAL
VIOLÊNCIA FÍSICA
Quem decide matar pessoas numa escola está decidido a se matar ou ser morto porque não está encontrando um “sentido para a vida”... e apresenta sinais: refere-se à escola ou a colegas com expressões grosseiras, não se enturma, conecta-se virtualmente _ depois, pessoalmente _ com desconhecidos igualmente frustrados, pesquisa, adquire e se fotografa com trajes, armas e explosivos.
Se, além de “ansiosa”, a pessoa estiver “depressiva”, pode apresentar-se desmotivada, incapaz de realizar afazeres habituais, com pensamentos pessimistas, desinteressada dos círculos de amizade e o foco de sua atenção é voltado para si própria.
TRÊS LINHAS VIENENSES DE PSICOTERAPIAS
SIGMUND FREUD (PSICANÁLISE, 1856-1939) VONTADE DE PRAZER
ALFRED ADLER (PSICOLOGIA INDIVIDUAL, 1870-1937) VONTADE DE PODER
VIKTOR FRANKL (LOGOTERAPIA E ANÁLISE EXISTENCIAL, 1905-1997) VONTADE DE SENTIDO
Viktor Emil Frankl (1905-1997) acrescentou a “vontade de sentido” às enunciadas vontades “de prazer” de Sigmund Freud e “de poder” de Alfred Adler e criou a terceira linha vienense de psicoterapia, a “Análise existencial”.
Seu método, em síntese, objetiva levar a pessoa a encontrar um “significado” para a própria vida substituindo o “vazio existencial” por um “plano existencial” para um futuro melhor.
Professores, familiares e amigos devem estar atentos aos sinais e buscar ajuda profissional, sempre que essa for necessária.
2.3 Controle Social e Proteção Social
Edward Alsworth Ross (1866-1951) tornou-se o introdutor em Sociologia do conceito de “ordem social” ao publicar o livro “Social Control, a survey of the foundations of order” (“Controle Social, uma pesquisa sobre os fundamentos da ordem”).
Ensina o autor que a primeira das 3 funções do “Controle Social” é a “conquista e manutenção de uma ordem social” (limites dentro dos quais possam ser exercidas as liberdades individuais e sem os quais não existiria liberdade alguma para ninguém).
Seguem-se as funções de “Eficiência Social” (a obtenção de objetivos desejados pela sociedade através do funcionamento harmonioso de suas partes) e de “Proteção Social”, para assegurar a sobrevivência das duas primeiras.
Fica mais fácil compreender a função de “Proteção Social” quando indagamos:
- Quais são os valores que devem ser garantidos?
- Quais são os perigos e ameaças?
- Quais são os autores da garantia?
- Quais são os meios de que dispõem os autores da garantia?
Mas, leitores, é a história de cada pessoa que forma sua identidade e a faz ser quem ela é.
O nascimento de uma criança é a chegada de alguém a este planetinha azul e branco com absoluto direito à dignidade e ao respeito.
Entre os mais de 8 bilhões de seres humanos, ela nasceu em algum lugar da Terra e tem algumas características naturais: cor da pele, textura dos cabelos, o traçado dos lábios e dos olhos, por exemplo.
Ela tem, ou teve, ancestrais que nasceram no mesmo lugar ou vieram de outros pontos do planeta, aprendeu coisas e foi, ou não, introduzida nalguma religião.
Como certa vez disse Nelson Mandela (1918-2013):
Ninguém nasce odiando uma pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, Ou sua religião.
Para odiar as pessoas precisam aprender; e, se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas
a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto. A
bondade humana é uma chama que pode ser oculta, jamais extinta.
Então, dentro da diversidade existencial dos seres humanos, cada pessoa é um ser único que reúne características naturais e culturais próprias, com direito de pensar e ter suas próprias crenças, de fazer escolhas e, nos limites da lei, de agir; mas, com o dever _ de nenhum modo, como forma de gentileza ou de favor _ de aceitar que as outras pessoas tenham iguais direitos, quaisquer que sejam suas características e as suas histórias.
