RETIRO 2010-PE.G.GEREON

RETIRO FEITO PELO PE. GERALDO GEREON NO ENCONTRO DA FRATERNIDADE DE 2010, EM CAUCAIA – CE.

Primeira Reflexão: “Francisco, restaura minha casa que está em ruinas”.

Pe. Geraldo Gereon

Eu sou de São Francisco de Assis - no semi-árido nordestino, no centro sul do Piauí – a cidade e a paróquia trazem o mesmo nome. A cidade só tem quatorze anos, a paróquia é mais jovem ainda, só tem seis anos. A sede da paróquia é de tão poucos habitantes, que foi criada como “Quase Paróquia”. A maioria do povo mora no interior.

Nós, nordestinos, somos devotos fervorosos de São Francisco. Distante daqui de Fortaleza, a cento e poucos quilômetros, tem o segundo maior Santuário de São Francisco, depois de Assis na Itália: a cidade de Canindé. É natural, portanto, que comecemos com São Francisco: com ele, queremos nos encontrar com Jesus, ouvir Jesus e nos identificar com a comunidade dos seguidores de Jesus: a Igreja.

Nós vamos agora colocar no nosso meio a cruz de São Damião. Ao seu redor vamos nos reunir, nestes dias. Conhecemos a história de São Francisco em relação a esta cruz: ele sentiu-se chamado pelo Cristo na cruz:

“Francisco, restaura minha casa que está em ruínas” E Francisco restaurou os velhos prédios de São Damião, Porciúncula e outras Igrejas. Mas, São Francisco descobriu que a “Igreja” não é só a casa feita de pedras, mas a comunidade das pessoas que formam o Povo de Deus.

Na verdade, Jesus não queria restaurar templos em decadência, para deixá-los como foram antigamente. Jesus queria recriar a sua Igreja, fazê-la renascer, uma Igreja capaz de repensar e relançar a sua missão.

O Documento de Aparecida que usa essas expressões, se propõe essa mesma tarefa, quando diz: “Não resistiria ao embate do tempo uma fé católica resumida a uma bagagem, a um elenco de algumas normas e de proibições, a práticas de devoção fragmentadas, a adesões seletivas e parciais das verdades da fé, a uma participação ocasional em alguns sacramentos, à repetição de princípios doutrinais, a moralismos brandos ou crispados que não convertem a vida dos batizados”.

Tanto no tempo de São Francisco como no nosso tempo há resistências à essa proposta de “restaurar” a Igreja. São Francisco nos indica a única fonte que nos dá o direito e o dever de recriar a Igreja: Jesus, o pobre, e seu evangelho que ele dirige aos pobres.

O texto do Evangelho de São Mateus 10,5-9 inspira a grande ruptura na vida de São Francisco: nada de ouro, prata, bolsa, sapatos, bastão: pobreza completa.

Ele, o católico das convenções e tradições, descobre o Deus vestido de humildade, na história humana:

- lá onde tudo é insignificante;

- no leproso que fede;

- na Igreja, às vezes, parecendo mais uma prostituta do que uma noiva;

- no sacerdote tolo, avarento, despótico;

- na sua própria vida com os seus pecados que não são nem poucos e nem pequenos;

- no seu bispo autoritário, incorrigível, arrogante. (“Para pregar basta eu” –assim o bispo proibia São Francisco de pregar).

São Francisco conseguiu distinguir entre Jesus e a veste que usa e a história que assumiu.

Nós queremos optar, aqui, por um texto-chave que vai nos acompanhar nestes dias: Hebreus 12,1-2a. Essa carta tem como destinatários cristãos desanimados, acomodados, num mundo que consegue apagar “o primeiro amor”. “...Deixemos de lado tudo o que nos atrapalha e o pecado que nos envolve”. Essa ousadia é permitida, quando “corremos com os olhos fixos em Jesus” e quando percebemos “a nuvem de testemunhas em torno de nós”. O autor da carta refere-se às grandes figuras do Antigo Testamento.

Nós vamos acrescentar a essas nossas testemunhas o Irmão Carlos de Foucauld, mas antes dele, o Pe. Huvelin, e os nossos irmãos nordestinos: Pe. Ibiapina, Antonio Conselheiro, Pe. Francisco da Soledade.

Tanto a uns como aos outros caracterizam a mesma condição: durante grande parte de sua vida eram leigos. O próprio Pe. Cícero, tido aqui no Ceará como santo, tornou-se “santo” sendo suspenso de ordem; nada fazia daquilo para o qual foi ordenado padre, a não ser vestir a batina. O próprio São Francisco nunca foi mais do que diácono.

A biografia e a atuação dessas nossas testemunhas nos remetem para um assunto muitas vezes tratado com certa indiferença: o sacerdócio comum de todos os cristãos batizados. Queremos trazê-lo para dentro da nossa consciência de sacerdotes ministeriais.

Por ocasião da missa do Crisma, na Quinta Feira Santa, os paroquianos da catedral de Oeiras homenageiam, todos os anos, os padres da diocese. Agradecendo o meu presente escrevi uma carta ao casal que o ofereceu. Seguem alguns trechos da carta:

“... Eu acho que nós sacerdotes teríamos de oferecer também a vocês um presente comemorativo ou, pelo menos, a devida atenção e o reconhecimento do sacerdócio do qual vocês fazem parte... a missa não é “do Crisma”? Nela se benze o óleo com que são ungidos os batizados, os crismandos e os sacerdotes – todos eles com o mesmo óleo. Todos eles, todos nós juntos, fazemos parte do sacerdócio de Jesus. Pode um leigo ser sacerdote? Diante do eterno clericalismo nosso...os leigos não chegam a aceitar o seu papel sacerdotal, nem são estimulados para tanto. Primeiro, porque nós não entendemos o sacerdócio de Jesus. Jesus não foi sacerdote no sentido do sacerdócio judeu, nem no sentido do sacerdócio clerical católico. Jesus era um leigo, carpinteiro de Nazaré. Os seus encontros com os ministros sagrados levaram Jesus a ser rejeitado por eles. Então que sacerdote era ele? A explicação está na carta aos Hebreus: ‘Ele teve de ser semelhante em tudo aos seus irmãos, para se tornar sumo sacerdote misericordioso e fiel em relação às coisas de Deus, a fim de expiar os pecados do povo (Hebr. 2,16-17)’ ...Fica bem claro: a única credencial necessária é que a pessoa seja compassiva e digna de confiança. Aqui eu quero chegar à pergunta: O discípulo de Jesus, batizado e crismado, leigo na comunidade do Povo de Deus, pode seguir a Jesus também nessa atitude sacerdotal? Pode e deve: O discípulo de Jesus diz, junto com o Mestre: ‘Deste-me um corpo, eis me aqui para fazer a tua vontade’. Jesus obedece ao Pai e os seus seguidores lhe obedecem: ...´mesmo sendo filho, aprendeu o que significa a obediência, por aquilo que sofreu; ...quando levou a termo sua vida, tornou-se causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem (Hebreus 5, 7-9)’. Este é o sacerdócio comum de todos nós. “Jesus não age em nosso lugar, mas ao nosso lado”, o texto da Campanha da Fraternidade usa essa expressão que aqui significa: O Mestre que aprendeu a obediência é acompanhado pelos que aprendem a obedecer com ele. Os textos da missa do Crisma falam disso diversas vezes. Como, na nossa celebração, não destacamos mais as pessoas ungidas pelo mesmo crisma para seguir Jesus? Como não encher a igreja-catedral com pelo menos 100 jovens crismandos ou crismados e com pelo menos vinte casais com crianças recém-batizadas? Todos eles não são ungidos com o mesmo crisma aplicado também nos sacerdotes? Igual ao destaque dos padres devia ser o destaque do povo sacerdotal que somos todos nós. Nunca seríamos sacerdotes sem este povo de Deus sacerdotal.”

