AS PALAVRAS E AS COISAS
(A semântica e os dólares do legislador presidente)
Alcino Lagares*
Na parte introdutória de seu livro “As palavras e as coisas”, Michel Foucault (1926-1984) mostra, numa curiosa classificação de animais extraída de uma enciclopédia chinesa, uma definição para os cães: “Animais (...) desenhados com um pincel muito fino feito de pelo de camelo.”
Em 1904, o russo Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936) recebeu o Prêmio Nobel, concedido na área de Medicina e Fisiologia, uma vez que fizera uma das mais importantes descobertas científicas: o reflexo condicionado. No entanto, talvez mais importante do que a informação da descoberta do reflexo condicionado tenha sido o enunciado que ele apresentou a respeito de dois “sistemas de sinais” _ embora poucas pessoas tenham dado atenção a este segundo fato _: o “primeiro sistema de sinais” refere-se à realidade objetiva e nos é dado pelos sentidos exteroceptores (e este sistema nós compartilhamos com os animais, eis que temos um corpo).
Mas, para os seres humanos, existe o simbolismo.
No universo simbólico, as palavras extrapolam os sons (o primeiro sistema de sinais), adquirem um significado, e tornam-se parte essencial do “segundo sistema de sinais”.
No tempo presente, o esforço de um segmento honesto de servidores (o juiz Sérgio Moro, por exemplo) para recuperar parte dos recursos desviados de dinheiro público por esses grandes antros nos quais alguns grupos de espertalhões transformaram as casas representativas do povo brasileiro, e para levar a julgamento os autores dos delitos, fez nascer uma oportunidade de popularização de alguns termos, tais como: “delação premiada” (no âmbito jurídico, significando a possibilidade de um réu beneficiar-se, aceitando colaborar na investigação ao delatar coautores); “acordo de Leniência” (significando a possibilidade de uma pessoa _ mais frequentemente na condição de pessoa jurídica _, autora de infração contra a ordem econômica, colaborar em investigações, apresentar provas para a condenação dos demais envolvidos na infração, e devolver dinheiro ao cofres públicos, em troca de benefícios).
Neste universo semântico, o biltre legislador presidente, Eduardo Cunha, ao vivo e em cores pela TV, pensou:
_ Que “delação premiada” que nada! Que “acordo de leniência” que nada! Melhor mesmo é o velho e bom “jus sperniandi!” (“o direito de espernear”).
Aí, declarou tragicomicamente para 200 milhões de brasileiros (tidos por ele na conta de rematados idiotas) não ser “dono” dos milhões de dólares depositados em seu nome na Suíça, mas apenas _ eis a parte trágica dos termos usados por ele, numa ótima contribuição para a nossa cultura _ “usufrutuário” deles.
A parte cômica foi quando o biltre rematou: “Porque somente posso usar esse dinheiro em vida”.
Ah, Que pena dele! Se é só em vida, depois dela vai deixar de ser “usufrutuário”...
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*Coronel da reserva e presidente do Conselho Superior da Academia de Letras João Guimarães Rosa da Polícia Militar de Minas Gerais.