Vou começar narrando três eventos, para melhor poder explicar o “luto” e, neste, o papel da “negação”.
Dois dias depois de ter feito um violento discurso contra a ordem institucional, o presidente Bolsonaro assinou uma “nota oficial” frontalmente oposta à sua fala e passou a defender os demais poderes da República.
A mudança radical de atitude do presidente gerou apaixonadas declarações de seguidores seus, incapazes de compreender e, menos ainda, de aceitar que aquele recuo fosse “real”.
Certa noite, um jovem estudante de engenharia, de forte compleição física, procurou-me no Dojô pedindo uma “aula experimental” de Aikido (segundo ele, a única arte marcial que não tivera oportunidade de treinar e, conforme transcorresse, se matricularia). Permiti sua entrada e fiz com ele algumas das práticas de projeção de energia (“Zagi Kokyu”): ajoelhados de frente um para o outro, ele segurava-me pelos dois pulsos e empurrava o mais fortemente que podia para derrubar-me; mas, invariavelmente, era ele que caía. Invertemos: eu o segurei pelos dois pulsos... e, de novo, foi ele que caiu.
Ao término ele disse: “_ Vi que aconteceu, mas sei que é impossível isso acontecer”. E não se matriculou.
Acredito na possibilidade de ser verdadeira uma narrativa, segundo a qual, em 1492, índios americanos não podiam enxergar a aproximação dos navios espanhóis comandados pelo italiano Cristóvão Colombo, uma vez que navios não se assemelhavam a qualquer dos registros existentes em suas mentes; logo, “não poderiam existir”!
É que o “ser” existe, mas é reconstruído em nossas mentes segundo leis subjetivas. Ao processo mental de construir (ou de reconstruir) internamente a coisa existente denominamos Representação.
Por este raciocínio, podemos inferir que toda existência seja o produto da Representação.
Geralmente a ideia do luto está associada à morte de uma pessoa amada. Mas, o luto pode referir-se a qualquer perda significativa capaz de gerar um “vazio”: a despedida de um emprego, o engavetamento de um projeto, uma traição conjugal, religiosa, ou política e assim por diante.
O luto é, então, o processo necessário para preenchimento do vazio gerado pela perda.
Sob perspectiva psicobiológica, em situações suficientemente estressantes para gerar um sofrimento insuportável, nossas mentes nos fazem “adiar a aceitação da realidade”, percorrendo os cinco passos de um “caminho” mental: negação, revolta, negociação, depressão, e aceitação. O caminho se inicia pela negação, que consiste numa recusa (que vem das profundezas do inconsciente) de reconhecer a realidade “objetiva” de uma ocorrência:
“_Isso não pode estar acontecendo” (diz alguém ante a perda);
“_ Só bebo socialmente” (diz o adicto do alcoolismo).
Quando a pessoa em estado de sofrimento mental se sente com dificuldade para avançar de um trecho a outro nesse caminho deve procurar ajuda profissional numa das diversas formas de psicoterapias.
A atenção _ percepção consciente de estímulos (originados pelos pensamentos ou pelos sentidos) que são dirigidos ao nosso encéfalo e geram representações mentais através de alguma forma de processamento “preferencial” _ tem o papel fundamental de selecionar quais são as informações que devem ser atendidas por nossas mentes, para que possamos levar uma vida equilibrada.
Assim, para não ter de lidar com a realidade “objetiva”, a mente reprime o pensamento estressante, desvia a atenção (até que a pessoa possa “enxergar” o que ora apenas vê) e se agarra a uma ilusão.
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*coronel da reserva e presidente da Academia de Letras João Guimarães Rosa da Polícia Militar de Minas Gerais. E-mail: cellagares@yahoo.com.br