O óleo consagrado simboliza a nossa “unção” pelo Espírito Santo, que ungiu o sacerdote Jesus e os seus seguidores, o povo sacerdotal.

Um retiro é como uma unção pelo Espírito Santo renovada e reforçada. Em 1968 nós, padres da Diocese de Oeiras, tivemos como pregador do nosso retiro Dom Fragoso, bispo de Crateús-Ceará, aliás, membro, ele também, da nossa Fraternidade Jesus-Caritas. Ele dizia na abertura: O principal pregador do retiro é o Espírito Santo. Eu penso, também, que foi o Espírito Santo, que sugeriu no meu coração o assunto do sacerdócio comum para refletir com os meus irmãos sacerdotes do sacerdócio ministerial, neste nosso retiro.

Tenho uma longa caminhada na minha diocese de Oeiras, sempre em paróquias enormes onde a grande maioria dos fiéis não mora na sede, mas nas grandes áreas rurais do interior pobre, atrasado, abandonado, onde o padre passava nas suas raras “desobrigas”. A sede da minha atual paróquia era um dos povoados mais atrasados que via o padre só uma vez por ano, celebrando num salão estreito e escuro, com duas portas na frente e uma no fundo, o forró tocando na vizinhança e os noivos sem saber assinar o seu próprio nome.

Eu sempre me perguntava: qual é a origem da fé desse povo, dos conceitos cristãos que vive, das verdades que crê e pratica. Os padres nas suas raras e rápidas passagens não puderam ter criado isso tudo. Restava-me concluir que era o Espírito Santo prometido por Jesus, operando misteriosa e milagrosamente no seu povo. Aprendi a crer no Espírito Santo e na unção destes meus irmãos para o seu sacerdócio comum.

- O Espírito Santo não nos dá alguma coisa, nós o recebemos ele mesmo, derramado no nosso coração;

- Ele nos conduz para à verdade e à liberdade;

- Ele sopra onde quer: isto é: em todos os cantos do mundo e do nosso coração;

- Pelo Espírito Santo que nos transforma segundo os moldes de Jesus recebemos

- novos olhos para enxergar;

- novos ouvidos para escutar;

- novas mãos para tocar;

- novos pés para sermos enviados.

O Espírito Santo dentro de nós nos liberta;

- para ser fortes, enquanto somos fracos;

- para ser livres, enquanto ameaçados a ser presos e escravizados;

- para ter alegria, enquanto sofremos dores;

- para ser ricos, enquanto somos pobres;

- para andar no caminho que nos faz descer, enquanto vivemos numa sociedade onde todos só querem subir e crescer.

O Espírito Santo não transmite capacidades para dominar alguma coisa ou alguma pessoa - ele precisa de um espaço aberto para nos sintonizar com as atitudes de Jesus... “que despojou-se... tornando-se semelhante ao ser humano”.

O sacerdócio comum tem a sua origem nesta unção pelo Espírito Santo. É ele que restaura a Igreja, dentro do nosso coração, e dentro da comunidade dos discípulos de Jesus.

É também o Espírito Santo que vai pregar o nosso retiro, vai nos chamar para “fixar os olhos em Jesus” e para entrar na fileira das testemunhas que atraem e confirmam os irmãos no seu caminho de fé e a restaurar o que está em ruínas.

Segunda Reflexão: “Não importa o que a gente diz ou faz, importante o que a gente é”.

Pe. Geraldo Gereon

Diante da cruz de São Damião - para São Francisco e para nós, o símbolo do pedido de Jesus, que queria a restauração da sua casa, sua igreja - nós vamos identificar na nuvem das testemunhas uma figura da maior importância para a trajetória do Irmão Carlos: o Padre Huvelin, sacerdote francês, que vivia em Paris, nascido em 1838 e falecido em 1910.

Huvelin cursou a École Normal Superieur e era um extraordinário historiador. Com vinte e nove anos de idade ele se ordenou padre, portanto uma vocação tardia. Primeiro era leigo exercendo o seu sacerdócio comum. Quase nada sabemos dessa primeira parte de sua vida. A partir de 1875, o encontramos como vigário da recém-criada paróquia de Santo Agostinho em Paris. A sua especialidade era: pregar e confessar. Ele fazia conferências, muito apreciadas pelos jovens, sobre história.

Padre Huvelin tinha uma grande sensibilidade pelas transformações do tempo moderno. Mas nada de proselitismo, nenhuma reação de poder e autoridade, tão comum na Igreja da época que achava poder resolver o problema pelo lançamento do “Syllabus”. Padre Huvelin, por exemplo, visitava, muitas vezes, o chamado “pai do agnosticismo”, Emile Litré antes da morte dele. Padre Huvelin possuía o dom de respeitar as lentas transformações e os segredos do coração das pessoas.

Na sua sensibilidade extraordinária Padre Huvelin dispensa aos seus parceiros um alto grau de compreensão e partilha. Conduzindo pessoas nos caminhos complicados da fé ele mesmo sofre, freqüentemente, de uma tristeza e de um abandono interior, numa espécie de “noite escura”. “A luz só vem para mim sendo para os outros, na medida como eles a procuram”, ele confessa (Madre Teresa de Calcutá afirma ter sofrido a mesma escuridão da fé).

Padre Huvelin fica longe de qualquer tipo de voluntarismo e organização, é homem das finas distinções, sempre próximo dos que o procuram com humildade. Ele recomenda às duas parentas de Irmão Carlos, que guardem silêncio como ele perante a liberdade do outro, que um dia tem que decidir sozinho sobre a sua opção.

Diz o Padre Huvelin: “Para alguém que procura o seu caminho, o essencial não é fazer sermão para ele, mas testemunhar que ele é amado”.

Irmão Carlos começa a procurar o Padre Huvelin depois de falar muitas vezes do que ele chama “uma oração estranha”: “Deus, se existis, deixai que eu vos conheça”.

Padre Huvelin, em vez de expor-lhe a religião, manda Irmão Carlos expor-se a Deus: “Ajoelha, confessa, comunga”. O que perdera sua fé em Deus, agora vai fazer a experiência de Deus. Irmão Carlos mesmo conta: “Eu, que tanto duvidara, não acreditei tudo num dia só”.

Padre Huvelin permite que tudo se desenvolva lentamente. Assim como Irmão Carlos se atirou com impetuosidade nos excessos da devassidão e da vontade de dominação, agora, já com vinte oito anos de idade, quer se atirar em Deus.

Padre Huvelin sabe detê-lo mansamente e com firmeza. Ele evita todo radicalismo. Para ele, ser cristão é levar uma vida de fé simples, comprovada no dia-a-dia, ao contrário daquela exaltação que seguia durante anos e que agora poderia praticar, também, no campo religioso. Sem nenhuma dúvida, Padre Huvelin preservou Irmão Carlos de se perder num misticismo ativista. Ele dizia: “Não importa o que a gente diz ou faz, importante é o que a gente é”.

Irmão Carlos começa seu caminho de transformação: lentamente deixa de ser o homem dos planos e programas exatos, pelos quais tentava dominar a si mesmo e subjugar os outros. Nos primeiros passos da sua conversão, queria deixar de uma vez os primeiros lugares e passar para o último lugar, se trancar num mosteiro da mais rigorosa observância. E Padre Huvelin ensina-lhe a paciência: o essencial da vida cristã não é fazer grandes obras ou trancar-se num lugar escuro. É, pelo contrário, “fazer tudo por amor” conforme o evangelho. E quanto ao último lugar Padre Huvelin deixou a famosa palavra: “Jesus ocupou o último lugar tão firmemente, que ninguém podia tirar dele”.

