O SONHO DO PAPA FRANCISCO

O "I have a dream" do Papa Francisco

Não há erro algum no fato de que a nova exortação apostólica do Papa Francisco “A alegria do Evangelho”, publicada nesta terça-feira (26 de novembro) pelo Vaticano, equivale a um pedido de mudança bastante abrangente em várias frentes.

O comentário é de John L. Allen Jr. e publicado pelo National Catholic Reporter, 27-11-2013. A tradução de Isaque Correa.

Francisco aponta para uma reforma em diversas áreas, incluindo uma chamada imediata por “conversão do papado” em direção a uma “sensata descentralização”. O que inclui, ao menos, uma inversão aparentemente clara da política anterior: atribuir a autoridade para o ensino às conferências dos bispos, em contrariedade a uma decisão, de 1998, do Papa João Paulo II negando-lhes precisamente tal papel.

No entanto, há um sentido mais profundo em que “A alegria do Evangelho” está em clara continuidade com o predecessor de Francisco, Bento XVI, particularmente em sua encíclica social, de 2009, chamada “Caritas in Veritate”.

Com efeito, ambos os documentos constituem um assalto frontal não à doutrina ou à disciplina católicas, mas na sociologia católica contemporânea.

Bento XVI quis atacar a real divisão existente entre os fiéis Pró-vida da Igreja e seus membros da Justiça e Paz, enquanto Francisco está, agora, desafiando uma outra divisão frequentemente encontrada: aquela entre os católicos mais comprometidos com a nova evangelização e aqueles que se investem no evangelho social.

Para ser claro, nenhuma dessas fraturas tem algo a ver com o ensino católico oficial, com sua doutrina, que na verdade rejeita tanto uma quanto a outra. No entanto, elas têm tudo a ver com a vida real, com o dia a dia dos fiéis.

Tal como aconteceu com a “Caritas in Veritate”, agora os especialistas irão se debruçar sobre o documento “A alegria do Evangelho”, analisando-o profundamente, buscando desfazer o que a linguagem de Francisco possa ter deixado de implícito.

Em ambos os casos, a verdadeira novidade é que estes documentos são atos de síntese, tecendo em conjunto linhagens de pensamento católico, embora normalmente sejam mantidas em separado. Bento XVI insistia na relação orgânica entre o que chamou “ecologia humana”, com o que ele quis dizer o ensino da Igreja sobre questões tais como o aborto e o casamento, e “ecologia natural”, incluindo o meio ambiente. Tal como Francisco repete em “A alegria do Evangelho”, Bento sustentou que defender o nascituro e defender os pobres são dois lados de uma mesma moeda.

Mais uma vez, o Papa Francisco está tentando fazer a mesma coisa, unindo dois grupos de reflexão e energia normalmente associados a dois ambientes diferentes. No seu caso, são a “Nova Evangelização”, ou seja, o esforço lançado nos anos de João Paulo II para reacender o fogo missionário da Igreja, e o “Evangelho Social”, referindo-se ao engajamento católico com prol dos pobres, imigrantes e do meio ambiente, assim como a sua oposição à guerra, ao comércio de armas, à pena de morte e assim por em diante.

Francisco dedica uma seção inteira de seu texto ao que chama “a dimensão social da evangelização”. “Se esta dimensão não for devidamente explicitada”, escreve o pontífice, “corre-se sempre o risco de desfigurar o sentido a autêntico e integral da missão evangelizadora”, porque “tanto a pregação cristã quanto a vida devem ter um impacto na sociedade”.

O pontífice dá continuidade a suas reflexões, citando passagens bíblicas a respeito da preocupação para com os pobres, e pontualmente conclui: “É uma mensagem é tão clara, tão direta, tão simples e eloquente que nenhuma interpretação hermenêutica tem o direito de relativizar”.

Papa Francisco tem toda a razão em repreender várias das questões que deveriam ser de preocupação especial do cristão, incluindo a crescente desigualdade de renda, o aumento do desemprego e a situação dos migrantes e refugiados. Ele consegue empunhar um tanto de sua língua afiada ao ridicularizar uma “confiança vaga e ingênua” no funcionamento sacralizado do presente sistema econômico dominante e não deixa dúvidas de que os missionários cristãos devem ser agentes de mudança face a esta “cultura do descartável”.

Fazer os pobres se sentirem acolhidos, como se estivessem em casa, diz ele, representa “a maior e mais eficaz apresentação da boa nova do Reino”.

Ao mesmo tempo em que pede por um maior comprometimento com o diálogo ecumênico e inter-religioso, o Papa Francisco está explicitamente enunciando que a evangelização também significa trazer às pessoas a fé de Jesus Cristo.

Escreve o papa: “Com efeito, um amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de a apresentar, de a tornar conhecida, que amor seria?”

Eis a questão: a combinação entre proclamar a fé e vivê-la pode parecer natural e convincente. Porém, não é assim que frequentemente as coisas funcionam nas bases da Igreja.

A partir de minha experiência pessoal, posso dizer que se pode gastar muito tempo em conferências e em simpósios sobre a nova evangelização sem ter que ouvir, digamos, sobre a guerra da Síria, sobre os custos humanos da crise na zona do euro, ou mesmo sobre o impacto do aquecimento global. Da mesma forma, podemos participar de um grande encontro de pastoral social sem ter muito presente os sacramentos, ou uma prática da vida de oração, devoções marianas ou crescimento pessoal.

Sem dúvida, isso é uma generalização. Todavia, qualquer um que tenha alguma relação com a Igreja Católica irá reconhecer o cheiro de verdade aí.

Tanto na Renascença católica em apologética e na evangelização quanto no ativismo social da Igreja, os protagonistas consideram, às vezes, que a outra parte está pronta para uma distração. Frequentemente, os evangelizadores dizem que uma organização não governamental (ONG) ou um partido político podem lutar contra o desemprego, mas só a Igreja pode pregar Cristo. Os ativistas sociais respondem, insistindo que a retórica a respeito de um Deus de amor significa pouca coisa àquelas pessoas cujas vidas estejam violadas pela miséria e injustiça.

Do ponto de vista da doutrina católica, ambos estão absolutamente corretos, o que nos leva a perguntar o que eles podem ser capazes de realizar trabalhando juntos. A promoção daquele espírito de causa comum, alguém poderia dizer, é o coração do documento “A alegria do Evangelho”.

João Paulo II costumava invocar a imagem de uma Igreja que “respira com os dois pulmões”, imagem a qual ele usou para falar sobre a unidade entre o cristianismo ocidental e oriental. Bento XVI tentou aplicar isso na relação entre o trabalho do movimento Pró-vida e aquele da justiça social obtendo resultados limitados, devemos acrescentar,

A ambição mais profunda do documento “A alegria do Evangelho” reside no sonho do Papa Francisco de ter uma Igreja que respire com os dois pulmões, no que diz respeito à missão e à justiça, unindo sua preocupação com a pobreza tanto espiritual quanto a de carne e osso. Em certo sentido, o drama deste papado encontra-se na forma como ele pode ser capaz de realizar tudo isso.

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Francisco. “Sempre me tocou a pergunta: Por que as crianças morrem?”

O que significa “morrer em Cristo”? Como toda quarta-feira, o Santo Padre se encontrou com milhares de fiéis e peregrinos – hoje, mais de setenta mil – na Praça de São Pedro para a Audiência Geral. Francisco concluiu seu ciclo de reflexões sobre o Credo, centrando-se na “ressurreição da carne”, explicando o sentido cristão da morte e a importância de se preparar bem “para morrer em Cristo”.

O Papa argentino realizou estas afirmações durante a audiência geral celebrada na Praça de São Pedro, abarrotada por dezenas de milhares de pessoas apesar do frio reinante, que obrigou o Pontífice a colocar casaco e cachecol brancos.A reportagem é publicada por Religión Digital, 27-11-2013. A tradução é do Cepat.

“Felicidades, porque vocês são valentes, com este frio na praça, vocês verdadeiramente são valentes”, começou o Papa sua audiência.

Em seguida, Jorge Bergoglio começou sua catequese sobre o conceito católico de morte. O Bispo de Roma observou que “para quem vive como se Deus não existisse, a morte é uma ameaça constante, porque supõe o fim do mundo presente”. No entanto, o Papa constatou que o desejo de vida dentro de nós é mais forte até mesmo que o medo da morte, dizendo-nos que não é possível que tudo se acabe em nada.

“A resposta certa para esta sede de vida é a esperança na ressurreição futura”. Para sermos capazes de aceitar o momento último da existência com confiança, como abandono total nas mãos do Pai, necessitamos nos preparar, insistiu o Pontífice, e a melhor forma de nos dispor para uma boa morte é “olhar face a face as chagas corporais e espirituais de Cristo nos mais fracos e necessitados, que são aqueles aos quais Ele se identificou para manter vivo e ardente o desejo de ver um dia, face a face, as chagas transfiguradas do Senhor ressuscitado”.

Antes do início da Audiência Geral, o Papa se encontrou, na sala Paulo VI, com um grupo de 50 crianças que sofrem a síndrome de Rett, acompanhadas por seus familiares. A síndrome de Rett é uma patologia progressiva do desenvolvimento neurológico, que afeta quase exclusivamente meninas. Francisco saudou e acariciou com afeto estas pequenas, uma por uma. O breve, mas intenso encontro, encerrou-se com a oração de uma Ave-Maria e a benção final.

As meninas afetadas pela síndrome de Rett, uma enfermidade neurológica que atinge em maior média as meninas, receberam as carícias do Papa argentino durante um encontro “simples, mas emocionante”, segundo informou a Rádio Vaticano.

O encontro, que ocorreu na sala Paulo VI, finalizou-se com a oração de uma Ave-Maria e com a benção final.

