Alcino Lagares*
Merece uma reflexão a decisão de enfrentar _ ou deixar de enfrentar _ alguém que me desafia, me ameaça, ou me ofende, física ou moralmente. Merece uma reflexão a emoção que fica, após a decisão tomada (qualquer que tenha sido ela); porque o que está em jogo aqui é o modo como eu vou me sentir depois!
Legalmente, uma pessoa que ofende a outra verbalmente encontra-se em delito de injúria (e como tal merece uma repreensão), do mesmo modo que a merece aquele que pratica uma agressão física. O problema é que, na maioria das vezes, quando nos defendemos verbalmente, acabamos por nos colocar na mesma posição do agressor: dois mal-educados em discussão, perturbando publicamente o sossego de outras pessoas!
Porém, uma decisão de não revidar uma agressão, seja ela física ou verbal, sempre poderá ser percebida de dois modos: como uma evidência de piedade de alguém que se sabe mais poderoso do que o outro; pois, “uma vitória suja é pior que uma derrota” (TSUNETOMO, Yamamoto. Hagakure, o livro do Samurai, Conrad Editora do Brasil Ltda., 2.ª edição, Pág. 110), ou como uma demonstração de covardia, nascida do medo de alguém que se sente frágil diante do outro (Ainda que num esforço de mascarar a covardia em roupagem de piedade, em busca de uma justificativa para a fuga diante do outro).
Por outro lado, se entro em confronto físico, ou verbal, com arruaceiros, nesta sociedade essencialmente urbana e repleta de normas em que vivemos, corro o risco de ser também tido nessa conta: um arruaceiro (e tal pecha deverá ser evitada a todo custo: não podemos perder de vista a circunstância de sermos respeitáveis “Aikidokas”, respeitáveis “Senseis”, professores, formadores de jovens _ adolescentes e adultos _, e a estes deveremos oferecer os melhores exemplos.
Oferecer a outra face ao agressor?
Comecemos pela agressão física, não provocada pelo próprio agredido: nesta cabe, moral e legalmente, a legítima defesa.
Morihei Ueshiba, fundador do Aikido, teria dito ser a interpretação ("oferecer a outra face", segundo a versão do evangelista Lucas), dada pelos hermeneutas do cristianismo a respeito da prédica de Jesus “(...) mas a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; (...)”, contida no Evangelho de MATEUS, filosoficamente contraditória em relação à própria essência do Cristianismo; pois, o ato de “oferecer” a outra face duplicaria o pecado do agressor, em vez de fazê-lo deixar de pecar! Porém, a interpretação correta da expressão “volta-lhe também a outra (face)” deve ser: “mostra-lhe a tua outra face” em vez de “oferece-lhe...” (ou seja: "mostra-lhe uma face poderosa, exigente de respeito, competente, capaz de fazer a agressão, em círculo, retornar ao ponto de partida").
Se você optar por não ofender nem agredir os outros, entretanto faltando com o respeito para consigo mesmo, a sua opção terá sido feita no sentido de respeitar os outros e se autoagredir. Se der maior importância aos outros do que a si próprio (e isso nada tem a ver com a piedosa atitude de alguém poderoso), estará transferindo aos outros o poder de fazer você feliz; estará se reprovando e se impedindo de ser o que é, para parecer que é o que os outros desejam que você seja; estará se anulando; estará esperando dos outros a aprovação e a consideração que jamais terá, porque você só será respeitado se tiver respeito próprio.
Parece ser “ponto pacífico” que, se alguém estiver sendo fisicamente agredido, ser-lhe-á absolutamente de direito revidar, desde que não exagere no uso dos meios a seu alcance (e, algumas vezes, mesmo com um meio desproporcional ao do agressor, desde que seja o único ao seu dispor): afinal, errado está o agressor, e não aquele que se defende da injusta agressão!
Nessa situação, muito ao contrário, seria um ato de clara covardia, a recusa de confronto:
“Mesmo que pareça certo que você perderá, contra-ataque. Nem a sabedoria nem a técnica têm lugar aqui. Um homem de verdade não pensa em vitória ou derrota. Ele se arremessa imprudentemente em direção a uma morte irracional. Ao fazer isso, você acordará de seus sonhos.” (TSUNETOMO, Yamamoto. Hagakure, o livro do Samurai, Op. Cit., Pág. 44).
A respeito das emoções que ficam após a decisão:
Se você se decidiu pelo confronto, foi porque não havia alternativa melhor. É bom que saiba que tudo pode acontecer nessas circunstâncias: desde coisa alguma, uma simples imobilização... uma luxação... uma fratura... até a morte (a sua, ou a do outro).