O conselho deste sábio pela experiência do próprio caminho é: fazer um ensaio de humanidade, ter clemência para consigo mesmo e bondade para com os outros, descobrindo, assim, a humanidade de Jesus. Para isso, o Padre Huvelin manda seu amigo fazer uma viagem para a Terra Santa. Essa viagem tornou-se decisiva para o recém-convertido: ele começa a entrar nos rastros de Jesus, visitando os lugares da vida simples de Jesus, especialmente Nazaré. Mesmo à distância, Padre Huvelin acompanha Irmão Carlos, no seu caminho ainda cheio de incertezas, desacertos, tentativas cheias de fervor e, também, de sempre novas mudanças: entra na Trapa, sai da Trapa; recusa-se a ser sacerdote, aceita ser ordenado. Padre Huvelin escreve: “Vai à Terra Santa, a Cafarnaum ou a Nazaré, vai até um convento franciscano, mas não entre, fique morando na sombra dele, só peça assistência espiritual e viva na pobreza, na portaria”.

Em Nazaré nasce a “Oração do abandono” e a confissão de Irmão Carlos: “Meu Jesus como fica pobre rapidamente quem lhe ama de todo coração”. “Não posso entender, como se pode amar sem o desejo, um desejo imperioso de identificação, de semelhança, e, sobretudo de partilha de toda fadiga, de todas as dificuldades e todas as durezas da vida”.

Lentamente Padre Huvelin conduziu Charles de Foucauld para ser o “Irmão Carlos”, como era chamado, pela primeira vez em Nazaré. Esse caminho, aparentemente tumultuado, o levou até os Tuaregs com os quais viveu até a morte. Consciente desse seu enraizamento em Nazaré ele escreve: “Há trinta e dois anos eu não deixei mais o norte da África... Não vejo ninguém, nem oficial militar, nem missionário, nem colono, que conhece suficientemente os nativos. Eu mesmo conheço mais ou menos o meu pedacinho de terra, aqui com os Tuaregs, mas o resto apenas superficialmente. Existe um mal que tem que ser remediado: os administradores, os oficiais, os missionários precisam de um contato maior com a população e de uma permanência mais demorada no mesmo lugar”.

A razão disso está nas suas raízes em Nazaré. Seu amigo coronel Laperinne escreve: “Sempre se pergunta, se o Padre Foucauld conseguiu muitas conversões. Não, nenhuma só - e mais: ele nem tenta. Ele diz: ‘A conversão do povo muçulmano não pode acontecer dentro de poucos anos’. Ele simplesmente procura difundir a moral cristã e recomenda-se pela bondade, pela justiça no seu lugar e pela sua abnegação”.

Estamos falando de Irmão Carlos, mas queríamos falar do “Abbé Huvelin” (Henri Huvelin) este sacerdote extraordinário, do qual acabamos de ouvir. Charles de Foucauld – o Santo Irmão Carlos – não existiria sem ele.

Abbé Huvelin, ordenado padre com 29 anos de idade, percorreu um longo caminho buscando luz, sinais de Deus sem os parâmetros convencionais, sem esquemas doutrinais, sem o clima sagrado dos ritos, sem os andaimes seguros da instituição clerical, na sociedade francesa agnóstica e secularizada, e nas petrificações eclesiásticas do século XIX. Abbé Huvelin encontrou, nas trevas insuportáveis, a pessoa de Jesus de Nazaré, o Deus encarnado, o Deus descido e sempre de novo descendo, nunca deixando ninguém ficar um só pedacinho abaixo dele, brigando pelo “último lugar que ninguém lhe podia arrebatar”. Lentamente acompanhou o Visconde Charles de Foucauld, militar e cientista condecorado, para descobrir Nazaré - e depois o deixou sumir no deserto abandonando-se para os mais abandonados.

Abbé Huvelin, o sacerdote de vocação tardia, de uma permanente e dolorosa busca de Deus, viveu, no meu entender, o mistério do sacerdócio comum de todos nós batizados, que procuramos seguir Jesus. Nós não podemos nos iludir pensando que tivéssemos superado o sacerdócio comum subindo para o sacerdócio ministerial. Nunca podemos ser sacerdotes ordenados sem a vivência consciente deste nosso sacerdócio comum. Não é verdade que pouco falamos, quase nunca explicamos, nem tampouco ensaiamos o sacerdócio comum com os nossos irmãos e irmãs das nossas comunidades?

Parece que não nos damos conta que Jesus, o bom pastor, nunca se ausentou do seu rebanho entregando-o a pastores substitutos (Jo 10, 1-10). Para sempre Ele está no meio do rebanho dando a sua vida por ele (cf Jo. cap. 17). Ele precisa de nós que somos porteiros que abrem as entradas e saídas do curral. Quem anda com o rebanho é Jesus, o único grande pastor. Padre Huvelin nos provou isso: Ele era o porteiro que abriu para Charles de Foucauld a cancela: Jesus pode passar, conduzir sua ovelha, fazer sua voz ser ouvida, chamar para o caminho a seguir.

Também me parece que não lemos direito a carta aos Hebreus: Gostamos de enfeitar convites festivos nossos citando mal Hebreus 5,1: “Tirados do meio do povo” e “constituídos representantes do povo nas suas relações com Deus”. Estes são, na verdade, os sacerdotes do Antigo Testamento. Não somos “tirados do meio do povo” somos “colocados no meio do povo” para ser “semelhante em tudo aos irmãos, como Jesus, por ser misericordiosos e merecedores de confiança”. Hebreus 2,16-17 é o texto-chave, junto com Hebreus 10,8-10.

Emmanuel Asi que identifica a espiritualidade sacerdotal do Novo Testamento pelo princípio da solidariedade do Deus encarnado no meio do povo pecador provoca e quase choca dizendo: “Onde reside a essência da missão sacerdotal no Novo Testamento? Não é na Eucaristia do pão e do vinho, mas, na Eucaristia de si mesmo e da vida... Jesus deve ter dito com frequência em Nazaré: ‘Isto é o meu corpo, isto é o meu sangue’. O momento culminante não foi no pão e no vinho da última ceia: foi na cruz. Quando Jesus disse: ‘Em tuas mãos entrego o meu espírito’, constitui-se o sacerdócio de Nazaré”.

Eu queria pedir ao Santo Irmão Carlos para chamar o Padre Huvelin, e que os dois juntos rogassem por nós presbíteros, com os nossos leigos e religiosos, com todo o povo de Deus que formamos juntos.

Terceira Reflexão: “Ser compassivo e digno de confiança”.

Pe. Geraldo Gereon

Na região onde resido, há quatro décadas, sempre ouvi falar do Santuário de Bom Jesus da Lapa, que fica no alto Rio São Francisco, no Estado da Bahia.

Conheço pessoas de minha paróquia, que já foram a Bom Jesus da Lapa em romaria, várias vezes. Uma comunidade do interior de minha paróquia tem o Bom Jesus da Lapa como padroeiro. Sempre queria conhecer este grande santuário do sertão nordestino. No ano passado consegui realizar o meu sonho. De Juazeiro da Bahia viajei 16 horas de ônibus até chegar ao meu destino. Passei três dias de encanto e oração naquele lugar.

A primeira surpresa, para o romeiro de primeira viajem, é a beleza natural: À beira do rio São Francisco, no seu largo vale no alto sertão baiano, eleva-se um morro solitário com 90 m de altura. Nele se encontra uma monumental gruta de calcita e uma série de grutas menores, uma catedral enorme “feita de pedra e luz”.

