No livro sete da “República” Platão escreveu “O mito da caverna”: numa morada subterrânea, homens estão acorrentados desde o nascimento com o rosto voltado para uma parede ao fundo desta. Na parede ecoam vozes e são projetadas sombras de homens livres que falam e passam diante da luz do lado de fora da caverna, cuja existência é absolutamente ignorada pelos acorrentados. Em suma: os acorrentados “sabem” que tudo que existe de real e verdadeiro são as sombras naquela parede.
Platão denomina “Doxa” (opinião) a esse tipo de conhecimento vulgar obtido pelas impressões sensíveis e mostra a superioridade da “Episteme” (conhecimento inteligível do “real e verdadeiro”) sobre aquele: Um dos acorrentados consegue romper as correntes, escalar as paredes da caverna, conhecer a luz e compreender que tudo que haviam aprendido a vida inteira era falso!
Mas, leitoras e leitores, tristemente essa superioridade não prevalece: quando ele _ o filósofo _ retorna à caverna e informa aos antigos companheiros a verdade que descobriu, eles resolvem a contradição de um modo bem simples: eles o matam! Afinal, ele só podia ser louco ou mentiroso; pois, todos os acorrentados “sabem” que a verdade é aquilo que se encontra naquela parede: eco e sombras...
Em nossa língua as palavras “fanático” e “fã” vêm de uma mesma raiz no latim: “Fanum” (relativo a um templo religioso). Já aquele que se encontrava à frente (“pro”) ou fora dele era “Profanum”, origem de nosso termo “profano”.
Mas, toda “língua” (idioma formal de um povo, manifestado oral e graficamente através de um sistema de vocabulário e sintaxe) inclui uma “linguagem” (um modo popular de se exprimir através da fala).
Assim, através da linguagem, o significado original de “Fanático” (“entusiasta”) adquiriu a conotação pejorativa de “desvairado, intolerante, que aceita cegamente preceitos de uma religião ou de doutrina política, ou age exageradamente em relação a uma pessoa, a um time de futebol, etc.”, enquanto que ao encurtamento dessa palavra para “Fã” atribuiu-se uma conotação amena, logo não pejorativa (admirador, apreciador).
É perda de tempo tentar argumentar com um “fanático” sobre as qualidades de seu time de futebol, sobre a interpretação de livros sagrados, ou sobre conteúdos do discurso do político. Porque ele “sabe” _ aprendeu na parede no fundo da caverna! _ que o time pelo qual torce é “o melhor”, que somente em sua religião ou seita se encontra “a salvação” e que “aquele” é o político que resolverá os problemas nacionais.
Nestes dias (de pandemia e de bipolarização política) proliferam apaixonadas discussões entre aqueles que se deixam dividir em "nós" e "eles", exaltando pensamentos convergentes e denegrindo os divergentes.
Que posso sugerir? Bem... uma alternativa consiste em estudar. Quem não estuda arrisca-se a acreditar que o que lhe dizem seja a verdade e a disseminar a mentira. A outra é evitar arriscar-se a responder; pois, o fanático vê, mas não enxerga; ouve, mas não escuta!
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* coronel da reserva e presidente do Conselho Superior da Academia de Letras João Guimarães Rosa da Polícia Militar.
(publicado originalmente pelo jornal "O Tempo" em 02/07/18. Atualizado ao tempo da pandemia pelo Covid 19)