Portanto, para evitar que a violência tenha origem dentro da própria escola, é necessário que pais, mães e professores estejam engajados para ensinar às crianças que reciprocidade de tolerância implica em respeito pelas pessoas com diferentes atributos físicos, diferentes escolhas ou pensamentos divergentes dos nossos e é inconciliável com atitudes de zombaria, de ameaças ou de violência.
3. DISCUSSÃO
3.1 Primeira Experiência de Enfrentamento: mostrando que conviver é “viver com”
Entre 1975 e 1979, eu servia em João Monlevade, comandando uma companhia do 14.º Batalhão da Polícia Militar.
Naquela cidade, a falta de perspectivas e de oportunidades contribuíam para que, nas horas de ausência da escola e do trabalho, jovens se envolvessem com bebidas, frequência a ambientes de “vida noturna” e brigas. Assassinatos eram frequentes.
Unindo a Polícia Militar à Prefeitura Municipal e ao Lions Clube (e aproveitando a minha formação em Educação Física e em Judô), criamos a oportunidade para que os jovens substituíssem o ócio e as condutas antissociais pelos esportes: no Quartel, construímos um “Dojô”, reformamos a pista de atletismo no “Estádio Municipal Louis Ensch” e, juntos, criamos a “Primeira Olimpíada Estudantil de João Monlevade” (com diversas modalidades olímpicas) e a “Corrida Rústica da Independência”, além de ensinar Judô para turmas de crianças e ministrar “iniciação esportiva” a adolescentes e jovens adultos na “EFIP” (Escola Fundamental Israel Pinheiro).
Naquele tempo, conseguimos da “Diretoria de Esportes de Minas Gerais” (um órgão autônomo da administração direta do Governo do Estado de Minas Gerais), prêmios diversos (medalhas e troféus) para incentivar os jovens atletas e, por autorização do Comando-Geral da Polícia Militar, o comparecimento de sargentos, “Monitores” de Educação Física, para atuarem como árbitros das diversas modalidades.
A “cidade” mudou: passou a ser comum presenciarmos grupos de adolescentes correndo pelas ruas, grupos de atletas treinando modalidades olímpicas e praticantes de esportes coletivos se unindo.
A criminalidade tornou-se numericamente inexpressiva, fato que foi reconhecido pelo comando da Corporação e até me valeu uma medalha de “Mérito Profissional”.
3.2 Segunda Experiência de Enfrentamento: Policiamento Comunitário
De 1988 a 1993 estive prestando serviços no Triângulo Mineiro, comandando Batalhão (o 17.° BPM, sediado em Uberlândia) e Região (o 5.° Comando Regional de Policiamento, sediado em Uberaba).
Foi ali que, idealizamos o termo “POLICIAMENTO COMUNITÁRIO”, unindo a nossa atividade de POLICIAMENTO às atividades da Prefeitura Municipal e da “Avenida de Serviços à COMUNIDADE” do Rotary Clube Uberlândia Sul.
Explica-se essa junção poque, formalmente, os policiais militares representam ostensivamente o Estado e, em nome deste, têm um dever: são profissionais de segurança do cidadão; mas, junto às respectivas famílias, parte da sociedade, cada um deles é também um usuário dessa segurança prestada pelo poder público.
A essência da ideia de policiamento comunitário, uma vez que aceitemos como prioridade a prevenção, consiste em integrar os profissionais da segurança do cidadão à comunidade usuária dessa proteção, através de uma parceria entre o Estado e a Sociedade: polícia e comunidade.
Tal conceito surgiu em Minas Gerais, em 1989, no município de Uberlândia, onde se formou, através de um convênio, uma parceria entre um clube de serviços (o Rotary Clube Uberlândia Sul), a Prefeitura Municipal e a Polícia Militar, tendo como fim a democratização dos serviços de polícia preventiva e, como meio, a construção de postos de policiamento e de residências oficiais para policiais militares, nos bairros, a partir da periferia daquela cidade.
O primeiro daqueles postos de policiamento comunitário (com um quartel dotado de equipamento de comunicações e quatro residências funcionais) foi inaugurado em 1990, no Bairro Tocantins e simbolizou uma nova era na relação “polícia e comunidade”.