A segunda surpresa é a história do santuário. É a história de um leigo piedoso que viveu o sacerdócio comum de todos os batizados até 49 anos de idade, quando foi ordenado sacerdote: Francisco de Mendonça Mar.

Francisco nasceu em Lisboa em 1657. Com 22 anos de idade viajou para o Brasil. Viveu em Salvador exercendo a profissão de ourives e pintor. Em 1688 foi contratado para pintar o palácio do governador, em Salvador. Terminado o serviço, negaram-lhe o pagamento. Ao reivindicar os seus direitos, os artistas foram jogados na prisão. Quando foi libertado em 1691, Francisco passou por uma radical mudança. Tinha ouvido um sermão do Pe. Antonio Vieira sobre Mateus 6, 24: “Ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro”. Francisco resolveu abandonar a sociedade injusta e gananciosa de Salvador. Libertou seus escravos. Adquiriu um crucifixo de cerca de 80 cm de altura, o “Bom Jesus” e uma pequena imagem de Nossa Senhora da Soledade, como os portugueses chamam Nossa Senhora das Dores. Vestiu-se como um peregrino e começou uma longa caminhada de mais de 1000 km, pelo sertão baiano. Inspirava-o uma intuição misteriosa: “Busca o calvário na gruta”. Na gruta que encontrou naquele morro na beira do Rio São Francisco colocou as duas imagens. Tinha 34 anos de idade e queria ficar como eremita naquele local.

Mas, começa aqui uma outra história. O rio São Francisco, naquela época, era o único caminho de penetração das rotas dos mineradores, no interior do Brasil. Crescia o movimento das embarcações de aventureiros e catadores de ouro. Paravam no morro da gruta e conheciam o “monge” Francisco. Este lhes passava mensagens religiosas e convenceu pelo testemunho da sua vida. Pregava o amor ao Bom Jesus a aventureiros atrás de riquezas.

Havia outros movimentos naquela região. Das minas de ouro voltavam desiludidos, doentes, feridos. Na área ribeirinha havia quilombos de escravos negros e aldeias de índios fugitivos. O monge eremita começou então uma nova atividade: cuidar dos pobres e dos enfermos. Construiu, na entrada da gruta, um pequeno hospital para os doentes e um asilo para os pobres. Cada vez mais gente procurava proteção e amparo no santuário do Bom Jesus. Nascia a pequena vila ao redor da gruta.

A notícia chegou aos ouvidos do arcebispo da Bahia. Este mandou um visitador geral que averiguou os fatos do culto ao Bom Jesus, e da vida exemplar do monge Francisco. Mais tarde oficializou o culto ao Bom Jesus e a Nossa Senhora da Soledade. Convidou Francisco Mendonça Mar para Salvador e, três anos depois, em 1706, o ordenou padre, tendo já 49 anos de idade. Agora, sacerdote, chamando-se Padre Francisco da Soledade, pregava o Evangelho e administrava os sacramentos. Trazia junto de si os que sofriam e os abandonados para protegê-los e ampara-los. Era ele que se doava em sacrifício para expiar os crimes dos invasores e dos conquistadores, crime que se cometia contra o povo brasileiro. Com seu humilde serviço de enfermeiro, sabia apresentar a bondade de Jesus Cristo crucificado, mostrando-a pelas suas palavras e pelas suas obras.

Na preocupação do Padre Francisco pela manutenção dos seus pobres, ele dirigiu uma petição ao Rei de Portugal pedindo-lhe terras para o seu povo. Recebeu essas terras, que os pobres cultivavam para o seu sustento. Hoje chamamos isso de assentamento de agricultores sem terra. Muitos anos depois a diocese de Salvador criou uma Irmandade, que tão mal administrava essas terras, que tinha que ser extinta em 1894 quando os seus membros, todos eles coronéis, devolveram as chaves do santuário, mas se apoderaram das suas fazendas.

Pe. Francisco da Soledade morreu em 1722 e foi sepultado na gruta do Santuário que fundou trazendo a imagem do Bom Jesus. Atualmente está em andamento o processo de beatificação do padre Francisco da Soledade.

A trajetória do Fundador do Santuário de Bom Jesus da Lapa nos interessa pelo seguinte:

Trata-se de um cristão batizado, leigo, ordenado padre, com 49 anos de idade, exercendo o seu sacerdócio ministerial apenas durante 16 anos. A maior parte da sua vida, ele viveu o sacerdócio comum do povo de Deus. Isto aparece claramente na sua biografia:

- ele renunciou à vida dos interesses materiais numa sociedade injusta e violenta;

- ele tornou-se um seguidor do Bom Jesus crucificado;

- ele ofereceu a sua vida pelos pobres abandonados, injustiçados e doentes;

- ele sacrificou-se pela fraternidade e libertação dos irmãos;

- ele exerceu o sacerdócio ministerial como consequência de uma evolução orgânica da sua já praticada atitude sacerdotal;

- ele viveu em total conformidade com as credenciais do sacerdócio de Jesus, conforme as afirmações da carta aos Hebreus: ser compassivo e digno de confiança. Isto o levou a viver o sacerdócio como um só: o sacerdócio comum e o sacerdócio ministerial, como que em pé de igualdade. Pode-se dizer: a distinção entre as duas formas é secundária.

E nós: o que poderíamos fazer para superar as distâncias entre os fiéis do sacerdócio comum e os fiéis ordenados sacerdotes?

Vamos consultar Mt 10, 7-16 (é o mesmo texto que tocou São Francisco para a sua radical virada): o envio e a instrução missionária dos discípulos.

- os que são enviados, são “discípulos” de Jesus, não representantes de um poder que se estabelece. Eles têm que se inserir, isto é, não levar provisão: nem bens para se manter, ou, ainda pior, um documento do bispo para tomar “posse”.

- a ordem é: não ir aos pagãos, nem aos samaritanos, mas ir “às ovelhas perdidas”, ou “ovelhas sem pastor”, isto é, perdidas por culpa dos pastores. Mas não para serem outros pastores, mas para abrir as porteiras para o Bom Pastor Jesus.

Qual é, então, a sistemática da missão?

Deve se formar a comunidade que pratica o que Jesus ensina. Este é o sentido de Mt 28, 19, nas últimas palavras de Jesus: “Fazei discípulos entre as nações” e não fazei as nações discípulas. A pregação nos areópagos, desde os tempos de São Paulo, não dá certo. Quem evangeliza é a comunidade dos discípulos pelo que ela é e vive. Voltando para Mt 9,37-38 ouvimos: evangelizar é trabalhar na messe: mas trabalhar colhendo, pois a semente e o crescimento são de Deus.

- outro detalhe da missão: os discípulos terão que anunciar - anunciar o quê? Que o Reino de Deus já chegou, já está presente, um tesouro já descoberto, uma roça já no ponto de colher. E os discípulos terão que curar e expulsar as forças do mal. São os sinais que provam a chegada do Reino. Portanto, a Palavra e o cuidado social compõem a única missão dos discípulos.

Teríamos de perceber os apelos de Jesus para nós, sacerdotes missionários.

- precisamos ter dentro de nós a consciência de sermos “povo”, ou seja: esquecer que somos clero, evitar as armadilhas do “clericalismo” e do “neoclericalismo”. Desde o tempo dos doze apóstolos até os dias de hoje esta armadilha se arma sempre de novo;

- a palavra certa que expressa a relação entre os ministros e o povo de Deus é “inserir”.