O Papa argentino demonstrou uma grande queda pelos enfermos e pelas crianças, a quem abraça ou beija em todas as suas aparições públicas.

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A imprensa mundial se rende à Exortação A alegria do Evangelho, de Francisco

A primeira Exortação Apostólica do Papa Francisco com o nome Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho) foi divulgada nesta terça-feira pelo Vaticano, e o documento de 142 páginas foi objeto de análise dos principais jornais do mundo, que concordaram em destacar sua força e seu caráter “revolucionário”, e inclusive um jornal o apelidou de “ataque ao capitalismo global”.

A reportagem está publicada no sítio Religión Digital, 27-11-2013. A tradução é de André Langer.

O jornal britânico The Guardian disse, já na manchete, que o Papa Francisco chama o capitalismo sem limites de “tirania e insta ricos a compartilharem a riqueza”.

Para o renomado jornal de esquerda, o documento “equivale a uma plataforma oficial de seu papado” e nele Francisco “vai mais longe que em seus comentários anteriores criticando o sistema econômico mundial, a idolatria do dinheiro, e pedindo aos políticos para garantirem a todos os cidadãos trabalho digno, educação e saúde”.

O New York Times, por sua vez, sustenta que, com a publicação da Evangelii Gaudium, Francisco “anunciou seu programa com suas próprias palavras, o que reafirma a impressão de que tem a intenção de sacudir a Igreja da autocomplacência e comprometer todos os católicos com seu ambicioso projeto de renovação mediante o enfrentamento das necessidades reais das pessoas menos favorecidas”.

O emblemático jornal diz, além disso, que o documento é um “desafio à hierarquia do Vaticano” e que está “indissoluvelmente ligado à sua análise do que não está bem com o mundo”, citando suas denúncias à “ditadura de um sistema econômico mundial” e “um mercado livre que perpetua a desigualdade e devora o que é frágil, incluindo os seres humanos e o meio ambiente”.

Outro jornal norte-americano, o influente Wall Street Journal, também aborda a primeira Exortação Apostólica de Francisco, e sustenta que o Bispo de Roma “convocou a Igreja para renovar seu enfoque nos pobres e lançou um ataque contra o capitalismo global”.

O artigo do Journal expressa que a linguagem utilizada pelo Papa argentino no texto é “inusitadamente direta”, e que este manifesto “reúne muitos dos temas que enfatizou desde a sua eleição”.

Apesar de destacar o aspecto do enfrentamento em sua mensagem, a nota destaca que em temas como o aborto e a ordenação de mulheres, “Francisco não se afastou da doutrina tradicional da Igreja”.

No entanto, o jornal El País, da Espanha, decidiu usar as próprias palavras de Francisco na manchete (“A economia da exclusão e da desigualdade mata”) e afirma que com a Evangelii Gaudium Francisco “deixa claro que não gosta da Igreja atual, assim como do mundo que a rodeia”.

De acordo com a análise do matutino espanhol, Francisco vê uma Igreja católica “salpicada de inveja, ciúmes e guerras, preocupada excessivamente consigo mesma, e um mundo em que triunfa a economia que mata através da exclusão e da desigualdade”.

“Por isso, o Papa fixa o horizonte do seu Papado sobre dois trilhos paralelos. Uma reforma da Igreja, que inclua uma conversão do próprio papado, e um apelo urgente aos políticos para que lutem contra a tirania do sistema econômico”, opina o El País, concordando com outro jornal espanhol, El Mundo, que enfoca na mensagem de Francisco a favor dos pobres.

O jornal Le Monde, ao contrário, destaca a mensagem de Francisco pedindo a flexibilização dos mandatos morais, intitulando que o Papa “chama a Igreja para sair do catálogo dos pecados”.

Para o jornal francês, o documento que qualifica de “roteiro oficial de seu pontificado”, leva o selo de Francisco, já que, ao contrário da Encíclica sobre a fé, assinada em conjunto com Bento XVI, publicada em junho passado, este trabalho “reflete sua visão de como vê o mundo”.

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Um guia para a Evangelii gaudium

"A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus": assim começa a Evangelii gaudium, com a qual o Papa Francisco aborda o tema do anúncio do Evangelho no mundo de hoje. É um apelo a todos os batizados, sem distinções de papel, para que levem aos outros o amor de Jesus em um "estado permanente de missão" (25), vencendo "o grande risco do mundo atual", o de cair em "uma tristeza individualista" (2).

A reportagem é de Aldo Maria Valli, publicada no sítio Vino Nuovo, 26-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O papa convida a "recuperar o frescor original do Evangelho". Jesus não deve ser aprisionado dentro de "esquemas enfadonhos" (11). É preciso "uma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão" (25) e uma reforma das estruturas eclesiais para que "todas elas se tornem mais missionárias" (27). Nesse plano, Francisco entra no jogo em primeira pessoa. De fato, ele pensa também em uma "conversão do papado", para que seja "mais fiel ao significado que Jesus Cristo pretendeu dar-lhe e às necessidades atuais da evangelização".

O papel das Conferências Episcopais deve ser valorizado realizando concretamente aquele "senso de colegialidade" que até agora ainda não se concretizou plenamente (32). Mais do que nunca é necessária "uma salutar descentralização" (16) e, nessa obra de renovação, não é preciso ter medo de rever costumes da Igreja "não diretamente ligados ao núcleo do Evangelho" (43).

O verbo posto no centro da reflexão é "sair". Que as Igrejas tenham em todos os lugares "as portas abertas" para que todos aqueles que estão em busca não encontrem "a frieza de uma porta fechada". As portas dos sacramentos também nunca devem se fechar. A própria Eucaristia "não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos". Isso determina "também consequências pastorais, que somos chamados a considerar com prudência e audácia" (47). Muito melhor uma Igreja ferida e suja, que sai pelas ruas, do que uma Igreja prisioneira de si mesma. Que não se tenha medo de deixar se inquietar pelo fato de que muitos irmãos vivem sem a amizade de Jesus (49).

Nesse caminho, a maior ameaça é aquele "pragmatismo cinzento da vida quotidiana da Igreja, no qual aparentemente tudo procede dentro da normalidade, mas na realidade a fé vai-se deteriorando" (83). Não devemos nos deixar levar por um "pessimismo estéril" (84). O cristão sempre deve ser sinal de esperança (86), através da "revolução da ternura" (88).

Francisco não esconde a discordância com relação a quem "se sente superior aos outros", por ser "irredutivelmente fiel a um certo estilo católico próprio do passado" e, "em vez de evangelizar, classificam os demais". Claro também é o julgamento negativo com relação àqueles que têm um "cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, mas não se preocupam que o Evangelho adquira uma real inserção no povo fiel de Deus e nas necessidades concretas da história" (95). Essa "é uma tremenda corrupção, com aparências de bem. (…) Deus nos livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais ou pastorais!" (97).

A pregação tem um papel fundamental. As homilias devem ser breves e não devem ter o tom de lição (138). Aqueles que pregam devem falar aos corações, evitando o moralismo e a doutrinação (142). O pregador que não prepara "é desonesto e irresponsável" (145). Que a pregação ofereça "sempre esperança" e não deixe "prisioneiros da negatividade" (159).

As comunidades eclesiais devem se guardar da inveja e do ciúme. "Quem queremos evangelizar com esses comportamentos?" (100). De fundamental importância é fazer crescer a responsabilidade dos leigos, até agora mantidos "à margem das decisões" por causa de um "excessivo clericalismo" (102).

Também é importante "ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja", em particular "nos vários lugares onde se tomam as decisões importantes" (103). Diante da escassez de vocações, "mão se podem encher os seminários com base em qualquer tipo de motivações" (107).

Além de ser pobre e para os pobres, a Igreja desejada por Francisco é corajosa em denunciar o atual sistema econômico, "injusto na sua raiz" (59). Como disse João Paulo II, a Igreja "não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça" (183).

O ecumenismo é "um caminho imprescindível da evangelização". Devemos sempre aprender com os outros. Por exemplo "no diálogo com os irmãos ortodoxos, nós, os católicos, temos a possibilidade de aprender algo mais sobre o significado da colegialidade episcopal e sobre a sua experiência da sinodalidade" (246). O diálogo inter-religioso, por sua vez, é "uma condição necessária para a paz no mundo " e não obscurece a evangelização (250-251).

Na relação com o mundo, que o cristão sempre dê razão da própria esperança, mas não como um inimigo que aponta o dedo e condena (271). "Só pode ser missionário quem se sente bem, procurando o bem do próximo, desejando a felicidade dos outros" (272). "Se consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom da minha vida" (274).

A ''encíclica transversal'' de Francisco. Artigo de Massimo Faggioli

"O título representa bem as duas fontes às que se refere o programa da nova evangelização (termo, aliás, raramente usado no documento). Trata-se da constituição pastoral do Vaticano II, Gaudium et spes (1965), e a Evangelii nuntiandi, de Paulo VI (1975). É a reabilitação pública de um magistério conciliar e pós-conciliar particularmente negligenciado durante o pontificado de Bento XVI e na teologia que fez carreira eclesiástica nos últimos anos".

A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Saint Paul, nos EUA. O artigo foi publicado no jornal Europa, 27-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Segundo Faggioli, "a Evangelii gaudium representa uma mudança de horizonte especialmente para a filosofia inspiradora do pontificado. Em uma passagem tão breve quanto afiada, Francisco afirma que a realidade é mais forte do que as ideias. É um adeus ao neoplatonismo típico do pontificado anterior".

Eis o texto.

Depois das muitas declarações e dos gestos realizados pelo Papa Francisco desde os primeiros minutos do seu pontificado, a exortação apostólica Evangelii gaudium, datada de 24 de novembro e publicada nessa terça-feira, é o primeiro e verdadeiro documento programático.

