JE SUIS TOLÉRANT!
Alcino Lagares¹
“Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da totalidade. Quando um torrão de terra é levado pelo mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar dos teus amigos ou o teu próprio; a morte de um homem qualquer me diminui, porque sou parte da humanidade, e por isso nunca mandes indagar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” ²
Conforme se depreende de textos referentes à Antiguidade (um período de 35 séculos, encerrado com a queda do império romano, no Séc. V da era cristã), os governos eram teocráticos. Os reis eram sacerdotes e os sacerdotes eram reis. Deus era colocado à frente da sociedade política e, consequentemente, havia tantos deuses quantos eram os povos e, em cada um desses, os deuses e suas leis eram uma só e a mesma coisa, unum et idem.
Nasceu nesse tempo _ no qual cada povo possuía seu culto e seus deuses _ a intolerância a um só tempo civil e religiosa. Portanto, as guerras eram políticas e teológicas e o povo vencedor impunha seus deuses ao povo vencido.
Foi Jesus (por volta de 34 a 38 d.C.) que, com seus evangelhos (mensagens), separou o poder teológico do poder político, ao propor aos habitantes da Terra um reino espiritual: "_ Meu reino não é deste mundo"!
Mas, foi em nome de Jesus _ e contrariando seu evangelho _ que se deram, na Idade Média as mais intolerantes manifestações políticas e teológicas de todos os tempos, as “Cruzadas” e a “Santa Inquisição”, perpetradas pelo Cristianismo. Porém, a história recente do Cristianismo _ na Modernidade e no período pós-moderno _ tem demonstrado seu afastamento da disputa pelo poder político. Que bom!
O Islamismo é uma religião monoteísta, cuja história começa com a narrativa de Maomé (570-632) de ter, em 610, quando meditava numa caverna do monte Hira (região da Arábia Saudita), recebido a visita do “arcanjo Gabriel”, que lhe revelou a existência de um Deus único (“Allah”, em árabe) e o nomeou “profeta”.
Por ter Maomé passado a fazer pregações de natureza político-religiosas em Meca, sua presença começou a incomodar líderes locais e, no ano 622, sentindo-se ameaçado, fugiu para Medina (movimento denominado “Hégira”), onde se tornou chefe da primeira comunidade muçulmana, e donde passou a liderar vitoriosos anos de uma guerra civil entre os habitantes daquelas cidades e contra várias tribos árabes.
Maomé seria o autor do Alcorão (o livro sagrado do Islamismo), significando o termo “islã” “submeter-se à lei” (esta entendida como “a vontade de Allah”), e seus seguidores são os “muçulmanos”.
Em 632 (ano da morte de Maomé) praticamente todo o território árabe havia sido conquistado, e a todo o povo havia sido imposto o Islã. Afinal, como ocorrera na Antiguidade, reis eram sacerdotes e sacerdotes eram reis...
Iniciou-se uma disputa _ que permanece até os dias de hoje _ entre dois grupos que se apresentam como “legítimos” sucessores de Maomé em busca da liderança político-religiosa: “Xiitas” e “Sunitas”.
Os xiitas conservam antigas interpretações do Alcorão e da “Lei Islâmica” (a “Sharia”) e defendem a sucessão do califado pela hereditariedade, ou seja, pelos descendentes da família de Maomé.
Os sunitas, originalmente ligados a califas da família dos sogros de Maomé, defendem a atualização de tais interpretações através de conteúdos da “Suna” (livro onde estão compilados feitos e exemplos de Maomé).
Para ambos, Maomé foi um profeta, o último e definitivo profeta.
Foi a irracionalidade das históricas condições político-religiosas (em pelo menos três das cinco religiões que conseguiram reunir à sua volta milhões de crentes _ Judaísmo, Cristianismo, e Islamismo), que impôs ao “fiel” de cada uma dessas religiões, em dado momento, mais do que uma “aspiração por superioridade” (ao sentir-se “inferior”), a necessidade de converter ou eliminar o “infiel”, pelo receio de, inversamente, ser convertido por ele em razão da inveja que nasce da “liberdade de pecar” que “infiéis”, por definição, possuem e ostentam.
A “marcha” realizada em Paris (em janeiro de 2015) após o assassinato de doze pessoas na sede de um jornal alternativo (“Charlie Hebdo”) que publica charges irreverentes (com as quais ridiculariza imagens “sagradas”, tais como Jesus para os cristãos, e Maomé para os muçulmanos, além de personalidades políticas, etc.) reuniu milhões de pessoas.
Tal universo foi constituído de hipócritas convictos e de perdidos cidadãos, estes procurando entender o inexplicável e acreditando estar contribuindo para que tal barbárie nunca mais se repita.
Contrariamente, ao participarem da marcha, representaram, sem o saber, o triste papel de inocentes úteis para que políticos “aparecessem”, para que a irreverência gerasse mais lucros, e para que a barbárie continuasse potencialmente tal e qual!
Os sobreviventes responsáveis pelo “Charlie Hebdo”, receberam milhões de dólares em doações e aumentaram sua tiragem (que nunca passara de 60.000 exemplares) para 5.000.000 de exemplares!
O modo como o assunto está sendo conduzido por políticos hipócritas pode gerar apenas dois cenários: repetições de atentados e de ridículas marchas de mãos dadas, ou a submissão do povo (os inocentes úteis) a mecanismos coercitivos de controle social... e repetições de atentados!
E por que isso?
Porque, para que a humanidade possa livrar-se da barbárie, será necessário que as condições político-religiosas que a envolvem historicamente sejam extirpadas da mente humana (através da compreensão universal de sua irracionalidade), e (ou) pela adoção universal da reciprocidade de tolerância.
Numa sociedade civilizada, para que esta seja digna do nome que leva, o conceito de reciprocidade de tolerância implica em respeito pelas pessoas que pensam diferente de nós e vice-versa.
A reciprocidade de tolerância admite esforços para convencer outras pessoas sobre nosso modo de pensar, e reciprocamente; mas, é inconciliável com atitudes de zombaria de suas crenças ou opiniões, bem como da utilização de ameaças, ou de violência.
Pelo que se viu, o poder político da França foi omisso ao não estabelecer leis igualitárias que limitem o exercício das liberdades (inclusive a de expressão) e que imponham reciprocidade de respeito entre os seres humanos _ quaisquer que sejam as suas diferenças individuais e suas crenças.
Quem sabe, se os políticos franceses _ em vez de fazerem ridículas marchas de mãos dadas pelas ruas de Paris _ lerem o artigo 5.º da nossa Constituição Federal _³ especialmente por seus incisos V,VI, e X _ possam inspirar-se.
_ Sou contra a ameaça e a violência dos extremistas.
_ Eu respeito o que as pessoas consideram “sagrado”.
JE SUIS TOLÉRANT!
_____________________
1- Coronel da reserva e presidente do Conselho Superior da Academia de Letras "João Guimarães Rosa" da Polícia Militar de Minas Gerais. Contatos: cellagares@yahoo.com.br
2- O livro “Por quem os sinos dobram”, escrito em 1940 por Ernest Hemingway (1899-1961), teve seu título extraído do poema “Devotions” (traduzido geralmente em nossa língua como “Meditações”) de John Donne (Londres, 1572-1631): “No man is an island, entire of itself, every man is a piece of the continent, a part of the main. If a clod be washed away by the sea, Europe is the less. As well as if a promontory were. As well as if a manor of thy friend's or of thine own were: Any man's death diminishes me, because I am involved in mankind, and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee.”
3- Artigo 5.º da CF brasileira: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;(...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;(...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;(...)”