Em 1992, a Polícia Militar editou a primeira cartilha do gênero no Brasil: era uma narrativa simples, com penas 23 páginas, mas incluía uma abordagem sociológica e filosófica sobre a necessidade da nova postura, os aspectos constitucionais envolvidos, um breve histórico sobre os conhecimentos experienciados no Triângulo Mineiro (naquela oportunidade já com 13 bairros contando com estruturas semelhantes, outros municípios também implantando o novo sistema e vários Estados da União solicitando cópias do projeto), os princípios que devem nortear o comportamento dos policiais militares designados (de modo especial, priorizando a proteção do inocente, em relação à prisão de culpados) e cópias de plantas dos pequenos prédios.
A cartilha foi distribuída a todas as Polícias Militares do país e o termo “Policiamento Comunitário” é, presentemente, usual.
É que a Segurança Pública (um fim social, para que haja harmonia nos grupos humanos), para ser alcançada, necessita 3 suportes:
1) A existência de leis, regulando as relações ideais “Estado-cidadão” e “Cidadão-cidadão”, no plano teórico;
2) A prática de medidas de “Controle Social”, nas formas espontâneas, tais como aquelas proporcionadas pelas famílias, contribuindo com incentivos ideais de educação (como “valor social e qualitativo”, logo apreciável);
3) A presença efetiva de entidades institucionais oficiais de “Controle Social”, assegurando a eficácia das leis, tais como os sistemas de ensino (educação como valor individual e quantitativo, logo mensurável), de polícia, de justiça e de tratamento penitenciário (especialmente enquanto ressocialização).
A Constituição do Estado de Minas Gerais, pelo inciso I do artigo 142, a par da instituição do “Sistema de Defesa Social” e do “Conselho de Defesa Social”, incumbiu a Polícia Militar da polícia ostensiva de “prevenção criminal”.
A essência da missão da Polícia Militar é, até pela própria prioridade legal, a atividade de “polícia preventiva”, seguindo-se-lhe as demais competências.
3.2.1 Princípios
Os termos gregos “cosmos” e “caos” são contrários, significando o primeiro “universo organizado” e o segundo “desorganização”.
A sociedade contemporânea convive com os dois extremos: o enfrentamento de problemas comuns, de modo sinérgico e, a um só tempo, a própria comunidade, desorganizada, gerando novos problemas, objeto da “defesa social”.
Com alguma frequência, mesmo sem o registro de número representativo de casos de arbitrariedades cometidas por policiais (militares, ou civis), encontrávamos notícias de pesquisas de opinião pública, revelando ser a polícia percebida como “violenta”.
Referiam-se, evidentemente, à própria “violência legal”, traduzida por abordagens a pessoas, buscas pessoais, apreensões e prisões, que eram realizadas com ênfase junto à população de bairros periféricos (e que constitui a maioria do povo), população que era eleita, rotineiramente, para as “batidas policiais” e nunca para uma atuação educativa, logo preventiva.
A par de tais “batidas”, nalgumas comunidades, o povo somente via a polícia após a eclosão de delitos, quando essa se fazia presente para prender os culpados e jamais para proteger o inocente.
Revelava-se de tal forma como “polícia corretiva”, em vez de “polícia preventiva”.
Ora, a “defesa social” manifesta-se, em sua concepção moderna, através da “prevenção de delitos” e do “tratamento do delinquente”. Não podendo a Polícia Militar participar, constitucionalmente, desse tratamento, segue-se que deve se empenhar, prioritariamente, na prevenção e, fora de qualquer dúvida, nesse entrelaçamento da defesa social com as teorias sociológicas do controle social, os resultados melhor serão alcançados através do Policiamento Comunitário, com ênfase nos seguintes princípios:
1) Presença real: o policiamento ostensivo deve ser uma presença efetiva, como fator inibidor de vontades delinquenciais. Tal policiamento é melhor executado se os patrulheiros estiverem a pé, ou de bicicleta.