O título representa bem as duas fontes às que se refere o programa da nova evangelização (termo, aliás, raramente usado no documento). Trata-se da constituição pastoral do Vaticano II, Gaudium et spes (1965), e a Evangelii nuntiandi, de Paulo VI (1975). É a reabilitação pública de um magistério conciliar e pós-conciliar particularmente negligenciado durante o pontificado de Bento XVI e na teologia que fez carreira eclesiástica nos últimos anos.

As citações do antecessor existem, como de João Paulo II, mas a estrutura intelectual é muito mais conciliar e pós-conciliar do que animado pelo ceticismo com relação à "opção preferencial pelos pobres" – ceticismo (quando não cinismo) que reinou até poucos meses atrás no magistério oficial.

Mas a Evangelii gaudium do Papa Francisco tem uma visão transversal com relação às trincheiras que foram se soldando ao longo das últimas décadas. De um lado, abre a uma visão social da Igreja, pobre para os pobres, necessitada de reforma (incluindo o papado), mais colegial (com uma atenção particular às conferências episcopais), mais aberta às várias formas de ministério, menos clerical.

Sobre a questão da justiça social, Francisco se coloca claramente à esquerda de Obama e de toda a esquerda parlamentar mundial, com um pedido radical de regulamentação do mercado para sanar as crescentes desigualdades e uma acusação contra as ideologias do liberalismo trickle down.

Por outro lado, Francisco não muda a posição da Igreja sobre o aborto, que não é verdadeiro progressismo, e sobre a ordenação de mulheres "que não está em discussão". O Papa Francisco usa uma linguagem mais inclusiva do que no passado, mas, substancialmente, vê nos pedidos para a ordenação de mulheres o risco de um maior, e não menor, clericalismo na Igreja: "O sacerdócio reservado aos homens, como sinal de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que não se põe em discussão, mas pode tornar-se particularmente controversa se se identifica demasiado a potestade sacramental com o poder".

Mas esse argumento não aplacará as teólogas feministas, que poderiam ver em Francisco uma substancial continuidade com a "teologia do corpo" e o "gênio feminino" de João Paulo II, e uma retórica da diferença por muito tempo usada para manter o sistema patriarcal na Igreja.

A Evangelii gaudium representa uma mudança de horizonte especialmente para a filosofia inspiradora do pontificado. Em uma passagem tão breve quanto afiada, Francisco afirma que a realidade é mais forte do que as ideias. É um adeus ao neoplatonismo típico do pontificado anterior, seja quanto a visões de Igreja, seja quanto a concepções político-sociais. Em particular, Francisco nota entre os "sinais dos tempos" a crise do compromisso em favor das causas comuns, as que transcendem o interesse pessoal. Isso faz de Francisco um papa não assimilável nem à cultura liberal, nem à progressista nas suas formas individualistas e libertárias.

É uma oportunidade para pôr fim às "guerras culturais" que devastaram a Igreja nos últimos anos – uma situação à qual a Evangelii gaudium se refere diretamente. Resta saber o quanto esse documento poderá fazer para construir uma ponte entre as duas almas diferentes do catolicismo, a tradicionalista-neoconservadora e a social-liberal.

A recepção de Francisco será particularmente delicada na Igreja mais ideologizada e polarizada, a norte-americana. Em uma discussão pública em Baltimore há apenas três dias, diante da vasta plateia da convenção da American Academy of Religion, o católico neoconservador norte-americano por excelência, George Weigel, tinha oferecido uma visão meramente "continuísta" de Francisco com João Paulo II e Bento XVI. Resta saber se a Evangelii gaudium será suficiente para convencer Weigel e todos os neoconservadores e neoliberais que Francisco é algo novo e diferente dos 35 anos de Wojtyla-Ratzinger.

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Para Francisco, ''esta economia mata''

Está contida em 224 páginas a "revolução gentil" do Papa Francisco. A sua Exortação Apostólica Evangelii gaudium é um verdadeiro manifesto do seu pontificado. Formalmente, é dedicada à "nova evangelização", ao término do Ano da Fé, e a como anunciar o Evangelho ao mundo de hoje, mas nos cinco capítulos o Papa Francisco não só indica um modelo preciso de Igreja "aberta", "alegre", que saiba encontrar os distantes, fiel ao Evangelho e com uma relação preferencial com os pobres. Que saiba também sair da sua autorreferencialidade, do risco da mundanidade e que seja aberta à mudança. Ele expressa um ponto de vista preciso sobre a crise global e sobre como responder à demanda de verdadeira justiça e de paz. A sua Exortação não é um documento político, mas se refere a um ponto de vista preciso ao que ofende a dignidade da pessoa e dos povos.

A reportagem é de Roberto Monteforte, publicada no jornal L'Unità, 26-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Às questões sociais, Bergoglio dedica dois dos cinco capítulos do documento, o segundo e o quarto. Capta-se a experiência vivida na sua Argentina atingida duramente pela crise econômica internacional na sua crítica explícita ao "fetichismo do dinheiro" e "à ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano", versão nova e implacável da "adoração do antigo bezerro de ouro".

Ele critica o atual sistema econômico que "é injusto na sua raiz" (59), "esta economia que mata" porque prevalece a "lei do mais forte". Ele volta à cultura do "descartável" que criou "algo novo" e dramático: "Os excluídos não são 'explorados', mas resíduos, 'sobras'" (53). Enquanto não se resolverem radicalmente os problemas dos pobres, renunciando "à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social – insiste –, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum". E indica na "desigualdade social" as raízes dos males sociais.

A Igreja não pode ficar indiferente a tais injustiças. "A economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos". Ele dedica páginas à denúncia da "nova tirania invisível, às vezes virtual" em que vivemos, um "mercado divinizado", onde reinam a "especulação financeira", "corrupção ramificada", "evasão fiscal egoísta" (56).

Ele lembra como a posse privada dos bens se justifica "para mantê-los e aumentá-los", mas "de modo a servirem melhor o bem comum". As reivindicações sociais, que têm a ver com a distribuição de renda, com a inclusão social dos pobres e com os direitos humanos – observa –, não podem ser sufocadas pelo pretexto de construir uma efêmera paz "para uma minoria feliz".

Ele pede justiça verdadeira e não poupa o "bispo de Roma". Ele convida a cuidar dos mais fracos: "os sem teto, os toxicodependentes, os refugiados, os povos indígenas, os idosos cada vez mais sós e abandonados" (210) e os migrantes, pelos quais exorta os países "a uma abertura generosa" (210). Ele fala das vítimas do tráfico e das novas formas de escravidão: "Nas nossas cidades, está instalado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as mãos cheias de sangue devido a uma cômoda e muda cumplicidade" (211).

Ele lembra o drama das mulheres duplamente pobres que "sofrem situações de exclusão, maus-tratos e violência" (212). Nessa defesa da dignidade da vida humana, o papa confirma a condenação do aborto. "Não é opção progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana".

Ele acrescenta, no entanto, que "temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras, nas quais o aborto lhes aparece como uma solução rápida para as suas profundas angústias". Ele reivindica o direito e o dever da Igreja de intervir sobre esses temas e pede a Deus "que cresça o número de políticos capazes de sanar as raízes profundas e não a aparência dos males do nosso mundo, políticos que tragam verdadeiramente no coração a sociedade, o povo, a vida dos pobres".

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A “regra pastoral” de Francisco

Intitula-se Evangelii Gaudium, a alegria do Evangelho. É quilométrica e enciclopédica, mas com uma escala precisa das prioridades. Na sequência, apresentamos os parágrafos chaves, com uma passagem referida ao aborto.

A reportagem é de Sandro Magister e publicada no sítio Chiesa.it, 26-11-2013. A tradução é de André Langer.

“Uma pastoral missionária não deve ficar obcecada com a transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir”.

Isto foi dito pelo Papa Francisco na entrevista concedida à revista La Civiltà Cattolica em agosto passado.

Repetiu estas mesmas palavras, literalmente, na imponente Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, promulgada no dia 24 de novembro, verdadeira e propriamente a “regra pastoral” do seu pontificado.

Mas com uma diferença importante.

Enquanto na entrevista publicada na La Civiltà Cattolica o expeditivo do enunciado havia dado a impressão de uma mudança brusca de linha do atual Papa em relação aos seus predecessores sobre questões capitais, como o aborto e o casamento homossexual, na Evangelii Gaudium, pelo contrário, Francisco desenvolve a argumentação em seis parágrafos, com a evidente vontade de desfazer qualquer equívoco. E mais adiante dedica outros dois parágrafos esclarecedores especificamente ao tema do aborto.

Comparando os dois textos, estes assumem hoje o aspecto de um esboço, no primeiro caso, e de uma argumentação completa, no segundo caso.

Na entrevista concedida à La Civiltà Cattolica o Papa Jorge Mario Bergoglio havia se expressado deste modo:

“Não podemos seguir insistindo apenas em questões referentes ao aborto, ao casamento homossexual ou ao uso de anticoncepcionais. É impossível. Eu falei muito sobre estas questões e recebi reprovações por isso. Mas quando se fala destas coisas é preciso fazê-lo em um contexto. Além disso, já conhecemos a opinião da Igreja e eu sou filho da Igreja, mas não é necessário estar falando destas coisas sem cessar. Os ensinamentos da Igreja, sejam dogmáticos ou morais, não são todos equivalentes. Uma pastoral missionária não deve ficar obcecada para transmitir de modo desarticulado um conjunto de doutrinas para impô-las insistentemente. O anúncio missionário se concentra no essencial, no necessário, que, por outro lado, é o que mais apaixona e atrai, o que mais faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús. Temos, portanto, que encontrar um novo equilíbrio, porque de outra maneira o edifício moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas, de perder o frescor e o perfume do Evangelho.”

E na sequência está o modo como se expressou na Evangelii Gaudium.

