A DISCRIMINAÇÃO DA MULHER
Alcino Lagares*
Espertalhões sempre estiveram presentes na história da humanidade, e mantiveram-se preparados para “demonstrar” uma necessária correspondência entre “desigualdades sociais” a partir de “diferenças individuais”, justificando-as, ora pela força, ora pela “divina vontade”, posicionando no ápice da estratificação social “seres especiais”, “superiores”, dotados de poderes_ em forma de “reis”, “senhores”, “alto clero” e “nobreza”... e nós, “os homens” _ e, na base, “seres inferiores”, destinados a servir àqueles, sob as denominações particulares de: “súditos”, “escravos”, “vassalos”, “povo”... e elas, “as mulheres”.
Embora tenhamos diferenças individuais _ brancos, negros, amarelos, miscigenados, judeus, cristãos, muçulmanos, budistas, homens... e mulheres _, somos semelhantes porque participamos da humanidade, e seremos tão “mais humanos” quanto mais percebermos, na alteridade, a igualdade humana.
Temos um corpo (nossa condição hilética), o qual, impulsionado pelo instinto de conservação, tem a necessidade inata de preservar e expandir a própria vida.
Quando somos dominados pelo corpo, desejamos o que não temos e não queremos perder o que temos. O psicólogo Alfred Adler (1870-1937) introduziu nos estudos de psicologia a “vontade de poder” (um sentimento de inferioridade que impele o ser humano à superação, em busca da superioridade), ideia já defendida por Friedrich Nietzsche (1844-1900) no campo filosófico.
É possível que uma das razões para a discriminação da mulher encontre-se na história das religiões (Judaísmo, Cristianismo, e Islamismo).
No Livro de Gênesis, Moisés relata que, na “divina criação”, todos os animais foram criados “machos e fêmeas”. Mas, para o surgimento da humanidade foi necessário que primeiro viesse o macho da espécie, o homem; e _ não importa se ele um dia seria “rei” ou “escravo” _, de uma costela deste, foi feita a fêmea da espécie, a mulher; portanto, a mais inferior das criaturas!
Também no famoso périplo de 40 anos (para percorrer pouco mais de quatrocentos quilômetros entre o Egito e Canaã), Moisés desceu do Monte Sinai, trazendo nas mãos duas pedras contendo as “Tábuas da Lei” (“Dez Mandamentos”, em dezessete versículos), as quais teriam sido escritas pelo “dedo de Deus”. O último versículo assim foi redigido:
“Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.”
A razão leva-nos a colocar em dúvida que Deus ditasse tal aberração e faz-nos inferir que a mulher (juntamente com o jumento, o boi, o escravo e a escrava) era uma propriedade e o “teu próximo” era um grande proprietário!
Posteriormente, sintetizado como “9.º Mandamento”, o versículo assim ficou: “Não desejar a mulher do próximo”.
Para que a discriminação social _ especialmente a da mulher _ seja abolida da humanidade, será necessário que sofismas político-religiosos que a criaram historicamente sejam extirpadas da mente humana, através da compreensão universal de sua irracionalidade; pois, é quando o ser humano (seja ele homem, ou mulher) se distingue dos animais por ter consciência de sua própria existência _ ocupando um corpo, mas não se confundindo com ele _ que adquire legitimidade para perceber a necessidade de encontrar um sentido para a vida, procurar a transcendência (a destinação noética) e _ somente aí _ assemelhar-se ao divino.
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*coronel da reserva e presidente do Conselho Superior da Academia de Letras João Guimarães Rosa da Polícia Militar de Minas Gerais.
E-mail: cellagares@yahoo.com.br
(publicado pelo jornal "O Tempo" em 09/03/18)