Se você morre, nada há para ser resolvido. Se o outro morre, você deverá estar realmente certo de que não havia alternativa...
Mas, se você está decidido a evitar o confronto, é importante libertar-se de emoções negativas (por exemplo: o ressentimento, e o ódio), porque são coisas que nascem da fraqueza e só afetam o fraco que as mantém: a impotência para a vingança e a permanência de um estado de rancor geram graves danos físicos à pessoa rancorosa e somente a essa, em consequência da química ruim que o organismo produz nessas circunstâncias _ A secreção de sucos gástricos (um fenômeno natural e necessário para transformar os alimentos em energia) pode corroer e até perfurar a mucosa do seu estômago quando você se deixa envolver pela raiva _ além de danos mentais e espirituais, provocando a perda de empenho do intelecto em processos de criatividade, e anulando ideais.
Ora, se você decidiu ignorar o agressor, em vez de enfrentá-lo, verbal ou fisicamente, lembre-se de que você decidiu assim porque o contrário faria você sentir-se mal. Logo, assuma inteiramente tal decisão, e esforce-se para esquecer que tal pessoa existe. Ignore-a por completo. Você deve estar convencido de que fez a coisa certa!
Verbalmente, é possível fazer Irimi-Tenkan ("entrar e girar", uma esquiva)?
Quando sou fisicamente atacado, faço Tenkan (uma esquiva com giro do corpo), harmonizo meus movimentos com os do agressor, e ele não me consegue atingir. Algumas vezes, faço Kiri Kaeshi ("cortar" em contra-ataque), ou Kiri Oroshi ("cortar" para baixo), ao mesmo tempo em que faço Tenkan; mas, o que poderia ser um Tenkan, em sentido verbal?
Ao ensinar sobre a “vitória”, o fundador do Aikido usou três termos: Agatsu, Masakatsu e Katsu Hayabi.
“Agatsu” significa “uma vitória”. Num esporte de lutas, por exemplo, a vitória é acontecimento passageiro. Se você “vence” alguém hoje, poderá ser derrotado por ele amanhã. Por isso, no Aikido, “Agatsu” significa vitória sobre “a violência” e não sobre “alguém” (vitória sobre a violência do outro, e não “sobre o outro”): então, é importante fazer com que o outro receba de volta (em círculo) seu ataque próprio ataque para compreender que é errado agredir.
Corresponde, verbalmente, em dizer o que ele deve ouvir: a verdade; porém através da ressignificação das palavras ditas por ele próprio.
É importante deixar claro que não estamos de acordo com as sandices que nos são ditas (ou as pessoas podem pensar que estamos de acordo com elas)!
Masakatsu é a vitória que alguém alcança sobre sua própria pessoa (olhar para dentro de si, perceber que é ali que se encontra o inimigo e assumir o compromisso de contribuir para tornar a humanidade melhor, na medida em que se tornar um ser humano melhor). A vitória que eu alcanço sobre a minha própria pessoa me torna melhor do que sou. Corresponde, numa decisão do potencial conflito verbal, a sentir-me bem, em paz comigo mesmo, pela escolha feita a respeito do que deve ser dito ao outro, e que eu tenha aprendido algo com isso.
Katsu Hayabi é a vitória da verdade absoluta e imutável, além do tempo e do espaço. É a compreensão, sem julgamentos, da natureza como ela é e dos relacionamentos como eles são. Corresponde a dar a resposta que o outro deve ouvir e encerrar o assunto imediatamente!
Onde quer que a violência se encontre instalada (inclusive _ e especialmente _em nossas próprias mentes), se for adotado o Aikido _ a filosofia, em torno da qual há uma prática marcial e não apenas um punhado de técnicas marciais _ certamente a violência se extinguirá.
O Aikido não reconhece a existência de “adversários” nem de “inimigos”. Portanto, suas técnicas não são treinadas para “derrubar pessoas” e não se destinam a “ganhar” ou “perder” lutas.
Uma vez que não existem inimigos nem adversários, não existem derrotas no Aikido. Existe, sim, um chamado à razão para aquele que, ainda preso aos cinco sentidos, agride e, em consequência, é imobilizado.
Eis o que penso a respeito da coragem e da covardia diante do outro.
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* Coronel QOR e conselheiro da Academia de Letras dos Militares Mineiros "Capitão-Médico João Guimarães Rosa". Contatos: cellagares@yahoo.com.br