3. A partir do coração do Evangelho

34. Se pretendemos colocar tudo em chave missionária, isso se aplica também à maneira de comunicar a mensagem. No mundo atual, com a velocidade das comunicações e a seleção interessada dos conteúdos feita pelos meios de comunicação, a mensagem que anunciamos corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns dos seus aspectos secundários. Consequentemente, algumas questões que fazem parte da doutrina moral da Igreja ficam fora do contexto que lhes dá sentido. O problema maior ocorre quando a mensagem que anunciamos parece então identificada com tais aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo. Portanto, convém ser realistas e não dar por suposto que os nossos interlocutores conhecem o horizonte completo daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar o nosso discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere sentido, beleza e fascínio.

35. Uma pastoral em chave missionária não deve ficar obcecada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir. Quando se assume um objetivo pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a todos sem exceções nem exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade, e assim se torna mais convincente e radiosa.

36. Todas as verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma fé, mas algumas delas são mais importantes por exprimir mais diretamente o coração do Evangelho. Neste núcleo fundamental, o que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado. Neste sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que existe uma ordem ou “hierarquia” das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente. Isto é válido tanto para os dogmas da fé como para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina moral.

37. São Tomás de Aquino ensinava que, também na mensagem moral da Igreja, há uma hierarquia nas virtudes e ações que delas procedem. Aqui o que conta é, antes de mais nada, a fé que age pelo amor (Gl 5, 6). As obras de amor ao próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça interior do Espírito: O elemento principal da Nova Lei é a graça do Espírito Santo, que se manifesta através da fé que opera pelo amor. Por isso afirma que, relativamente ao agir exterior, a misericórdia é a maior de todas as virtudes: Em si mesma, a misericórdia é a maior das virtudes; na realidade, compete-lhe debruçar-se sobre os outros e – o que mais conta – remediar as misérias alheias. Ora, isto é tarefa especialmente de quem é superior; é por isso que se diz que é próprio de Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua omnipotência.

38. É importante tirar as consequências pastorais desta doutrina conciliar, que recolhe uma antiga convicção da Igreja. Antes de mais nada, deve-se dizer que, no anúncio do Evangelho, é necessário que haja uma proporção adequada. Esta reconhece-se na frequência com que se mencionam alguns temas e nas acentuações postas na pregação. Por exemplo, se um pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e na catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa que da Palavra de Deus.

39. Tal como existe uma unidade orgânica entre as virtudes que impede de excluir qualquer uma delas do ideal cristão, assim também nenhuma verdade é negada. Não é preciso mutilar a integridade da mensagem do Evangelho. Além disso, cada verdade entende-se melhor se a colocarmos em relação com a totalidade harmoniosa da mensagem cristã: e, neste contexto, todas as verdades têm a sua própria importância e iluminam-se reciprocamente. Quando a pregação é fiel ao Evangelho, manifesta-se com clareza a centralidade de algumas verdades e fica claro que a pregação moral cristã não é uma ética estóica, é mais do que uma ascese, não é uma mera filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros. O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. Este convite não deve ser obscurecido em nenhuma circunstância! Todas as virtudes estão ao serviço desta resposta de amor. Se tal convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso pior perigo; é que, então, não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas. A mensagem correrá o risco de perder o seu frescor e já não ter o perfume do Evangelho.

[...]

213. Entre estes seres frágeis, de que a Igreja quer cuidar com predileção, estão também os nascituros, os mais inermes e inocentes de todos, a quem hoje se quer negar a dignidade humana para poder fazer deles o que apetece, tirando-lhes a vida e promovendo legislações para que ninguém o possa impedir. Muitas vezes, para ridicularizar jocosamente a defesa que a Igreja faz da vida dos nascituros, procura-se apresentar a sua posição como ideológica, obscurantista e conservadora; e, no entanto, esta defesa da vida nascente está intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano. Supõe a convicção de que um ser humano é sempre sagrado e inviolável, em qualquer situação e em cada etapa do seu desenvolvimento. É fim em si mesmo, e nunca um meio para resolver outras dificuldades. Se cai esta convicção, não restam fundamentos sólidos e permanentes para a defesa dos direitos humanos, que ficariam sempre sujeitos às conveniências contingentes dos poderosos de turno. Por si só a razão é suficiente para se reconhecer o valor inviolável de qualquer vida humana, mas, se a olhamos também a partir da fé, toda a violação da dignidade pessoal do ser humano clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa ao Criador do homem.

214. E precisamente porque é uma questão que mexe com a coerência interna da nossa mensagem sobre o valor da pessoa humana, não se deve esperar que a Igreja altere a sua posição sobre esta questão. A propósito, quero ser completamente honesto. Este não é um assunto sujeito a supostas reformas ou modernizações. Não é opção progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana. Mas é verdade também que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras, nas quais o aborto lhes aparece como uma solução rápida para as suas profundas angústias, particularmente quando a vida que cresce nelas surgiu como resultado duma violência ou num contexto de extrema pobreza. Quem pode deixar de compreender estas situações de tamanho sofrimento?

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Francisco e o vento contrário da Cúria. Artigo de Hans Küng

O Papa Francisco dispõe das necessárias qualidades para liderar como capitão o navio da Igreja através das tempestades destes tempos: a confiança dos fiéis lhe servirá de apoio. Ele terá contra ele o vento da Cúria e, muitas vezes, deverá avançar em ziguezague. A Evangelii gaudium é uma etapa importante nesse sentido, mas certamente não é o ponto de chegada.

A opinião é do teólogo suíço-alemão Hans Küng, em artigo publicado pelo jornal Corriere della Sera, 27-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A reforma da Igreja prossegue: na exortação apostólica Evangelii gaudium, o Papa Francisco reitera não só a sua crítica ao capitalismo e ao domínio do dinheiro, mas também se declara inequivocamente favorável a uma reforma eclesiástica "em todos os níveis". Ele luta concretamente por reformas estruturais, tais como a descentralização para as dioceses e paróquias, uma reforma do ministério de Pedro, a reavaliação dos leigos e contra a degeneração do clericalismo, por uma eficaz presença feminina na Igreja, especialmente nos órgãos decisionais. Declara-se também expressamente favorável ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso, especialmente com o judaísmo e o Islã.

Tudo isso encontrará um amplo consenso muito além do âmbito da Igreja Católica. A recusa indiscriminada do aborto e do sacerdócio feminino deverão despertar críticas. Mostram os limites dogmáticos desse papa. Ou talvez Francisco sofre as pressões da Congregação da Doutrina da Fé e do seu prefeito, o arcebispo Gerhard Ludwig Müller?

Este último manifestou a sua própria posição ultraconservadora em uma longa intervenção no L'Osservatore Romano (23 de outubro de 2013), em que reitera a exclusão dos sacramentos dos divorciados em segunda união. Dado o caráter sexual da sua relação, eles vivem presumivelmente no pecado, a menos que convivam "como irmão e irmã" (!). Como bispo de Regensburg, Müller, fonte de inúmeros conflitos com párocos, teólogos, órgãos leigos e o Comitê Central dos Católicos Alemães pelas suas posições ultraclericais, era discutido e mal visto. O fato de que, apesar disso, ele foi nomeado pelo Papa Ratzinger, na qualidade de fiel defensor, além de curador da sua opera omnia, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, não surpreendeu tanto quanto ter sido logo confirmado nesse cargo pelo Papa Francisco.

E os observadores, preocupados, já se perguntam se o Papa Emérito Ratzinger, por meio do arcebispo Müller e de Georg Gänswein, seu secretário, também ele nomeado arcebispo e prefeito da Casa Pontifícia, efetivamente não age como uma espécie de "papa-sombra". Aos olhos de muitos, a situação parece contraditória: por um lado, a reforma da Igreja e, por outro, a atitude com relação aos divorciados em segunda união.

O papa gostaria de ir em frente – o "prefeito da fé" freia. O papa tem em mente a humanidade concreta – o prefeito, principalmente a doutrina tradicional católica. O papa gostaria de praticar a caridade – o prefeito apela à santidade e à justiça divina. O papa gostaria que os sínodos episcopais, em outubro de 2014, encontrassem soluções práticas para os problemas da família, também com base em consultas aos leigos – o prefeito se baseia em teses dogmáticas tradicionais para poder manter o status quo, sem caridade. O papa quer que os sínodos episcopais empreendam novas tentativas de reforma – o prefeito, ex-professor de teologia dogmática, pensa que pode impedi-las logo de saída com a sua tomada de posição.

É preciso se perguntar se o papa ainda controla esse seu sentinela da fé.

É preciso dizer que o próprio Jesus se expressou sem meios termos contra o divórcio. "O que Deus uniu o homem não o separe" (Mt 10, 9). Mas ele fazia isso sobretudo em benefício da mulher, que na sociedade da época era penalizada em nível jurídico e social, e contra o homem, que no mundo judaico era o único que podia apresentar o pedido de divórcio. Assim, a Igreja Católica, na qualidade de sucessor de Jesus, embora em uma situação social completamente mudada, reitera fortemente a indissolubilidade do matrimônio que garante aos cônjuges e aos seus filhos relações estáveis e duradouras.

Os cristãos neotestamentamentários não consideram a palavra de Jesus com relação ao divórcio como uma lei, mas sim como uma diretriz ética. O fracasso da união matrimonial claramente não corresponde ao desígnio da criação. Mas só a rigidez dogmática não pode admitir que a palavra de Jesus sobre o divórcio já na época apostólica fosse usada com uma certa flexibilidade, isto é, em caso de "luxúria" (cf. Mt 5, 32; 19, 9) e no caso de separação entre um parceiro cristão e um não cristão (cf. 1Cor. 7, 12-15).

É evidente que já na Igreja primitiva se percebia que existem situações em que continuar a convivência se torna irrazoável.