O Documento de Aparecida define a figura do presbítero usando, repetidas vezes, a palavra “inserir”. Os presbíteros são discípulos missionários de Jesus como todos os batizados, inseridos no presbitério, inseridos na cultura atual, homens de misericórdia e compaixão. O sacerdócio ministerial é estabelecido a serviço do sacerdócio comum dos fiéis, ambos participam do único sacerdócio de Cristo.

Se no lugar da posse de um pároco numa paróquia, se celebrasse a inserção dele naquele povo de Deus, o rito poderia ser bem diferente. O rito de posse ficaria para a Irmandade de São Pio X.

Se surgir o problema com o padre de uma paróquia, muitas vezes, se diz: O bispo tem um problema com tal padre. Esses problemas, não raro, são resolvidos no espírito corporativista: o bispo e o padre resolvem o seu problema. Por que não se diz: A paróquia tem um problema com o seu presbítero – o bispo tem que cuidar dessa paróquia?

- se o padre é discípulo inserido no meio dos discípulos, conforme Mt 10, ele tem que curar, purificar, ressuscitar etc. – só anunciar não seria suficiente. Não existe nenhuma contradição entre o religioso e o social – é, na verdade, uma única coisa para a qual Jesus envia.

O padre não vai esperar que venha alguém pedir esmola e não acrescenta só uma prece pelos pobres. Ele tem que ter um projeto específico, descobrir onde deve curar, etc... envolver a comunidade, andar junto com ela. (Não vamos contar de novo a vida do Padre Francisco da Soledade).

Teríamos de ter a coragem de avaliar a nossa caminhada de Igreja, de diocese, de paróquia, da Fraternidade Sacerdotal Jesus+Caritas. Encontramos critérios suficientes no evangelho de Mateus e na Escritura toda.

Terminando, só quero acrescentar uma observação que todo o ano me incomoda no tempo da quaresma. Durante décadas nós tínhamos, na Quaresma, a “Missa da Campanha da Fraternidade”, cantos que levavam o assunto da campanha daquele ano para todas as partes cantadas da missa. Há alguns anos, só temos o único hino da Campanha da Fraternidade, os outros são do Hinário Litúrgico e de outros esquemas rituais. O cartaz da campanha, ultimamente, é uma fotomontagem com complicados comentários, e não a obra de um foto-repórter de primeira linha que consegue retratar a realidade a ser percebida e refletida. Em vez de ver para julgar e agir, nós montamos o que já julgamos. Isso é lamentável. Também não podemos desperceber os inúmeros cantos de movimentos e artistas ordenados, que na sua letra só usam a primeira pessoa do singular: eu e meu Jesus.

Graças a Deus, a nossa Carta aos Hebreus nos aponta “uma nuvem de testemunhas” que não se esgotou com São João Batista. Ela continua carregada de chuva abundante que nos deixa cheios de vida. (Hoje já aumentou para quatro o conjunto de velas ao redor da Cruz de São Damião – quem sabe, a Igreja tem chance de ser restaurada).

Quarta Reflexão – “Fora dos pobres não há salvação”.

Pe. Geraldo Gereon

Hoje, eu trago para vocês este ostensório; ele tem a parte comum de todos os ostensórios, cuja finalidade conhecemos. Mas este exemplar é especial. Ele tem uma aplicação de pedras que não são preciosas nem lapidadas. São pedras que eu recolhi nas trincheiras do campo de batalha de Canudos, no norte da Bahia. Visitei aquele famoso lugar da tragédia sanguenta dos nordestinos miseráveis, massacrados com o seu líder Antonio Conselheiro, no final do século XIX. Dormi uma noite nesse campo abandonado e trouxe estas pedras coletadas dos lugares onde a gente podia ter a certeza de nelas ter corrido o sangue dos massacrados. Esse sangue foi derramado pela mesma causa que levou Jesus a morrer e ressuscitar e que na hóstia consagrada está presente nos nossos altares.

Quero lançar com vocês um pequeno olhar, em Canudos, e na figura central: Antonio Conselheiro. Não é fácil interpretar o fenômeno de Canudos. Existem versões bastante divergentes e contraditórias. Não podemos analisá-las aqui. Sem dúvida, porém, a chave da leitura é a pessoa de Antonio Conselheiro. Ele parte de uma experiência interior, com sua biografia tumultuada no sertão do Ceará, de Pernambuco e da Bahia, em meados do século XIX. Ele desenvolve uma espiritualidade que o faz experimentar a presença de Deus no mundo, e chega a uma conversão profunda que o leva a uma missão a ser cumprida. Antonio Conselheiro torna-se o cristão leigo que exerce o sacerdócio comum de todos os fiéis. Torna-se discípulo do Bom Jesus, que evangeliza dentro de sua comunidade.

Primeiro: Antonio Conselheiro torna-se seguidor fervoroso do Bom Jesus (traz consigo o manuscrito do evangelho de Mateus, copiado por ele manualmente). Questiona, como Jesus, a sociedade hipócrita e injusta da igreja institucional e do Estado. Nas pegadas do Bom Jesus chega a praticar o acolhimento dos pobres, sua defesa e proteção e a mobilização dos desprotegidos num projeto alternativo.

Segundo: Antonio Conselheiro, torna-se profeta. Ele transmite a mensagem do Bom Jesus ao coração do sertanejo, com os traços de Deus-Pai amoroso e misericordioso. A “Lei da graça” deste Deus é a lei dos pobres e dos pequenos. Daí a luta contra as injustiças, o luxo e as riquezas.

Terceiro: Antonio Conselheiro torna-se um peregrino. Em face das rupturas e injustiças sociais no sertão nordestino da época, tem diversas saídas: alguns apelam para a migração interna, buscando outras paragens. Outros apelam para o cangaço, amplamente praticado no sertão, como o canal da vingança, reivindicação de direitos e justiça feita pelas próprias mãos. Antonio Conselheiro com seus beatos preferem o ideal bíblico do peregrino em busca da cidade santa.

Irmanando-se com os marginalizados da sociedade pouco cristã, Antonio Conselheiro lhes dá uma nova identidade. Ele prega num vácuo que a Igreja deixou no seu discurso oficial. “Ele se reapropria do Deus dos pobres”.

Neste sentido ele resiste à permanente dúvida sobre a sua ortodoxia questionada muitas vezes. No sentido do evangelho de Jesus, Antonio Conselheiro é puro e autêntico: na sua luta pela instalação de uma sociedade nova, ele tem como modelo a própria comunidade de base formada em torno dele, ela evangeliza, através de um projeto popular de convivência humana e de culto a Deus, ou seja: a declarada e praticada opção pelos pobres.

Queremos aqui colocar outra pessoa, contemporânea de Antonio Conselheiro, que influenciou profundamente o líder de Canudos, embora os seus caminhos se tornassem bem diferentes. É o Pe. José Antonio Maria Ibiapina, nordestino do Ceará, marcado por experiências parecidas com as do Antonio Conselheiro. Nascido em 1806, Pe. Ibiapina foi ordenado padre com 47 anos de idade, numa história parecida, neste detalhe, com a do Irmão Carlos, Pe. Huvelin, Pe. Francisco da Soledade. Ordenou-se padre, por que outros o sugeriram e pediram. Teve uma longa trajetória como leigo que exerceu o seu sacerdócio comum.

Pe. Ibiapina era de Sobral, aqui no Ceará. Seu pai foi fuzilado por participar da revolução de 1824, chamada “Confederação do Equador”, seu irmão, pelo mesmo motivo, foi trucidado na prisão de Fernando de Noronha, Ibiapina era um homem culto, tornou-se juiz de direito e chefe da polícia de Quixeramobim, cidade natal de Antonio Conselheiro. Naquela época, havia nessa cidade um confronto sangrento entre a família Maciel à qual pertencia Antonio Conselheiro e a família Araújo. Ibiapina foi deputado estadual e federal, advogado afamado em Recife a serviço dos pobres e humildes, sendo um dos melhores juristas da época.

