O POÇO
(UM PARADOXO EXISTENCIAL)
Alcino Lagares Côrtes Costa*
Desde a antiguidade, a humanidade tem sido dividida em camadas hierarquicamente superpostas (a estratificação social), o que corresponde a dizer que a distribuição dos direitos e deveres tem sido desigual historicamente. O mundo passou pela escravidão, pelo feudalismo, pelos estamentos, pelas castas e chegamos a uma “sociedade aberta de classes”.
Em 2018” (precedendo o Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça), conforme o relatório global da ONG “Oxfam”, as 26 pessoas mais ricas do mundo possuíam o correspondente à soma da riqueza dos 3,8 bilhões de seres humanos mais pobres (ou seja, de 50% da humanidade).
Façamos um intervalo e falemos de cinema: pessoas “maduras” que quiserem aproveitar o atual período de quarentena e assistir, pela Netflix, “O Poço” ("El hoyo" _ o buraco _, filme espanhol dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia) devem se preparar para ver cenas grotescas e cenário horroroso.
Nesse filme _ uma metáfora sobre ideologias, religião, justiça social, moral e ética no mundo da realidade _, pessoas encontram-se distribuídas, duas a duas, numa prisão vertical com níveis numerados de cima para baixo: no ápice um desejável nível “zero” e, abaixo de todos, o nível 333.
Há requinte na preparação e na qualidade da comida que é servida sobre uma plataforma móvel a partir do nível zero: um exigente e detalhista “Chef” e esmerados cozinheiros preparam comidas maravilhosas.
Mas, a prisão tem um fosso central, através do qual desce a plataforma com o resto da comida, a qual se estabiliza, embora por apenas alguns instantes, em cada um dos níveis inferiores, possibilitando que os prisioneiros comam rapidamente levando comida à boca com as mãos e alguns até subindo sobre a plataforma; ou seja, na medida em que desce a plataforma, os alimentos se tornam “restos de restos”, até chegar _ provavelmente sem nenhuma comida_ ao nível mais baixo.
Nesse ambiente, porém, um prisioneiro que carrega o livro “Dom Quixote” de Miguel de Cervantes (1547 – 1616) pensa em convencer os demais de que devem realizar, desde a camada superior, uma justa divisão da comida, para que esta chegue igualmente para todos.
O filme incentiva-nos a refletir sobre o paradoxo da dualidade existencial humana: o simbolismo espiritual num corpo repleto de instintos.
Voltemos ao mundo da realidade: a humanidade está vivendo um tempo de recolhimento imposto pela pandemia gerada pelo “Covid 19”.
Alguns pensam em ajudar os mais necessitados, outros pensam em se aproveitar da situação para elevar preços e aumentar seus lucros. Alguns pensam em proteger e salvar vidas, outros em proteger suas economias.
Nas últimas semanas, o humanismo levou israelenses e palestinos _ em conflitos armados desde 1988 _ a suspender agressões, a se unir e dividir fraternalmente máscaras cirúrgicas e aparelhos respiratórios.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo, vejo no noticiário que o governo dos EUA impede a exportação de máscaras cirúrgicas e importa equipamentos de proteção individual feitos na China, com a prioridade que lhe confere o estar “no andar de cima do poço”.
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* Coronel da reserva e presidente da Academia de Letras "João Guimarães Rosa" da Polícia Militar de Minas Gerais.
Contatos: cellagares@yahoo.com.br