2) Decisões conjuntas: os locais e horários de presença policial devem ser decididos em conjunto com os moradores. Esse diálogo será facilitado se os policiais militares forem, oficialmente, moradores do bairro (conhecidos e conhecedores dos habitantes da comunidade, logo aptos a protegê-los em relação à presença de estranhos que ali estiverem rondando).
3) Referência física: o Posto de Policiamento Ostensivo (PPO), que envolve o quartel e as residências oficiais, deve constituir-se em suporte físico para o Policiamento Comunitário, centro de recebimento de moradores e referencial permanente para o povo.
4) Atitude social inovadora: o Policiamento Comunitário deve ser percebido como uma nova postura. Busca-se, por meio da soma de esforços, um só fim: a prevenção.
Tal soma de esforços não significa o simples exercício de atividades de policiamento ostensivo, muito menos de contribuições materiais pela comunidade. Ao contrário, mais importante do que qualquer forma de apoio material é o sistema de troca de informações que deve ser buscado.
Os policiais deverão, além das atividades de policiamento, conhecer e orientar os moradores e alertá-los sobre riscos potenciais (gerados por eles próprios), tais como: ausência de iluminação nas ruas e logradouros públicos: distância excessiva entre pontos de ônibus e as residências dos usuários, presença de lotes vagos cobertos de vegetação e sem iluminação; portas ou janelas esquecidas abertas; exposição excessiva de dinheiro e joias; crianças deixadas sem a presença dos responsáveis ou sem atividades sadias; veículos deixados nas ruas e outros, conforme a realidade de cada bairro.
A comunidade deverá conhecer os policiais e apresentar-lhes os seus receios, prestar informações sobre a presença de pessoas estranhas, minimizar os riscos indicados, criar atividades para os jovens (educacionais, recreativas, desportivas e de iniciação profissional) e outras participações, conforme a realidade de cada bairro.
5) Patrulhamento: os policiais militares devem ser patrulheiros do bairro e não “sentinelas” ou “plantões” do quartel. Para preservação dos imóveis, seus próprios familiares são suficientes.
6) Proteção aos inocentes: deverá ser buscada a proteção ao inocente como prioridade sobre a prisão de culpados. Evitar o crime é mais importante do que prender o criminoso. As prisões encontram-se abarrotadas. Juízes não conseguem julgar todos os delinquentes. Delegados não conseguem apurar todos os crimes.
7) Percepção da cidadania: os policiais militares do Policiamento Comunitário devem ser treinados para perceber a cidadania das pessoas, jamais participando de “batidas policiais”.
8) Permanência no bairro: deve-se evitar o desvio para outras atividades do efetivo de policiais do Policiamento Comunitário.
9) Prevenção: esta é a prioridade na distribuição dos efetivos. Se houver “claros” que esses se localizem noutras atividades (nunca nos PPO do Policiamento Comunitário).
10) Compromisso com o momento presente: a sociedade pode tornar-se melhor aqui e agora. Só depende dela própria.
3.3. Quando o policial se torna mais um agressor na sociedade
Espantados, assistimos pela TV que _ após 4 dias de manifestações populares (incluindo incêndios em delegacias e em viaturas policiais) _, na sexta-feira, dia 29 de maio de 2020, foi preso por homicídio nos Estados Unidos da América um policial de Minneapolis (Minnesota) que, na presença de testemunhas que imploravam que ele se apiedasse e de 3 outros policiais, no dia 25 de maio de 2020 ajoelhara sobre o pescoço de um cidadão _ George Floyde _ jogado no chão (já algemado) e este morreu. Os policiais presentes se mostravam absolutamente indiferentes às súplicas da vítima e das testemunhas.
Pessoas descompensadas deveriam ser controladas, não abatidas.
Por tal razão, os comandantes recomendam equilíbrio e polidez a seus comandados e, sobretudo, que evitem qualquer forma de violência desnecessária.
Contraditoriamente, porém, o manual da polícia de Minnesota orientava como comprimir o pescoço de uma pessoa presa com um joelho como opção de “força não-letal”.
