Alcino Lagares Côrtes Costa*
Na parte introdutória de seu livro “As palavras e as coisas”, Michel Foucault (1926-1984) mostra, numa curiosa classificação de animais extraída de uma enciclopédia chinesa, uma definição de cães: “Animais (...) desenhados com um pincel muito fino feito de pelo de camelo.”
Em 1904, o fisiologista russo Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936), que recebera o Prêmio Nobel pela descoberta do reflexo condicionado, apresentou um enunciado a respeito de dois “sistemas de sinais”: o primeiro _ que nós compartilhamos com os animais _ refere-se à realidade objetiva e nos é dado pelos cinco sentidos exteroceptores. O segundo é exclusivo dos seres humanos: o simbolismo.
No universo simbólico, as palavras extrapolam a sonoridade (o primeiro sistema de sinais) e adquirem significado. É, portanto, uma necessidade do ser humano dar nomes às coisas.
A “língua” de um povo é manifestada, oral e graficamente, através de um sistema de vocabulário e sintaxe que são mantidos pela “norma culta” (a gramática normativa) enquanto a “linguagem” é impulsionada pela tecnologia, por regionalismos e por modismos.
O advento dos computadores acrescentou palavras ao nosso vocabulário ortográfico (exemplos: “Chat”, “cibercrime”, “email”, “internet”, “site”) e nós passamos a conjugar novos verbos e falar de lugares invisíveis; portanto, mesmo se algum leitor “deletar” este artigo, ele permanecerá “na nuvem”. Entendem?
No processo civilizatório da humanidade, em países mais evoluídos o ser humano adquiriu direito ao conhecimento que lhe permite raciocínio lógico, juízo crítico e autonomia, não se submetendo intelectualmente a afirmações de pessoas pouco ou nada letradas que se mantêm presas a preconceitos fundamentalistas que predominaram na Idade Média.
No século XXI, as comunicações se fazem “virtualmente” e em velocidade inimaginável há poucos anos, gerando choques entre preconceituosas tradições e novos modos de perceber e reconhecer a alteridade. Inevitavelmente chegaríamos _ e chegamos _ às questões relacionadas aos “tabus” sobre sexo e, consequentemente, sobre as palavras com as quais _ daqui para a frente _ a ele no referiremos.
É importante lembrar que não se pode confundir gênero (da palavra) com sexo (da pessoa):
“Um menino não é um adulto pequeno; é uma criança.”
Concordam? Pois, é: “Menino” é pessoa do sexo masculino e “criança” é palavra do gênero feminino.
Referindo-se aos “gêneros” das palavras, a gramática da Língua Portuguesa estabelece que os substantivos são de dois tipos: “biformes” (que apresentam duas formas para expressar os gêneros masculino e feminino: “o menino”, “a menina”) e “uniformes” (que apresentam apenas uma forma para representar os dois gêneros), sendo estes subdivididos em “Epiceno”, “Comum de dois gêneros” e “Sobrecomum”.
O substantivo “Epiceno”, precedido de artigo invariável, refere-se somente a animais de apenas um gênero. Para distingui-los, acrescentamos as palavras “macho” ou “fêmea”: “A cobra macho”, “O urubu fêmea”.
No substantivo “Comum de dois gêneros”, varia-se o artigo precedente: “O dentista”, “A dentista”, “O gerente”, “A gerente”.
No substantivo “Sobrecomum”, quer se refira a um homem ou a uma mulher, o artigo precedente não varia: “Maria é O cônjuge que ...”, “José é A vítima que ...”, “Dizem que Maria Madalena era O apóstolo mais...”.
Curiosamente, o exercício de uma presidência situa-se num lugar especial entre os substantivos biformes e uniformes. Como assim? É que o substantivo “presidente” é comum de dois gêneros (podendo referir-se ao homem ou à mulher que ocupar uma presidência) e “presidenta” (também constante do VOLP, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) é substantivo do gênero feminino (e se refere exclusivamente à mulher que ocupar uma presidência) mas não é substantivo biforme porque não existe o correspondente masculino.
Mas, eis-nos envolvidos com o “politicamente correto”: para demonstrar simpatia com “identidade de gênero” (significando, socialmente, o sexo com o qual uma pessoa se identifica, ou identifica outra pessoa), algumas autoridades governamentais têm recorrido _ em cerimônias oficiais _ ao uso de desinências para expressar gênero “neutro” de palavras. Numa recente solenidade, assim foi feita a saudação: “Boa tarde a todos, a todas e a ‘todes’”.
Surge aí uma dificuldade (para não dizer um erro), porque, embora a nossa gramática inclua “desinências nominais” para fazer distinção entre gêneros de substantivos, esta classe de “morfemas” somente distingue masculino e feminino: “o aluno”, “a aluna”.
Penso que, para inclusão na língua portuguesa do gênero “neutro”, harmonizando o (justo e inclusivo) propósito social referente às “identidades de gênero” e o “gênero das palavras” que lhes confira significado linguístico, seria necessário mudar a gramática e não simplesmente impor neologismos.
Talvez seja necessário um amplo acordo entre os países de Língua Portuguesa (desta vez ortográfico... e gramatical).
Que os linguistas e a Academia Brasileira de Letras se manifestem!
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*coronel QOR e conselheiro da Academia de Letras dos Militares Mineiros Capitão-Médico João Guimarães Rosa. E-mail: cellagares@yahoo.com.br