A partir de 1850 Ibiapina mudou de vida. Ele larga a profissão e se tranca numa chácara perto de Recife, durante três anos, estudando e meditando. Solicitado pelo bispo de Recife, é ordenado padre, tornando-se vigário geral e professor do seminário. Depois de dois anos nessa atividade Ibiapina deixa Recife e os cargos na diocese. Vai ao sertão pernambucano castigado pela cólera, ao encontro das populações miseráveis, tornando-se ao longo dos anos o missionário-apóstolo do nordeste, percorrendo cinco estados no meio dos sertanejos abandonados.

Pe. Ibiapina encontrou uma sociedade em estado de dissolução. Dizia ele: “O vício, partindo de bem alto e do mais alto, arrastou consigo muitas massas, muita miséria”. A ruína dos costumes e a miséria das populações sertanejas o tornam o pregador da denúncia do pecado. Chama para converter-se ao Bom Jesus no meio de uma miséria profunda que assolava o povo humilde. Seca e fome desfiguravam a sociedade sertaneja. As altas camadas da sociedade corrompiam a moral do povo. As elites do povo, na maioria, eram liberais influenciadas pela maçonaria, e combatiam as lideranças da Igreja católica. Pe. Ibiapina colocava-se ao lado do Bom Jesus nesta guerra. Muito antes de ser sacerdote ordenado, Ibiapina já vivia a atitude sacerdotal de dar a sua vida pelos pobres e aflitos. Toda sua longa trajetória missionária era ensaiar com os pobres do sertão sofredor a unidade da vida espiritual: junto com a prática dos sacramentos e das devoções “a humildade e a caridade”, tratar dos enfermos abandonados e ter compaixão dos pobres aflitos. O culto ao Bom Jesus era socorrer os retirantes flagelados, sem nada guardar para si. A sua missão era toda identificada com os miseráveis e aflitos.

A permanência do Pe. Ibiapina nos lugares das missões era demorada porque reunia o povo em obras comunitárias, realizadas em mutirão: açudes, estradas, escolas, hospitais, as “casas da caridade” mantidas pela congregação leiga das beatas e dos irmãos.

Padre Ibiapina vivia uma espiritualidade profundamente encarnada, testemunhando que o evangelho sem as obras é puro vento. Pela sua experiência da miséria chegou a descobrir a percepção religiosa desta miséria: a revelação da face de Deus no rosto dos miseráveis. A sua missão tinha que ser o compromisso com esse povo abandonado e esquecido.

Antônio Conselheiro acompanhou o Padre Mestre, que já conhecia, como juiz e chefe da polícia, na sua terra Quixeramobim. Abandonado pela mulher, Antonio Conselheiro acompanhava, por algum tempo, o missionário Ibiapina, como irmão pedinte, angariando fundos para as construções do antigo magistrado. Aprendeu com Ibiapina a “rezar o terço, à boca da noite, e a Salve Rainha, ao meio dia”. Em Canudos não se dizia “como vai” e “adeus”, mas “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”. Esta saudação foi introduzida por Ibiapina.

O padre Ibiapina nos deixou uma famosa oração que expressa toda a sua opção que vivia no interior do sertão:

“Risquei um pequeno círculo

dentro dele me meti

para escapar ser lembrado

com cuidado me escondi.

No centro da caridade

coloquei minha existência

no ministério ocupado

cercado só de inocência

Passei os dias olhando

para o mundo com temor

procurei fugir dos males

que cercam o pecador

Eu vi que Deus protegia

a causa que eu defendia

Por isso vi que era dele

esta vida que eu vivia.

Escapei de grandes males

e se grandes bens não fiz

Não foi por Deus me faltar

fui eu mesmo que não quis.

Ah! pudesse eu agora

fazer todo dia o bem

em favor da humanidade

que chora porque não tem.

Quando, no ano 2000, pedi ao meu bispo que pudesse sair da paróquia onde vivi, durante 34 anos, eu citei esse texto do Pe. Ibiapina e disse: o círculo já está riscado falta eu me meter nele.

Sem dúvida, a vida desses dois personagens do sertão nordestino tem uma coisa em comum: o que hoje chamamos de “opção preferencial pelos pobres”.

Este termo existe na América Latina desde as Assembléias de Medellín, passa por Puebla e Santo Domingos até Aparecida. Nessa última Conferência do nosso episcopado, novamente é ratificada. Parece que entrou no meio dos dogmas, onde se crê em Deus Pai, Filho e Espírito Santo. O documento de Aparecida explica bem: “A opção pelos pobres é “preferencial” porque deve atravessar todas as nossas estruturas e prioridades pastorais”. Diz também, o Documento de Aparecida que “nossa opção pelos pobres corre o risco de ficar em plano teórico ou emotivo, sem verdadeira incidência em nossos comportamentos e em nossas decisões”. Os redatores do texto sabem do que estão falando.

Não faltam sugestões práticas para concretizar esta opção pelos pobres. Mas as duas vidas do Conselheiro e do Padre Mestre mostram que a sua opção pelos pobres se tornou uma espiritualidade, totalmente esclarecida desde quando se caminha com o Bom Jesus. Jesus não falou que um e outro dos discípulos poderia, quem sabe, chegar a essa opção. A opção, como escolha livre, já foi feita por Deus, no seu Filho Jesus. O discípulo que faz a opção de seguir Jesus, não tem mais como optar: seguindo Jesus no seu caminho, ele já está no meio dos pobres.

Dois textos esclarecem isso muito bem: (1). Mateus 11,2-6 – (2). 2Cor 8,9.

Como a opção preferencial pelos pobres vai “atravessar todas as prioridades pastorais, por exemplo nessas eternas comemorações: ano disso, ano daquilo? Vejamos o ano sacerdotal, em curso. No contexto dele é lembrada a opção preferencial pelos pobres? O cardeal da Congregação do Clero, nosso conterrâneo Dom Cláudio Hummes, escreveu uma carta aos sacerdotes do mundo inteiro, por ocasião desse ano sacerdotal, tratando da necessidade da oração. Cita São João Crisóstomo, do século IV, que recomenda aos pastores a necessária oração, para que vençam o diabo e não pereçam. Não tem nenhuma dúvida sobre isso. O cardeal concorda com o velho patriarca, que padre sem oração morre por inanição e, com a diminuição dos pastores, nossas comunidades serão destruídas. Talvez o nosso querido irmão cardeal, há muito tempo não batizou mais uma criança que é ungida para ser inserida em Cristo, profeta, sacerdote e rei. Portanto, tem que exercer o seu sacerdócio comum, não como um ato individual, mas dentro da comunidade que só morre com a morte do seu último integrante.

Acho que a opção preferencial pelos pobres não é uma questão de programação pastoral - é antes uma questão de espiritualidade, a partir de um encontro com Jesus, e de uma conversão, é dom do Espírito Santo. Ele vem e atua quando se reza por ele.

Quero acrescentar um pensamento de Jon Sobrino, o único sobrevivente do massacre dos seis padres jesuítas, em El Salvador, em 1989. Durante 15 anos, Jon Sobrino escreveu, anualmente, uma carta fictícia a um desses mártires, o seu amigo Ignácio Elacuría, conversando com ele sobre aquilo que causou essa tragédia. Na última carta do ano 2005 ele se refere aos termos teológicos de pecado e salvação. Hoje, pouco se fala deles. O pecado não falta, falta exame de consciência e confissão. Nem os governos, nem os grandes banqueiros, nem os militares vão se confessar. Nem tão pouco se fala mais em salvação, nem da alma e nem do corpo. Também não precisa. O interesse principal da sociedade é prosperidade. Pouco se pergunta, se mais prosperidade traz mais justiça, mais verdade, mais luz, mais liberdade, mais bondade.