Existem profissionais que, incentivados por “modismos”, escrevem manuais de “Defesa pessoal policial” com técnicas extraídas de modalidades de esportes de combate, as quais incluem _ pasmem senhoras e senhores! _ ajoelhar sobre o preso e aplicar socos, pontapés e estrangulamentos e, assim, tais agentes encarregados de fazer cumprir a lei são treinados em algumas instituições.
A sociedade pode perceber toda uma instituição a partir da brutalidade (ainda que isolada) de um só de seus representantes, a exemplo do que ocorreu nos EUA.
Ao adotar, para o treinamento de seus subordinados, um manual contraditório em relação aos objetivos institucionais, evidentemente o comandante assume o risco do resultado.
3.4. Preparação do policial com perfil de protetor da sociedade
Como evitar, neste hemisfério, que um policial seja gerador de situações semelhantes àquelas ocorridas nos EUA?
Bem... em nosso cérebro, bilhões de neurônios interligam-se, quais “caminhos”: caminhos neurais.
A cada nova percepção, estabelecemos ligações neurológicas e criamos um caminho neural. Nas próximas vezes que tivermos a mesma percepção, nosso cérebro reacessará aquelas ligações neurológicas e, cada vez que nossos comportamentos se repetirem, serão reforçadas as ligações neurológicas associadas e acessaremos o “caminho” com mais facilidade.
Associação é, portanto, o resultado do estabelecimento de relações neurológicas entre dois ou mais distintos atos mentais, tornando-os neurologicamente semelhantes, através de processos de condicionamento e de reforço, conforme já ensinava Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936), Prêmio Nobel de fisiologia em 1904.
A doutrina da Força Pública de Minas Gerais (e acredito que de todas as Polícias Militares das 27 Unidades Federativas) _ expressada na vontade dos comandantes e levada à tropa para assegurar a integridade física de uma pessoa (mesmo infratora), quando colocada sob custódia do Estado _ levou-me a pesquisar uma forma de controle de gestos agressivos humanos que seja coerente com tal conjunto de princípios filosóficos.
Minhas pesquisas levaram-me não às lutas de competição, os “esportes de combate” (que têm como objetivo “derrotar o outro”) mas, sim, a uma filosofia de proteção do ser humano (inclusive do agressor), fundada pelo filósofo japonês Morihei Ueshiba (1883-1969), a qual inclui uma prática marcial denominada “Aikido” (significando “o caminho da harmonia”), substitui a competição pela cooperação e objetiva a construção de seres humanos participativos numa sociedade sem conflitos, criando a oportunidade de refletir e compreender que a agressão parte, sempre, de uma pessoa desequilibrada, a qual deve ser controlada e não agredida de volta.
Através de ascese filosófica e treinamento adequado o policial adquire um perfil de protetor da sociedade e, jamais, de mais um agressor na sociedade.
Cabe ao comandante mostrar-lhes este caminho.
3.5. O Uso Adequado da Força
Para evitar acontecimentos semelhantes àquele dos EUA, unindo a filosofia e os conteúdos técnicos do Aikido à doutrina das Polícias Militares, foi desenvolvido, na Academia da Polícia Militar de Minas Gerais, pelo professor Rômulo Lagares de Souza Côrtes (1974 - ) o método “O USO ADEQUADO DA FORÇA”, com seguintes premissas:
(1) Nas abordagens, a postura e a compostura do profissional encarregado de fazer cumprir a lei implica manter autocontrole físico e mental e compreender que a violência parte, sempre, de uma pessoa desequilibrada;
(2) O policial militar é o representante ostensivo do Estado, devendo preservar a integridade física da pessoa que for colocada sob custódia;
(3) O princípio da autodefesa do profissional de segurança pública implica saber e usar técnicas de imobilizações sem ferir a pessoa que for abordada;
(4) O controle de gestos agressivos da pessoa abordada deve ser feito através de um “Eixo Tático”, seguido de “Imobilizações Táticas”.
3.5.1 Tragédia evitada
Noticiários “pululam” quando ocorrem mortes numa escola. Quando as mortes são evitadas, há pouca ou nenhuma divulgação.
