NEM FÉ, NEM RAZÃO: SOMENTE INTOLERÂNCIA
Alcino Lagares*
Trago uma imagem do filme “2001, uma odisseia no espaço”, porque quero rememorar o momento em que, em 1968, o diretor Stanley Kubrick representou o início da evolução racional humana (com um salto qualitativo ocorrido ficcionalmente há quatro milhões de anos, sob a influência de um misterioso monólito de origem extraterrestre): primatas tornaram-se os primeiros seres a fazer uso de uma ferramenta (no caso, um osso), com a qual, além de matarem antas para obter alimento, passaram a exercer a dominação sobre as outras tribos.
FIDES ET RATIO
Dentre os documentos pontifícios escritos pelo papa João Paulo II (Karol Józef Wojtyła, 1920-2005), sem dúvida merece destaque a carta encíclica “Fides et Ratio” (“Fé e razão”).
Eis as primeiras palavras de seu exórdio:
“Venerados Irmãos no Episcopado,
saúde e Bênção Apostólica!
A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. (...)”
Na encíclica, o papa teceu uma crítica à “razão moderna”, que glorifica avanços científicos e tecnológicos, possibilita viagens espaciais, e prolonga a vida humana, ao mesmo tempo em que desenvolve armas cada vez mais potentes (capazes até de destruir nosso planeta), justifica as imensas desigualdades sociais, e deixa sem respostas as questões fundamentais, relacionadas ao sentido da própria existência humana.
Sua carta é, mais do que um ensinamento, um convite para que o ser humano reflita sobre a possibilidade de aliar a razão filosófica ao entendimento da fé revelada e, por isso, sua primeira parte intitula-se “Conhece-te a ti mesmo”.
No século V a.C., Sócrates adotou a máxima “gnōthi seauton” (grego: "Conhece-te a ti mesmo") inscrita no oráculo de Delfos, como primeiro fundamento de sua filosofia.
Há mais profundidade nesta máxima do que pode parecer-nos à primeira vista:
É quando o ser humano se distingue no meio da criação por ter consciência de sua própria existência _ ocupando um corpo, mas não se confundindo com ele _ que adquire legitimidade para perceber a necessidade de encontrar um sentido para ela e procura a transcendência.
NEM FÉ, NEM RAZÃO
Em 642 d.C., o califa Omar teria mandado destruir as obras da Biblioteca de Alexandria, com a seguinte justificativa: “ Se confirmam o que diz o Corão, são inúteis. Se o contradizem, são inaceitáveis”!
Em cena semelhante àquela dos primatas ficcionais, no dia 26 de fevereiro de 2015, um grupo da facção autodenominada “Estado Islâmico”, invadiu um museu de antiguidades de Mossul, e destruiu inúmeras obras de arte, algumas das quais datadas do século VII a.C!
O Estado Islâmico (EI) é um grupo “jihadista” que se desmembrou do Estado Islâmico do Iraque (uma extensão iraquiana da Al-Qaeda), e passou a contestar a autoridade de seu chefe, Ayman al-Zawahiri.
Mossul é uma grande cidade situada ao norte do Iraque, com mais de 600 mil habitantes, e duas universidades; mas, encontra-se ocupada militarmente pelos boçais integrantes da retrocitada facção há cerca de 8 meses.
A “justificativa” para este atentado à cultura de uma civilização, no dizer de um daqueles loucos, teria sido a seguinte:
“_ São símbolos de idolatria: algumas destas obras talvez representassem deuses adorados na antiguidade, e somente Alá pode ser adorado!”.
Alguém poderá acreditar que o atentado tenha sido um ato de fé.
Alguém poderá acreditar que o atentado tenha sido um ato da razão.
Mas, o que os integrantes do “EI” buscam teimosamente é a dominação. Somente podem adotar a intolerância. Estão impedidos de aceitar o outro, porque têm medo de alguém que possa pensar de modo diferente.
Nesse intento, têm recrutado milhares de jovens em vários países.
Movidos pela etologia, somente podem adotar comportamento animal e vão, por aí, “marcando território”.
Indignos que são de abrigarem cérebros humanos em suas cabeças, contentam-se com uma medula espinhal.
Nem mesmo poderiam estar mentindo ao justificar pela fé as barbáries que praticam, uma vez que, até para mentir, precisariam ser dotados da razão.
Quais primatas, usam as ferramentas disponíveis para destruir obras de arte; e, quais papagaios, não falam; apenas imitam os sons referentes a textos religiosos que ouviram alhures, sem jamais entender o significado.
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* Coronel da reserva e presidente do Conselho Superior da Academia de Letras "João Guimarães Rosa" da Polícia Militar de Minas Gerais.
Contatos: cellagares@yahoo.com.br