E a credibilidade do Papa Francisco seria imensamente danificada se os reacionários do Vaticano o impedissem de traduzir logo em ações as suas palavras e os seus gestos embebidos de caridade e de sentido pastoral. O enorme capital de confiança que o papa acumulou nos primeiros meses do seu pontificado não deve ser desperdiçado pela Cúria.

Inúmeros católicos esperam que o papa examine a discutível posição teológica e pastoral de Müller; que vincule a comissão para a defesa da fé à sua linha teológica pastoral; que as louváveis consultas dos bispos e dos leigos em vista dos próximos sínodos sobre a família levem a decisões dotadas de fundamento bíblico e próximas da realidade.

O Papa Francisco dispõe das necessárias qualidades para liderar como capitão o navio da Igreja através das tempestades destes tempos: a confiança dos fiéis lhe servirá de apoio. Ele terá contra ele o vento da Cúria e, muitas vezes, deverá avançar em ziguezague, mas a esperança é que, confiando-se à bússola do evangelho (não à do direito canônico), ele possa manter a rota na direção da renovação, do ecumenismo e da abertura ao mundo. A Evangelii gaudium é uma etapa importante nesse sentido, mas certamente não é o ponto de chegada.

A alegria do Evangelho - Dom Walmor Oliveira de Azevedo, Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte

Belo Horizonte (RV) - O Papa Francisco define ainda mais nitidamente o horizonte norteador da Igreja Católica neste tempo com a sua recém-publicada Exortação Apostólica, intitulada “A alegria do Evangelho”. Obviamente, trata-se de uma exortação que nasce da “escuta”, na dinâmica da vida da Igreja e do que é próprio da graça de Deus. O Papa Francisco, com frescor próprio do coração de pastor enraizado no chão latino-americano, reaviva, com singularidades, a recuperação de sentidos genuínos na vivência do Evangelho. O conhecimento da Exortação do Papa é determinante na compreensão e no tratamento do mais importante desafio da Igreja Católica na contemporaneidade: a insubstituível tarefa de anunciar o Evangelho no mundo atual.

Ao falar sobre alegria, um capítulo determinante da vida e um interesse comum a todos os corações, é imprescindível compreender que o Evangelho de Jesus Cristo não é um simples conjunto conceitual alternativo para aprendizagem, ou simples referência quando necessário. A alegria do Evangelho é duradoura. Enche o coração dos que, no cotidiano, vivenciam a experiência do encontro pessoal com Jesus Cristo. Trata-se de uma alegria que não é como muitas outras, que seduzem, mas são passageiras e não têm força para resgatar o vazio interior, o isolamento e a tristeza. O Papa Francisco adverte que o grande risco do mundo contemporâneo, com a oferta múltipla e opressora de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração acomodado e avarento, da busca doentia de prazeres superficiais.

Não é possível encontrar uma alegria verdadeira e duradoura quando a vida interior se fecha nos seus próprios interesses. Isto impede a escuta de Deus e faz morrer o entusiasmo de se fazer o bem. Um risco que, sublinha o Papa Francisco, pode atingir também aos que creem e praticam a fé. Um cenário que pode ser constatado quando são encontradas pessoas descontentes, ressentidas, amargas e incapacitadas para cultivar sonhos e projetos, necessários para conduzir a vida na direção da sua estatura própria de dom de Deus. A alegria, necessidade natural do coração humano, expressão de vida vivida com dignidade, vem com o anúncio, conhecimento, experiência e testemunho do Evangelho de Jesus Cristo.

A Igreja, que tem a missão de promover a experiência dessa alegria duradoura tem que estar em movimento, isto é, sempre a caminho. Cada membro, tomando a iniciativa de sair e ir ao encontro, deve renunciar às comodidades e acolher o desafio da mudança, da renovação, numa atitude permanente de conversão. É preciso ter coragem de mudar, de ousar novas respostas, em todos os campos da sociedade, dinâmicas e projetos. No caminho contrário, corre-se o risco de se tornar um instrumento inócuo no serviço e no anúncio da fonte inesgotável dessa alegria.

Por isso, diz o Papa Francisco, a Igreja está desafiada por uma exigência de renovação improrrogável. Para se adequar a esta necessidade, é preciso reconhecer os muitos desafios postos pelo mundo contemporâneo. A consideração das diferentes culturas urbanas, com um conhecimento mais aprofundado de suas dinâmicas, interesses, linguagens e configurações, tem a propriedade de mostrar o caminho novo que fará a renovação da Igreja. O Papa Francisco sublinha que na atual cultura dominante, o primeiro lugar está ocupado por aquilo que é exterior, imediato, visível, veloz, superficial e provisório. O real dá lugar à aparência. Constata-se uma deterioração de valores culturais, com a assimilação de tendências eticamente fracas. Esse processo de renovação e trabalhosa tarefa de ajudar o mundo a encontrar no Evangelho a fonte perene de alegria duradoura supõe, sem negociação, a coragem e a perseverança no dizer “não” a uma economia da exclusão, “não” à nova idolatria do dinheiro, que dá ao mercado a força de governar e não a de servir, gerando perversidades inadmissíveis. “Não” a todo tipo de iniquidade que gera violência, “não” ao egoísmo mesquinho e ao pessimismo estéril.

É hora de compreender e testemunhar a dimensão social da fé, como força e instrumento de uma nova “escuta” prioritária dos pobres, trabalhando para respeitar o povo, de muitos rostos e necessidades. Convida-nos o Papa Francisco a buscar, corajosamente, novas configurações organizacionais, institucionais e pessoais, apoiados na certeza daquilo que, luminosamente, está na alegria do Evangelho.

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A teoria econômica do Papa Francisco: mais Polanyi, menos Marx

Daria algumas manchetes bastante surpreendentes se o Papa Francisco se revelasse marxista. Entre as suas pistas de reabilitação da teologia da libertação – condenada pelos seus antecessores – e seus discursos sobre recusar "as estruturas econômicas e sociais que nos escravizam", o marxismo não está totalmente fora de questão.

A reportagem é de Heather Horn, publicada na revista The Atlantic, 26-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Mas, felizmente para os nervosos líderes da Igreja, a primeira Exortação Apostólica de Francisco, divulgada nessa terça-feira, não chega a sugerir um homem que receberia "Marx" como resposta em um quiz online do estilo "Qual teórico econômico você é?". Com certeza, ele também não receberia como resposta Friedrich von Hayek ou Ayn Rand, exatamente.

Mas você sabe com quem ele plausivelmente poderia ser equiparado, entretanto? Com um economista político favorito dos acadêmicos anti-livre mercado: Karl Polanyi.

Karl Polanyi é mais famoso pelo seu livro A grande transformação e particularmente por uma ideia nesse livro: a distinção entre uma "economia que está incorporada nas relações sociais" e "relações sociais que estão incorporadas no sistema econômico".

A grande ideia de Polanyi: a economia deve servir à sociedade, e não o contrário

A atividade econômica, diz Polanyi, começou simplesmente como um dos muitos resultados da atividade humana. E, portanto, a economia servia originalmente às necessidades humanas. Mas com o tempo as pessoas (especialmente as pessoas que formulam as políticas) tiveram a ideia de que os mercados se regulamentariam se as leis e as regulações abrissem caminho. Os convertidos ao livre mercado disseram às pessoas que "só terão validade as políticas e as medidas que ajudem a assegurar a autorregulação do mercado, criando condições para fazer do mercado o único poder organizador na esfera econômica".

Aos poucos, enquanto o pensamento baseado no livre mercado se estendia por toda a sociedade, os seres humanos e a natureza passaram a ser visto como mercadorias denominadas "trabalho" e "terra". A "economia de mercado" transformou a sociedade humana em uma "sociedade de mercado".

Em suma (enquanto os professores das ciências sociais se preparam para bater a cabeça nas suas mesas com o meu reducionismo), em vez de o mercado existir para ajudar os seres humanos a viverem uma vida melhor, os seres humanos ordenam as suas vidas para se encaixarem na economia.

O que o Papa Francisco disse

Agora, de volta ao papa. O Papa Francisco, na sua exortação, notavelmente não pede uma completa revisão da economia. Ele não fala de revolução, e certamente não há nenhuma conversa marxista sobre inexoráveis forças históricas.

Ao contrário, Francisco denuncia, especificamente, toda a regra do mercado sobre os seres humanos – não a sua existência, mas sim a sua dominação.

"Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte", escreve. "O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois jogar fora", e "o ser humano é reduzido apenas a uma das suas necessidades: o consumo".

Ele rejeita a ideia de que "o crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo". Em vez disso, argumenta ele, a desigualdade crescente "provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira", que "negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum". E ele repete a exata linguagem que ele usou em um discurso anterior: "O dinheiro deve servir, e não governar!".

Já conseguem ver as semelhanças?

Polanyi, o papa e a culpa do mercado pelas grandes crises

As coisas começar a ficar realmente interessantes quando o Papa Francisco traz à tona a crise financeira. "Uma das causas dessa situação", escreve, "está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano".

Não há nada de novo em dizer que a crise financeira veio de uma falta de regulação. Essa é uma análise bastante popular. Mas o que o Papa Francisco está dizendo é mais polanyiano, remetendo à ideia de que o ponto de inflexão tem a ver com a relação entre o mercado e a sociedade/humanidade, e uma coisa está subordinada à outra. Assim como Polanyi argumentou que a extensão da economia de mercado em todo o globo (através do padrão-ouro) foi a causa da Primeira Guerra Mundial (e você terá que retomar o livro original para entender isso), Francisco está argumentando que o fato de não manter a humanidade no centro da nossa atividade econômica foi a causa da crise financeira.