Há alguns anos (precisamente em 28/09/2011, conforme registro no BO 1351351 da 17ª Cia, do 34º BPM), em Belo Horizonte, MG, um menino de 11 anos levara para uma escola municipal um revólver calibre 38, municiado com 4 cartuchos intactos.
Todos já vimos em noticiários (com mais frequência nos EUA) crianças e adolescentes sendo abatidos a tiros pela polícia em situações análogas.
Felizmente, nessa escola estava de serviço um Guarda Municipal (da Prefeitura de Belo Horizonte), formado por nós com o método do USO ADEQUADO DA FORÇA.
Ao invés de usar uma arma, o Guarda Municipal se aproximou, seguindo um “eixo tático” e, sem uso de qualquer forma de violência, desarmou a criança.
Fez mais do que desarmar a criança: conversou com ela e a acalmou, demonstrando tranquilidade, humanismo e compreensão.
A criança foi conduzida pela Polícia Militar e, a seguir, foi entregue aos cuidados do Conselho Tutelar.
4 . SUGESTÕES DE POLÍTICAS PÚBLICAS NACIONAIS PARA ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA E AOS PRECONCEITOS
4.1. Na Escola
4.1.1. Capacitação dos professores (especialmente os de Educação Física), para evitar situações de violência física ou psicológica (bullying), identificar, intervir imediatamente e saber lidar com essas situações se ocorrerem;
4.1.2. Adoção pelos professores de Educação Física dos objetivos de preparar os estudantes para “gostar de esportes” ao invés de “derrotar pessoas” e, através de métodos de “iniciação esportiva”, unir os praticantes;
4.1.3. Introduzir atividades pedagógicas, por exemplo, com temas específicos para redações, tais como: respeito mútuo, empatia e convivência harmoniosa;
4.1.4. Incluir o Policial Militar ou o Guarda Municipal que atue na escola nos encontros de “pais e mestres” e, nesses, adotar o tema “Prevenção e repreensão em situações de violência física ou mental”;
4.1.5. Estabelecer normas disciplinares contra qualquer prática de violência física ou psicológica;
4.1.6. Acolhimento e tratamento psicológico (das vítimas e dos jovens agressores);
4.1.7. Criação de canais confidenciais de comunicação que proporcionem facilidade e segurança a estudantes e familiares para informar situações de violência física ou psicológica à direção da escola
4.2. Nas Polícias Militares e nas Guardas Municipais
4.2.1. Formar Instrutores Especialistas no método cooperativo e defensivo USO ADEQUADO DA FORÇA (com fundamento em princípios do Aikido, que possibilitam controlar a agressividade e a autodefesa, sem ferir a pessoa agressiva), para propiciar um fator multiplicador do método nas corporações policiais;
4.2.2. Substituir, como disciplina curricular nos cursos de formação e nas instruções de manutenção, os competitivos e agressivos métodos de “Defesa Pessoal Policial” (derivados de esportes de lutas) pelo método USO ADEQUADO DA FORÇA;
4.2.3. Adaptação dos princípios do “Policiamento Comunitário” à realidade das escolas.
referências
CÔRTES, Rômulo Lagares de Souza. Cartilha de Uso Adequado da Força. Belo Horizonte: produção independente, 2022, 64 p.
COSTA, Alcino Lagares Côrtes. Discurso Sobre a Proteção Social. Belo Horizonte: produção independente, 3ª edição, 2003, 214 p.
______. Cartilha de Policiamento Comunitário. Belo Horizonte: Gráfica Editora da PMMG, 1992, 23 p.
FRANKL, Viktor. Logoterapia e Análise Existencial. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro, GEN (Grupo Editorial Nacional), 2012, 350 p.
MANDELA, Nelson. Long Walk to Freedom (O longo caminho para a liberdade). Boston, USA, Little, Brown & Co., 1994, 776 p.
ROSS, Edward Alsworth. Social Control, a survey of the foundations of order (Controle social uma pesquisa sobre os fundamentos da ordem). New Jersey, Transaction Publishers, 1901, 463 p.