Alcino Lagares*
A CONDIÇÃO HUMANA
Sou, essencialmente, um nous. Você que ora lê o que escrevo é, essencialmente, um nous.
“Nous” (grego) pode ser entendido, em nossa língua, como “alma”, ou “espírito” (por aqueles que acreditam em alma ou espírito), ou apenas como “pensamento” (por aqueles que não acreditam em alma ou espírito).
O filósofo René Descartes (1596-1650) ensinava sermos a “res cogitans” (a coisa pensante, o ser de essência simbólica) que habita a “res extensa” (a coisa extensa, a extensão física, o corpo).
Na condição de nous, a essência, ocupamos um corpo para que possamos ter “existência” e nos colocarmos em relação com o mundo físico circundante (onde se insere toda alteridade).
Mas, eu e você somos diferentes. Somos muito diferentes! Somos diferentes porque somos indivíduos.
Temos diferenças físicas (sexo, cor da pele e dos olhos, traçado dos lábios, dos olhos, e do nariz, textura dos cabelos, e biótipo), temos diferentes crenças (religiosas, ou filosóficas), e viemos _ ou nossos ancestrais vieram _ de diferentes lugares (cidades, estados ou províncias, ou países).
Observe, por favor, os seguintes números: “1... 3... 5... 7... 9...”
O quê salta imediatamente às nossas vistas?
Certamente desperta nossa atenção o fato de que são números diferentes entre si. No entanto, incluem na própria essência algo que os torna semelhantes: a imparidade (a qual faz com que cada um seja “ímpar”)!
De fato, eles são números ímpares porque participam do conceito da imparidade. Todos são ímpares; mas, nenhum deles é “o ímpar”.
E quanto a nós?
“Homens... mulheres... brancos... negros... amarelos... miscigenados... judeus... cristãos... muçulmanos... budistas...”
É a circunstância de vivermos na “sociedade humana” que nos confere a “condição humana” e faz de cada um de nós um “ser humano”.
Em síntese: somos humanos, porque participamos da humanidade.
A nossa “imparidade” é a humanidade, e seremos tão “mais humanos” quanto mais reconhecermos no “outro” a igualdade humana.
Segue-se que, embora tenhamos diferenças individuais, somos semelhantes porque nos envolve a condição humana.
O grande Nelson Mandela (1918-2013), um ser humano respeitabilíssimo, negro, perseguido, encarcerado por 28 anos para que não se pudesse manifestar, assim ensinou:
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.”
JUSTIFICANDO A DISCRIMINAÇÃO
Espertalhões sempre estiveram presentes na história da humanidade. Tais indivíduos (e grupos de indivíduos), em todas as eras, mantiveram-se preparados para “demonstrar” uma necessária correspondência entre “desigualdades sociais” e “diferenças individuais”, justificando-as, ora pela força, ora pela “divina vontade” (a qual posicionava, no ápice da estratificação social, “seres especiais, superiores” dotados de poderes_ em forma de “reis”, “imperadores”, “senhores”, “clero” e “nobreza” _ e, na base, “seres inferiores”, destinados a servir àqueles, sob as denominações particulares de “súditos”, “escravos”, “vassalos”, e ... “povo”).
Existem muitas formas de discriminação. De todas, a mais “explicada” é a da mulher.
No Livro de Gênesis, Moisés relata que, na “divina criação” os animais foram, todos, igualmente criados machos e fêmeas. Mas, para o surgimento da humanidade _ por mais que nossa teimosa inteligência insista ser mais razoável que o homem tenha nascido de uma mulher _ foi necessário que primeiro viesse o macho da espécie, o homem; e _ não importa se ele seria “rei” ou “escravo” _, de uma costela deste, foi feita a fêmea da espécie, a mulher; portanto, a mais inferior das criaturas!
Eis que Moisés desceu do Monte Sinai, trazendo nas mãos duas “Tábuas da Lei”, e apresentou-as como tendo sido “escritas pelo próprio Deus”, sendo seu décimo sétimo versículo sintetizado pela igreja Católica _ e mantido pelas igrejas protestantes _ como “9.º Mandamento”: “Não desejar a mulher do próximo”, e cujo texto original (novamente, embora nossa teimosa e pequena inteligência divague e coloque em dúvida que Deus aprovasse a escravidão _ um ser humano como propriedade de outro _) assim foi redigido:
“Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.”
Tal texto leva-nos a inferir que a mulher _ juntamente com o jumento, o boi, o escravo e a escrava _ eram propriedades e o “teu próximo” era um grande proprietário.
PARA QUE CADA INDIVÍDUO RECEBA O QUE MERECER
Para que uma sociedade composta de indivíduos diferentes, mas iguais em humanidade, seja justa, devem existir:
1) iguais oportunidades para conquista dos direitos, expressos em termos de acesso à liberdade, ao conhecimento, e à propriedade;
2) valores sociais, em cujo ápice deve se encontrar a dignidade da pessoa humana;
3) iguais limites para o exercício da liberdade, expressos pelo cumprimento de deveres e pela reciprocidade de respeito entre os seres humanos _ quaisquer que sejam as suas diferenças individuais.
Por este raciocínio, a igualdade de oportunidades opõe-se à distribuição igualitária das liberdades e da propriedade; pois, esta seria, além de uma evidente injustiça, uma contradição: o ingênuo e improdutivo esforço de tornar igual aquilo que é, por definição, diferente.
Somente através de iguais oportunidades cada indivíduo poderá, um dia, receber o que merecer e, somente assim, a sociedade será justa.
Para que as oportunidades sejam iguais, haveremos de começar as mudanças por alguma “coisa”.
Sugiro começarmos por aquilo que a todos pertence.
Por definição, o que a todos pertence é a “coisa pública”. Comecemos, então, pela “coisa pública”:
Que todos os cargos públicos do Executivo, do Legislativo, e do Judiciário (em todas as instâncias e em todos os níveis), sejam ocupados exclusivamente pelo critério do concurso público, extinguindo-se as "indicações", as “nomeações”, e as "eleições".
Em vez de se dizer que “o povo não sabe tomar decisões políticas”, que lhe sejam dadas iguais oportunidades de acesso ao conhecimento: portanto, que as escolas públicas ofereçam qualidade de ensino.
Em vez de se defenderem ideias de “reduzir a idade de maioridade penal” que se invista na educação dos jovens.
Afinal, o que está acontecendo hoje no Brasil e em vários lugares do mundo fora pensado por Thomas More (pseudônimo: “Morus”), um dos ministros do rei Henrique VIII (1491-1547) que, por sinal, condenou-o à morte por suas ideias.
Eis algumas palavras de Thomas Morus:
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*coronel da reserva e presidente do Conselho Superior da Academia de Letras João Guimarães Rosa da Polícia Militar de Minas Gerais.
Contatos: cellagares@yahoo.com.br
"Abandonais milhões de crianças aos estragos de uma educação viciosa e imoral. A corrupção emurchece, à vossa vista, essas jovens plantas que poderiam florescer para a virtude, e vós as matais quando, tornadas homens, cometem os crimes que germinavam, desde o berço, em suas almas. E, no entanto, que é que fabricais? Ladrões, para ter o prazer de enforcá-los." (Thomas Morus, 1478-1535, em “A Utopia”)
“A ideia de equidade implica distinção das coisas, porque todas as coisas não são iguais. Pois, se fossem iguais não haveria necessidade de equidade. (...) conclui-se que só pode haver justiça onde há disparidade e dessemelhança.” (Agostinho, 354-430, em “A cidade de Deus”)