Uma visão de futuro

Uma das partes complicadas e cruciais do argumento de Polanyi é que ele realmente não acredita (ao menos nos anos 1940, quando ele estava escrevendo) que nós estamos vivendo em um mundo onde a economia se tornou totalmente desenraizada da sociedade. Essa "Utopia", escreve ele, pela qual muitos teóricos econômicos e políticos estão tolamente se esforçando, "não poderia existir em qualquer tempo sem aniquilar a substância humana e natural da sociedade; ela teria destruído fisicamente o homem e transformado seu ambiente em um deserto".

O Papa Francisco tem uma visão igualmente sombria da sobrevivência global diante do capitalismo sem controle: "Neste sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta".

Então, qual é a saída? Na época em que o livro de Polanyi foi publicado, ele estava apostando que a resposta era a social-democracia, desde que os governos trabalhassem juntos internacionalmente. E você sabe o quê? Isso se aproxima muito daquilo que o papa também exorta. Ele não acha que isso possa ser resolvido com a caridade pessoal:

O crescimento equitativo […] requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente orientados para uma melhor distribuição das entradas, para a criação de oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno […] Temos de nos convencer que a caridade 'é o princípio não só das microrrelações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macrorrelações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos'. […] Todo ato econômico de uma certa envergadura, que se realiza em qualquer parte do planeta, repercute-se no mundo inteiro, pelo que nenhum Governo pode agir à margem duma responsabilidade comum. Na realidade, torna-se cada vez mais difícil encontrar soluções a nível local para as enormes contradições globais, pelo que a política local se satura de problemas por resolver. Se realmente queremos alcançar uma economia global saudável, precisamos, neste momento da história, de um modo mais eficiente de interação que, sem prejuízo da soberania das nações, assegure o bem-estar econômico a todos os países e não apenas a alguns.

Os paralelos não são perfeitos. Polanyi tem algumas ideias sobre o fato de que os Evangelhos ignoram a realidade social, com as quais o papa poderia não concordar. Mas, por enquanto, ao menos, Polanyi certamente parece se encaixar mais com o papa do que Marx. E o papa e Polanyi têm isto em comum: agora, ambos são surpreendentemente populares em câmpus universitários liberais.

Se você encontrar uma foto de Sua Santidade lendo A grande transformação no ônibus, nos avise.

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“Adoremos a Deus até o final, apesar da apostasia e das perseguições”, prega Francisco

A fé em Jesus Cristo não é uma questão privada. É preciso adorar ao Senhor até o final, apesar da apostasia e das perseguições. São as afirmações principais que o papa Francisco expressou durante a homilia da missa matutina, na Capela da Casa Santa Marta, segundo indicou a Rádio Vaticana.

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Fonte: http://goo.gl/mSPeVo

A reportagem é de Domenico Agasso Jr., publicada por Vatican Insider, 28-11-2013. A tradução é do Cepat.

O Pontífice advertiu que há “poderes mundanos” que pretendem difundir a imagem da religião como algo que pertence à esfera privada. Contudo, não pode ser assim, enfatizou Francisco. Deus, que venceu este mundo, deve ser adorado até o último momento, “com confiança e fidelidade”. E o início, o sinal que preanuncia a vitória final de Jesus, são os cristãos que hoje sofrem a perseguição.

O Papa relacionou sua pregação de hoje com a liturgia do final de ano, que propõe uma luta final entre Deus e o mal. Existe um perigo muito grande, que Francisco definiu como “a tentação universal”: trata-se da tentação de ceder às precipitações dos que quiseram vencer o Senhor, “conquistando” os pensamentos dos que creem Nele.

Porém, as pessoas que acreditam não podem esquecer que existe uma referência clara: a história de Jesus, com as provações no deserto e, depois, todas aquelas que Ele sofreu e enfrentou durante sua vida pública, com “insultos” e “calúnias”, que culminaram na Crucificação. Entretanto, foi justamente na Cruz, recordou Bergoglio, onde “o príncipe do mundo” perdeu sua batalha frente à Ressurreição do “Príncipe da paz”.

Francisco se referiu a estes momentos da vida de Jesus porque, apontou, no momento final do mundo, como narra o Evangelho, a aposta é muito maior: “Quando Jesus fala das calamidades em outra passagem, diz-nos que será uma profanação do templo, uma profanação da fé, do povo: será a abominação, será a desolação da abominação. O que significa isto? Será como o triunfo do príncipe sobre este mundo: a derrota de Deus. Parece que ele, nesse momento final da calamidade, apodera-se deste mundo, como se fosse o modelo do mundo”.

A profanação da fé é o centro da prova final. E é evidente, observou, no sofrimento do profeta Daniel, na narração da Primeira Leitura de hoje: ao ser jogado aos leões por ter adorado a Deus ao invés de adorar ao rei.

É por isso que a “desolação da abominação” é uma “proibição da adoração”. “Não se pode falar de religião, é uma coisa privada, não é? Disto não se fala em público. Retiram os símbolos religiosos. Deve-se obedecer às ordens que provém dos poderes mundanos. É permitido fazer muitas coisas, coisas bonitas, mas não adorar a Deus. É proibido adorar. Este é o centro deste final. E quando chegar a plenitude (o “kairós” desta atitude pagã), quando se cumprir este tempo, então Ele virá: “E verão ao Filho do homem vir sobre uma nuvem com grande poder e glória”.

“E os cristãos que sofrem tempos de perseguição, tempos de proibições, são uma profecia do que acontecerá com todos nós”.

No entanto, prosseguiu o Papa, justamente no momento em que os “tempos dos pagãos” se cumprir, será o momento de levantar a cabeça, porque na realidade se aproxima a “vitória de Jesus Cristo”.

“Não tenhamos medo, Ele apenas nos pede fidelidade e paciência – exortou o Papa. Fidelidade como Daniel, que foi fiel ao seu Deus e adorou a Deus até o final. E paciência, porque os cabelos de nossas cabeças não cairão. Assim prometeu o Senhor”.

“Esta semana – sugeriu Francisco – fará bem para todos nós pensarmos nesta apostasia geral, que se chama proibir a adoração, e nos perguntarmos: “Eu adoro ao Senhor? Adoro a Jesus Cristo, o Senhor? Um pouco, mais ou menos, sigo o jogo do príncipe deste mundo?” Adorar até o final, com confiança e fidelidade: esta é a graça que devemos pedir esta semana”.

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O vade mecum do Papa. “Assim se faz uma pregação”

“Quem quer pregar deve, em primeiro lugar, estar disposto a deixar-se comover pela Palavra e fazê-la sua carne, sua existência concreta”. Em torno desta informação estão as 18 páginas da exortação apostólica “Evangelii gaudium”, dedicadas à homilia e a sua preparação. Um espaço considerável, que demonstra a preocupação do Papa pelo “ministério” da pregação, integrado pela mensagem cristã e a celebração eucarística. “Irei me deter, particularmente, e até com certa meticulosidade, na homilia e na sua preparação, porque são muitas as reclamações dirigidas em relação a este grande ministério, as quais não podemos nos fazer de surdos. A homilia é pedra fundamental para avaliar a proximidade e a capacidade de encontro de um Pastor com seu povo”.

A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada por Vatican Insider, 27-11-2013. A tradução é do Cepat.

Não se pode esquecer que justamente as homilias, e as homilias cotidianas da missa em Santa Marta, representam uma das novidades mais significativas do seu Pontificado: pregações breves, eficazes, simples, cheias de imagens para que mesmo as pessoas simples as compreendam. Ainda que não sejam escritas, as homilias do magistério cotidiano de Francisco são o fruto de uma longa meditação matinal sobre as Leituras, realizada durante as primeiras horas da madrugada.

Francisco lembra que a pregação durante a missa “não é tanto um momento de meditação e catequese, mas de diálogo de Deus com seu povo”, que “a homilia não pode ser um espetáculo de entretenimento, não corresponde à lógica dos recursos midiáticos, mas deve ter o fervor e o sentido de uma celebração” e que, portanto, “deve ser breve e evitar a aparência de uma palestra ou de uma aula”, para não prejudicar “a harmonia” entre as diferentes partes da missa. O Papa convida o pregador a falar “como uma mãe que fala com seu filho”, “mediante a aproximação cordial do pregador”, “o calor da sua voz, a delicadeza do estilo de suas frases, a alegria de seus gestos”. Explica que “a pregação puramente moralista ou doutrinária, assim como aquela que se converte em uma aula de exegese, reduzem esta comunicação entre corações que se dá na homilia”. Na homilia, de fato, “a verdade vai de mãos dadas com a beleza e o bem. Não se trata de verdades abstratas ou de frios silogismos, porque também se comunica na beleza das imagens que o Senhor utilizava para estimular a prática do bem”.

Quem prega deve transmitir “a síntese da mensagem evangélica”, e não “ideias ou valores soltos. Onde está sua essência, ali está seu coração. A diferença entre iluminar o lugar com esta essência e iluminar com ideias soltas é a mesma que há entre o aborrecimento e o ardor do coração. O pregador tem a linda e difícil missão de juntar os corações que se amam, o do Senhor com os de seu povo”.

Ao se olhar de perto a preparação da homilia, Francisco pede que se dedique a ela “um tempo prolongado de estudo, oração, reflexão e criatividade pastoral”, além de todos os assuntos que deve seguir um padre: “Um pregador que não se prepara não é ‘espiritual’; é desonesto e irresponsável com os dons que recebeu”.

Há que se “prestar toda a atenção ao texto bíblico, que deve ser o fundamento para a pregação”; a Palavra deve ser venerada e estudada “com sumo cuidado e com um santo temor em manipulá-la. Para poder interpretar um texto bíblico necessita-se de paciência e de se abandonar toda a ansiedade”. A preparação da pregação “requer amor. Só se dedica tempo livre e sem pressa às coisas ou as pessoas que se ama e aqui se trata de amar a Deus que está querendo falar”.