Nesse contexto, Sobrino coloca uma adaptação de um princípio teológico antigo: “Extra pauperes nulla salus” – fora dos pobres não há salvação. Ele se refere ao “Extra ecclesiam nulla salus” – fora da Igreja não há salvação. Sobrino chama essa tese “o testamento da Teologia da Libertação”. O essencial da nossa fé pode-se resumir a partir dos pobres. Pois a verdade central è: a salvação vem do Servo Sofredor, do Cristo crucificado.

Canudos com Antonio Conselheiro e o missionário sertanejo Pe. Ibiapina são, na verdade, mais duas testemunhas nesta “nuvem em torno de nós”. Eles nos levam a “fixar os olhos em Jesus” para “restaurar” a nossa Igreja.

Quinta Reflexão: “A vida entregue aos irmãos

– o único poder do povo sacerdotal”.

Pe. Geraldo Gereon

Há quarenta e três anos vivo no centro do semi-árido piauiense. Vi seis grandes secas, fora as meia-secas (seca verde) .Vi uma grande enchente em Picos quando ocupei a matriz de Picos com as famílias desabrigadas. Durante muitos anos tentei por inúmeras iniciativas vencer algumas causas da pobreza e transformar com os pobres a sua situação.Tentei mobilizar, aqui e no Exterior, pessoas e grupos que nos ajudassem, e canalizei recursos nos grandes e pequenos projetos com os pobres.

Sempre tive uma preocupação: não deixar os pobres ser apenas destinatários da generosidade dos outros, mas ensaiar com eles essa mesma generosidade, a partilha, o “ter tudo em comum”. E isso é mais difícil do que arranjar recursos para algum projeto. Por outro lado, o potencial de generosidade entre os pobres é impressionante e animador. Nunca pode ser sufocado pelo paternalismo.

Por isso, nós criamos, anos atrás, uma romaria e um evento para toda a região da paróquia de Simplício Mendes que hoje são 10 municípios e três paróquias. Anualmente, reunimos alguns milhares de fiéis no chamado “Encontro da Caridade”. A data é o dia 17 de novembro, festa de Santa Isabel, padroeira das obras da caridade. Encontramos-nos na beira do rio Canindé, onde a paróquia, há muitos anos, construiu uma ponte. Numa grande celebração eucarística ao ar livre, tratamos com o Cristo ressuscitado o assunto da caridade: com textos próprios, encenações, símbolos, apresentações das comunidades.

A grande inspiração é o testemunho de Santa Isabel. Sua vida é lembrada, seu testemunho colocado na nossa história.

Santa Isabel é a rainha que deixou a vida de poder, de riqueza e de luxo, às custas do povo pobre, e se inseriu no mundo destes pobres e doentes.

No ano passado, explicamos a vida de Santa Isabel, que era contemporânea de São Francisco, através das duas coroas: a coroa deposta da rainha, e a coroa de espinhos de Jesus assumida, sinal da vida doada e sacrificada pelos pobres. Assim como Isabel desce para sempre do castelo em cima do morro, ela desce com Jesus para dentro do mundo dos pobres, gasta o que tem num hospital, onde ela mesma se desgasta no serviço aos doentes até morrer exausta e contaminada, com apenas 24 anos de idade. Na hora da sua morte dirigiu a sua última palavra a uma companheira: “Saiba que eu era muito feliz”.

Santa Isabel é para nós tão importante, porque ela é como que uma irmã espiritual de São Francisco – ela nasceu em 1207 e morreu em 1231. Os dois se conheciam por correspondência. O nosso “Encontro da Caridade” todo ano é um momento em que procuramos definir a nossa identidade como povo de Deus: seguir Jesus, na sua descida para o último lugar, no gesto do samaritano, que levanta do chão o assaltado ferido. Se essa luz não iluminar o nosso caminho, não acertamos a nossa espiritualidade, as nossas liturgias, os nossos compromissos proféticos, as nossas atividades sociais, todas as nossas pastorais.

Colocamos, aqui, como texto-chave para o nosso retiro, as palavras da carta aos Hebreus: elas apontam para uma “nuvem de testemunhas que nos rodeia” e nos ajuda a “deixar de lado o que nos atrapalha e o pecado que nos envolve”. Nós descobrimos nesta nuvem, que começa com Abraão, algumas pessoas que nos acompanham neste retiro: São Francisco, Pe. Huvelin, Irmão Carlos, Pe, Francisco da Soledade, Antonio Conselheiro, Pe. Ibiapina, agora Santa Isabel – ela inspira comunidades pobres nordestinas a se tornarem como que “Casas de Caridade” conforme os sonhos do Pe. Ibiapina.

Todas essas pessoas têm uma coisa em comum: Romperam com seu caminho já traçado. “Com os olhos fixos em Jesus” deixaram uma vida já instalada, entenderam que a vocação do discípulo de Jesus é descer com ele na atitude sacerdotal da oferta por compaixão, da vida dada pelo irmão sofredor, que revela o rosto de Deus. Tirando Pe. Huvelin, de quem não temos informações detalhadas a não ser da sua vocação tardia, os outros padres não procuraram esta ruptura para se tornar sacerdote, o sacerdócio lhes foi oferecido depois de ter iniciado o caminho do discípulo do Bom Pastor. Santa Isabel não entrou em nenhum convento de vida religiosa, instalou-se num hospital construído e mantido por ela. São Francisco nunca passou do diaconato. É evidente, que a sua conversão os levou todos a seguir Jesus na descida para dentro da obscuridade do Deus, com face humana, destronado e desclassificado com os oprimidos e perdidos.

Emmanuel Asi, irmão nosso paquistanês, acerta bem essa definição: “O Deus de Nazaré é um Deus leigo. Esse fato gerou o choque básico, a tensão conflitiva e a fundamental diferença entre os ensinamentos de Jesus e os mestres e sacerdotes de seu tempo... Jesus ensina que a teologia deve influenciar a sociologia. Em outras palavras: se você pretende falar de Deus, deve agir de acordo com a prática de Deus nas revelações humanas”. Todos os nossos amigos da “nuvem de testemunhas” fizeram a experiência de Nazaré, nos atestam o poder da fraqueza.

Em Mt 4,1-11 acompanhamos Jesus nas suas tentações: pedra para virar pão, queda para virar vôo e adoração para virar poder. Todas essas tentações querem estimular Jesus a usar o seu poder, o poder divino. É a tentação mais sedutora.

A sociedade moderna cultiva, sem vergonha, a idolatria do caminho de cima, do crescimento, da prosperidade sempre maior. Ninguém consegue ser eleito para um cargo público que não prometa que a renda e o poder da nação vão crescer. Programas de aceleração do crescimento surgiram em muitas nações. Todo mundo quer ser o número um.

Naturalmente a tentação do poder existe, também, na igreja-instituição, à qual servimos. Nós podemos chegar a alimentar a ilusão de que a ambição do poder e a vontade de serviço sejam a mesma coisa. Somos capazes de ambicionar posições de influência em prol do Reino de Deus. Parece-nos impossível que a impotência possa levar para qualquer coisa boa. Coisa boa é o poder que tem muitas feições: dinheiro, fama, inteligência, certas capacidades - e o poder sagrado; o poder sacerdotal; o poder hierárquico, o poder ritual; o poder pastoral; o poder doutrinal; o poder moralizante e condenatório – poder que não acaba mais.