Também é importante captar a mensagem central do texto: “Se um texto foi escrito para consolar, não deve ser utilizado para corrigir erros; se foi escrito para encorajar, não deveria ser utilizado para doutrinar; se foi escrito para ensinar algo sobre Deus, não deveria ser utilizado para explicar diversas opiniões teológicas; se foi escrito para motivar os louvores ou o trabalho missionário, não utilizemos para informar sobre as últimas notícias”. Além disto, deve-se saber apresentar o texto em plena harmonia como toda a mensagem cristã, sem “prejudicar o tom próprio e específico do texto que irá pregar”.

“Quem quer pregar, primeiro deve estar disposto a se deixar comover pela Palavra e fazê-la carne em sua existência concreta. Desta maneira, a pregação consistirá nesta atividade tão intensa e fecunda que é ‘comunicar aos outros o que se contemplou’”, como escrevia São Tomás. Deus quer usar os pregadores “como seres vivos, livres e criativos, que se deixam penetrar por sua Palavra antes de transmiti-la; sua mensagem deve passar realmente através do pregador, mas não apenas por sua razão, mas tomando todo o seu ser”.

Francisco fala depois sobre a importância da “lectio divina”, a leitura espiritual de um texto a partir de seu significado literal, para fazer com que não se diga: “o que lhe convém, o que lhe serve para confirmar suas próprias decisões, o que se adapta aos seus próprios esquemas mentais. Isto, em definitivo, será utilizar algo sagrado para o próprio benefício e passar essa confusão ao Povo de Deus”. Para fazê-lo, é necessário que o sacerdote se pergunte: “Senhor, o que este texto diz a mim? O que quer mudar na minha vida com esta mensagem? O que me incomoda neste texto? Por que isto não me interessa?”, ou melhor: “O que me agrada? Como esta Palavra me estimula? O que me atrai? Por que me atrai?”. Evitando a tentação, “muito comum” de “pensar o que o texto diz aos outros, para evitar aplicá-lo a própria vida”.

Os que pregam necessitam “também ouvir o povo, para descobrir o que os fiéis necessitam escutar. Um pregador é um contemplador da Palavra e também um contemplador do povo”. Deve conectar “a mensagem do texto bíblico com a situação humana”, com algo que as pessoas vivem. “Esta preocupação não corresponde a uma atitude oportunista ou diplomática, mas é profundamente religiosa e pastoral”. Não tem que “oferecer crônicas da atualidade para despertar os interesses: para isto já existem os programas televisivos”, mas podem ser tomados como pontos de partida “alguns fatos para que a Palavra possa ressoar com força, como convite à conversão, adoração, atitudes concretas de fraternidade e de servidão”.

Além do conteúdo, a forma para transmiti-lo é importante. “Alguns creem que podem ser bons pregadores por saber o que devem dizer, mas descuidam de como, a forma concreta de desenvolver uma pregação. Queixam-se quando os demais não os escutam ou não os valorizam, mas talvez não se tenham se empenhado na buscar de uma forma adequada de apresentar a mensagem”.

Para que uma homilia seja atrativa e rica, Francisco sugere “aprender a usar imagens na pregação, quer dizer, a falar com as imagens”. E a linguagem deve ser simples: “Deve ser uma linguagem que seus receptores compreendam, para não correr o risco de falar para o vazio. Frequentemente, os pregadores usam palavras que aprenderam em estudos e em determinados ambientes, mas que não são parte do linguajar comum das pessoas que os escutam”. Para poder falar para as pessoas deve-se “escutar muito”, há que “compartilhar a vida das pessoas e prestar uma deliciosa atenção”. Bergoglio explica que a simplicidade e a clareza não são as mesmas coisas, e que se pode falar com a primeira, enquanto linguagem, ao mesmo tempo em que se carece de clareza por falta de lógica, de ordem, de unidade temática.

A linguagem deve ser positiva: “Não diz tanto o que não deve se fazer, mas propõe o que podemos fazer melhor. Em todo caso, se indicar algo negativo, também se atenta em mostrar seu valor positivo que atraia, para não ficar apenas na queixa, no lamento, na crítica e no remorso”.

Sacerdotes e pregadores, como forem, têm à sua disposição um detalhado vade mecum para preparar suas homilias. E têm, sobretudo, um exemplo cotidiano no Papa.

O EFEITO FRANCISCO

O "efeito Francisco", ao mesmo tempo em que injeta um novo entusiasmo dentro da Igreja, está transformando notavelmente a sua imagem pública em lugares improváveis.

Publicamos aqui o editorial da revista britânica católica The Tablet, 21-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A palavra "viral" pode não estar no dicionário teológico comum, mas talvez ela deveria estar. Ela representa o fato de que há um novo palco em que a mensagem do evangelho do amor incondicional de Deus está sendo encenada: o da mídia social. O abraço amoroso do Papa Francisco dado a um homem com deformações extremas no rosto e no corpo se tornou viral quase que instantaneamente, o que significa que foi reproduzido como uma imagem com uma mensagem milhões de vezes em todo o mundo.

E essa não foi a primeira vez em que o Papa Francisco forneceu material vivo aos meios de comunicação social: ele parece compreender o meio. No novo mundo do Twitter, YouTube e Facebook, o meio é de fato a mensagem, assim como o guru canadense da mídia, Marshall McLuhan, ele próprio um convertido ao catolicismo, profetizou.

Enquanto as imagens do mais recente ato simbólico do Papa Francisco estavam sendo multiplicadas exponencialmente, um tom mais negativo estava sendo infligido pelo ex-arcebispo de Canterbury, Lord Carey. O cristianismo, advertiu ele, pode se extinguir na Grã-Bretanha em apenas mais uma geração. Ele estava lamentando, principalmente, o destino da Igreja da Inglaterra [anglicana], onde as congregações já envelhecidas sugerem que os reforços habituais, como quando uma geração passa a tocha para a próxima, já não estão esperando sua vez. Esse problema é ainda mais preocupante para as Igrejas livres.

As perspectivas demográficas da Igreja Católica na Grã-Bretanha são mais otimistas, como a pesquisa da professora universitária Linda Woodhead, publicada na edição da The Tablet da semana passada, parece indicar, embora a imigração tenha sido um fator significativo. Ao mesmo tempo, o catolicismo está provando ser mais adaptável, e a adaptação é a chave para a sobrevivência.

O "efeito Francisco", ao mesmo tempo em que injeta um novo entusiasmo dentro da Igreja, está transformando notavelmente a sua imagem pública em lugares improváveis – os "ateus pró-Francisco" parecem estar emergindo como o mais recente "Novo Ateísmo". O que a lamúria de Lord Carey representa é a verdade nem tão sutil de que a Igreja da Inglaterra precisa de um "efeito Francisco" próprio.

Por outro lado, alguns dos fatores que, na visão de Lord Carey, ameaçam a viabilidade da Igreja da Inglaterra também estão presentes na Igreja Católica. O protestantismo evangélico tende a tratar as Escrituras como regra de vida e não como uma fonte de inspiração para a vida cristã – o que pode ser a razão pela qual na Grã-Bretanha moderna, "religioso" é comumente considerado como sinônimo de "respeitável" ou mesmo "rigoroso". O mesmo poderia ser dito de um determinado setor do catolicismo autoritário, que gostava de pensar em si mesmo como o único permitido até recentemente.

Nesse caso, são as proibições atuais do Magistério, em vez das censuras de São Paulo ou de Levítico que são usadas para vincular, mas ambas produzem um quadro interpretativo que é legalista e cerebral. Tratam-se de palavras na página, em vez de ações na tela. Em termos mais teológicos, elas não têm sacramentalidade. Nem dez mil palavras poderiam dizer o quanto a imagem do abraço do Papa Francisco a Vinicio Riva, o homem devastado pela neurofibromatose, fala sobre o amor de Deus pela humanidade. Esse é o Deus em quem as pessoas podem realmente querer acreditar.

A própria adaptabilidade pela qual o catolicismo parece estar passando nas bases – que as desconcertadas autoridades da Igreja correm o risco de interpretar como frouxidão ou rebelião – pode ser vista como um reordenamento necessário de prioridades, ao se afastar das regras sobre a destruição da alma para formas enfáticas de solidariedade. Essa mudança de paradigma é o que as pessoas comuns gostam no Papa Francisco.

Isso explica por que muitos leigos católicos sentem uma simpatia instintiva para com os homens e mulheres homossexuais nas dificuldades que enfrentam. Eles sentem o mesmo por aqueles cujos casamentos terminaram em doloroso divórcio e que estão reconstruindo suas vidas através de um novo casamento. Eles parecem estar dizendo que, se as regras estão no caminho da solidariedade que o Evangelho exige – para a qual a misericórdia pode ser um outro nome –, então as regras vêm em segundo lugar.

Vendo a Eucaristia como a expressão sacramental visível da solidariedade cristã por excelência, sente-se uma contradição insuportável em usá-la para expressar exclusão.

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O sonho de Francisco. Um catolicismo mais missionário, misericordioso e corajoso

Os sonhos podem ser coisas poderosas, especialmente quando articulados por líderes com a capacidade realista de traduzi-los em ação. Esse foi o caso, há 50 anos, do famoso discurso "I Have a Dream", de Martin Luther King Jr., e também parece ser a ambição da nova e contumaz exortação apostólica do Papa Francisco, A alegria do Evangelho.

A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 26-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Com efeito, o documento de 224 páginas, intitulado em latim Evangelii gaudium e divulgado pelo Vaticano nessa terça-feira, é uma declaração de visão sobre o tipo de comunidade que Francisco quer que o catolicismo seja: mais missionário, mais misericordioso e com coragem para mudar.

Francisco começa com um sonho.

"Sonho com uma opção missionária", escreve Francisco, "capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação".

Em particular, Francisco pede uma Igreja marcada por uma paixão especial pelos pobres e pela paz.

O tema da mudança permeia o documento. O papa diz que, ao invés do "temor de falhar", o que a Igreja deve temer vez é "encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis" e "hábitos em que nos sentimos tranquilos".

Embora Francisco tenha divulgado uma carta encíclica intitulada Lumen fidei, em junho, esse texto se baseou amplamente em um esboço elaborado por Bento XVI. A alegria do Evangelho, concebida como uma reflexão sobre o Sínodo dos Bispos sobre a nova evangelização de outubro de 2012, representa, portanto, a verdadeira estreia do novo papa como autor.

A reação inicial sugere que se trata de uma proeza.

O texto desponta com os já familiares flashes da linguagem caseira de Francisco. Descrevendo um tom otimista como uma qualidade cristã definidora, por exemplo, ele escreve que "um evangelizador não deveria ter constantemente uma cara de funeral".

Em outro ponto, Francisco insiste que "a Igreja não é uma alfândega". Ao invés, diz, "é a casa paterna, onde há lugar para todos". Em outro ponto, ele brinca que "o confessionário não deve ser uma câmara de tortura", mas sim "o lugar da misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível".

Francisco reconhece que realizar o seu sonho irá exigir "uma reforma da Igreja", estipulando que "aquilo que pretendo deixar expresso aqui, possui um significado programático e tem consequências importantes".

Embora ele não trace um plano abrangente de reforma, ele vai além de meras sugestões no sentido de indicações bastante contundentes de direção:

- Ele pede uma "conversão do papado", dizendo que quer promover "uma saudável descentralização" e admitindo candidamente que, nos últimos anos, " temos avançado pouco" nesse fronte.

- Ele sugere que as conferências episcopais devem receber "um estatuto […] que as considere como sujeitos de atribuições concretas, incluindo alguma autêntica autoridade doutrinal". Com efeito, isso equivaleria a uma reversão de uma decisão do Vaticano em 1998, de João Paulo II, de que somente os bispos individuais em conjunto com o papa, e não as Conferências Episcopais, têm essa autoridade.

- Francisco diz que a Eucaristia "não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos", insistindo que "as portas dos sacramentos" não devem "ser fechadas por uma razão qualquer". A sua linguagem poderia ter implicações não só para os católicos divorciados em segunda união, mas também aos pedidos de que se recuse a Eucaristia a políticos ou a outros que não defendam a doutrina da Igreja sobre alguns assuntos.

- Ele pede uma liderança colaborativa, dizendo que bispos e pastores devem usar "organismos de participação propostos pelo Código de Direito Canônico e de outras formas de diálogo pastoral, com o desejo de ouvir a todos, e não apenas alguns sempre prontos a lisonjeá-lo[s]".

- Francisco critica as forças dentro da Igreja que parecem ansiar por uma "implacável caça às bruxas", perguntando retoricamente: "Quem queremos evangelizar com estes comportamentos?".

- Ele adverte contra a "cuidado exibicionista" com a liturgia e a doutrina, em oposição a garantir que o Evangelho tenha "uma real inserção" entre as pessoas e envolva "as necessidades concretas da história".

Em duas matérias específicas, no entanto, Francisco exclui a mudança: a ordenação de mulheres ao sacerdócio, embora ele peça "uma presença feminina mais incisiva" em papéis de tomada de decisão, e o aborto.

Francisco diz que, com relação à defesa da vida do nascituro, "não se deve esperar que a Igreja altere a sua posição sobre esta questão", porque ela está "intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano".

A linguagem mais dura do papa vem em uma seção do documento que argumenta que a solidariedade com os pobres e a promoção da paz são elementos constitutivos do que significa ser uma Igreja missionária.

Francisco denuncia o que ele chama de um "confiança vaga e ingênua" no livre mercado, dizendo que, entregue à sua própria sorte, o mercado muitas vezes fomenta uma "cultura do descartável", em que certas categorias de pessoas são vistas como descartáveis. Ele rejeita o que ele descreve como uma "tirania" econômica "invisível, às vezes virtual".

Especificamente, Francisco convida a Igreja a se opor a espalhar a desigualdade de renda e o desemprego, assim como a defender uma maior proteção ambiental, contra os conflitos armados.

No fim, A alegria do Evangelho equivale a um forte apelo por um catolicismo mais missionário, no sentido mais amplo. A alternativa, alerta Francisco, não é agradável.

"Não se vive melhor fugindo dos outros, escondendo-se, negando-se a partilhar, resistindo a dar, fechando-se na comodidade", escreve. "Isso não é senão um lento suicídio".

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''A pobreza não pode esperar''. O manifesto de Francisco

Há o compromisso de mudar a Igreja profundamente – começando pelo próprio papado – e o convite a combater a lei do mais forte, "onde o poderoso engole o mais fraco". Há o apelo a parar "as guerras dentro do povo de Deus" (leia-se: no Vaticano) e o chamado a "uma reforma financeira que leve a ética em conta".

A reportagem é de Marco Ansaldo, publicada no jornal La Repubblica, 27-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O papa que "veio do fim do mundo" diz que agora "não se pode deixar as coisas como estão". E que "essa economia da exclusão e da desigualdade mata". Por isso, "devemos ouvir o clamor do pobre". E então Francisco reza "ao Senhor para que nos conceda mais políticos, que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo, a vida dos pobres".

Jorge Mario Bergoglio vira a página da Igreja, convida os fiéis e não crentes a cerrar fileiras contra as aberrações da sociedade e coloca, pela primeira vez, os pingos nos "is" sobre os pontos fundantes do pontificado a oito meses da sua eleição. E o faz com uma exortação apostólica, Evangelii gaudium, a primeira inteiramente de seu próprio punho depois da encíclica Lumen fidei, inspirada por Bento XVI. Um texto de 220 páginas, escrito diretamente em espanhol em agosto passado depois da viagem ao Rio de Janeiro e voltado, como quer o título, a "recuperar o frescor original do Evangelho".

Substancialmente, é um documento programático. Uma análise lúcida, impiedosa às vezes, do atual sistema econômico capitalista. Com um apelo vibrante pela paz dentro e fora da Igreja. Um escrito poderoso e ao mesmo tempo imbuído de humanidade, no qual a sensibilidade latino-americana do papa emerge com toda a sua evidência. Um trabalho que o L'Osservatore Romano define como uma "Magna Carta para a Igreja de hoje", embora escrito com um estilo coloquial e uma prosa envolvente.

Conversão do papado

"Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar também em uma conversão do papado". É, talvez, a passagem mais forte e que se destina a provocar discussões. "Compete-me – escreve Francisco –, como Bispo de Roma, estar aberto às sugestões que se orientem a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel ao sentido que Jesus Cristo quis lhe dar e às necessidades atuais da evangelização. O Papa João Paulo II pediu que o ajudassem a encontrar 'uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova'. Avançamos pouco nesse sentido", é a dura crítica de Bergoglio.

O papado e as estruturas centrais da Igreja universal, continua, também "precisam de ouvir este apelo a uma conversão pastoral". Porque "centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja". É necessária, portanto, "uma salutar descentralização". Além disso, são muitas as "guerras" no povo de Deus e nas diversas comunidades: "Quem queremos evangelizar com esses comportamentos?".

Ao contrário, "por todo o lado, as igrejas devem ter as portas abertas". De fato, o papa prefere "uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento". Portanto, é preciso uma "revolução da ternura". E evitar o clericalismo e o pessimismo estéril.

Economia tirana

"O papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um regresso da economia e das finanças a uma ética em favor do ser humano".

Mulheres e aborto

"Ainda é preciso ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Porque 'o gênio feminino é necessário em todas as expressões da vida social'". Mas sobre o aborto "não se deve esperar que a Igreja altere a sua posição". E para Bergoglio "não é opção progressista pretender resolver os problemas eliminando uma vida humana". O "não" ao aborto, explica, "está intimamente ligado à defesa de qualquer direito humano".

Bispos mais autônomos

"Ainda não foi suficientemente explicitado um estatuto das conferências episcopais que as conceba como sujeitos de atribuições concretas, incluindo também alguma autêntica autoridade doutrinal. Uma excessiva centralização, mais do que de ajudar, complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária".

Homilias mais breves

Que a paróquia, exorta Francisco em uma das passagens mais emocionantes, esteja "em contato com as famílias e com a vida do povo, e não se torne uma estrutura prolixa, separada das pessoas". E a homilia do sacerdote "deve ser breve e evitar que se pareça com uma palestra ou uma aula". Nem conter moralismos ou condenações. "Não pode ser um espetáculo de entretenimento, não responde à lógica dos recursos midiáticos".

A comunhão a divorciados

Francisco não pretende dizer "uma palavra definitiva" sobre os temas que ainda devem ser "objeto de estudo e de cuidadoso aprofundamento". Mas, sobre a comunhão aos divorciados em segunda união, ele indica uma direção que poderá seguida pelo próximo Sínodo Extraordinário: "A Eucaristia, embora constitua a plenitude da vida sacramental, não é um prêmio para os perfeitos, mas sim um generoso remédio e um alimento para os fracos".

Islã e judaísmo

A evangelização envolve o diálogo. E, para Bergoglio, o ecumenismo é um recurso imprescindível. "Diante de episódios de fundamentalismo violento", ele lembra que "o verdadeiro Islã e uma adequada interpretação do Alcorão se opõem a toda violência". E "a amizade com os filhos de Israel" faz parte da "vida dos discípulos de Jesus".

Páginas poéticas

Várias vezes, aqui e acolá no texto, encontram-se passagens densas e pontos ricos de poesia. Como este, perto do fim: "A nossa tristeza infinita só se cura com um infinito amor.