Lembro-me de uma reunião do Conselho Pastoral com o bispo, aonde se chegou à questão crucial: “nós decidimos ou não?” O bispo pediu um tempo, na pausa do almoço, e foi se certificar em manuais teológicos e voltou informando: “Vocês não decidem, quem decide é o bispo” – sem nenhuma explicação mais diferenciada. Aí, a turma fechou os cadernos: se é assim, não vamos mais perder tempo.

Tenho um colega que se expressa assim: vocês têm que me engolir – os insatisfeitos que se retirem.

Uma forma de nós usarmos o poder é nos encostar nos poderosos, que exercem este poder econômica ou politicamente. Evidentemente procuramos “apenas” apoio pastoral, por exemplo: fornecer transporte, financiar encontros, arranjar um empreguinho, uma disposição, etc.. O benfeitor, naturalmente, merece gratidão, um horário extra, um leve apoio nas eleições, uma vista grossa nas suas escorregadelas. Usufruir-se do poder vira servir ao poder. Os privilegiados se servem mutuamente, se defendem juntos e se perpetuam no poder. Colaboradores abnegados nas pastorais, às vezes, mal conseguem camuflar a sua sede de poder. Jesus, na sua descida, fica lá em baixo rodeado pelos que querem subir.

Lembro-me, de passagem: Na minha diocese de origem, no tempo da minha infância, havia um arcebispo que gostava de “pontificar”. Contava-se que, na festa de Cristo Rei, Jesus e São Pedro entravam na catedral daquela diocese na hora da missa festiva. Jesus não quis passar do portal da entrada, olhou e disse a São Pedro: Pedro, vamos embora – aqui tem outro rei. (Mas não deixamos de sustentar: De mortibus nihil sine bene – dos mortos só se fala bem)

Entrar no deserto para ser tentado é nenhum passeio, não é saborear a grandeza de Deus. Tentação também não é um simples incômodo – a gente tem que agüentar – vai passar. Tentação seduz, atrai, tem argumento, desmantela raciocínios claros.

A tentação mais sedutora é a do poder. Nada é tão difícil para superar do que a ambição pelo poder, o desejo de ser importante e conceituado. Também na vida sacerdotal e pastoral existe esta tentação de fazer algo que é útil e que o povo aplaude. Nós todos somos da sociedade moderna que colocou como base do serviço a produtividade. A nossa profissão ainda vale mais um pouco, porque nasce de uma vocação. Estudando ainda mais, podemos ser mais competentes e mais eficientes, mais conceituados. Estou falando da tentação, não de ninguém que tivesse caído nela. Eu estou dizendo que o agir com competência e eficiência tem o seu valor, mas não pode ser a base da nossa identidade de cristãos.

A tentação abalou Jesus no deserto, como não nos consegue abalar? A nossa cultura, por exemplo, declara que a quantidade de espectadores, ouvintes ou participantes faz com que preste, o que se apresenta. Tanto nas nossas avaliações como nos nossos planejamentos gostamos de apresentar números e quantidade..

Difícil, no entanto, é acreditar que a salvação veio do pequeno resto de Israel. Difícil é acreditar que nosso Deus veio na figura de um servo, entrou em Jerusalém montado num jumento, foi executado como um criminoso. Mais difícil ainda é acreditar que um punhado de pescadores levou a Boa Nova ao mundo.

Se não aprendemos a servir com a nossa impotência, dificilmente nos tornamos solidários com os irmãos, formando a comunidade dos fracos, que revela a misericórdia de Deus. O nosso lugar de falar para eles tem que ser lá onde eles sentem as suas dores, lá onde eles não esbanjam auto-estima, mas estão inseguros, onde arriscamos com eles dúvidas e questionamentos. Jesus nos manda para dentro do mundo nus, vulneráveis e fracos.

Só assim o Espírito Santo tem como agir. Nessas tentações inevitáveis temos que andar com a resposta de Jesus na ponta da língua: ”Só a Deus servimos, ouvimos e adoramos.” “Só Deus é grande” era o lema do Antonio Conselheiro. Ele e o povo de Canudos viveram e morreram com essa palavra nos lábios.

A biografia do Irmão Carlos conta como ele foi envolvido no poder colonial da França desde a perigosa viagem pelos Marrocos até a sua presença entre os Tuaregs. Ele se entregava com toda consciência a Jesus de Nazaré, mas percorre um longo caminho para assimilar Nazaré. A sua total impotência experimenta finalmente sob a mira do fuzil que apagou a sua vida.

Poucos dias atrás, uma emissora de TV do Piauí fez uma grande volta pelo estado para produzir uma reportagem sobre o Piauí novo que cresceu, evoluiu, subiu na escala dos índices econômicos. Procurou-me para filmar as nossas obras, mostrar os avanços, apresentar números. Eu levei a conversa numa outra direção. Expliquei a nossa caminhada com os nossos agricultores pobres, a tentativa de transformar situações, deixando eles mesmos dar os passos, despertando a consciência da sua dignidade e capacidade. Precisa de paciência e humildade para esse processo lento dar resultados. Parece que os jornalistas achavam que o padre não entendeu bem o que eles queriam. A repórter observou em certo momento: “parece que vocês aqui são muito religiosos”. Pensei: Graças a Deus, a ficha caiu. “Só Deus é grande”. Mas conclui que este testemunho pouco convenceu.

Voltemos às duas coroas: a coroa de ouro, tirada da cabeça, rejeitada como sinal de uma identificação errada. A outra coroa, a de espinhos: só em pegar nela já fura os dedos, quanto mais quando imprensada na cabeça – aí o sangue corre.

Agora é hora de nós tirarmos as nossas coroas do poder que se impõe e manipula até a violência. Não tem quem não possa perceber a coroa na sua cabeça, de uso diário, parte dos nossos paramentos, sinal da eterna tentação do poder. O Provérbio fala de pessoas que tem medo de quebrar uma ponta só da sua coroa. Bom mesmo é tirar ela toda. Ela empata a quem desce com Jesus.

Só a coroa de espinhos de Jesus nos levará a dizer um dia: “Saiba que eu era muito feliz.”

Sexta Reflexão: “Não casados por causa do Reino”.

Pe. Geraldo Gereon

Como pároco da paróquia de São Francisco de Assis, tenho boas razões para enxergar no nosso padroeiro ricos exemplos de um testemunho animador. Esse testemunho pode nos inspirar a todos no nosso caminho de fé, e no convívio da nossa Fraternidade. Colocamos a cruz de São Damião no meio de nós. Ela nos fala de São Francisco, que aprendeu a “fixar os olhos em Jesus” conforme a expressão da carta aos Hebreus. “Fixar os olhos em Jesus” é que a “nuvem de testemunhas” nos sugere. Identificamos vários deles que são da “nuvem em torno de nós”, neste nosso retiro: Pe. Huvelin, Irmão Carlos, Pe. Francisco da Soledade, Pe. Ibiapina, Antonio Conselheiro e Isabel da Hungria – alguns deles brasileiros desse nosso nordeste. Os aqui mencionados não tiveram a sua vocação religiosa quando jovens, na idade quando se define o caminho da vida, onde o religioso e a religiosa, por exemplo, tem que optar pelo celibato ou o voto de castidade. Os que aqui conhecemos vêm de uma vida de leigos, homens e mulheres, que incluía relações afetivas ou até sexuais, com experiências felizes ou desastrosas. Pe. Ibiapina teve uma noiva que o despachou para casar-se com outro. Antonio Conselheiro foi abandonado pela mulher que caiu no mundo com outro, Santa Isabel, viúva aos 19 anos de idade, foi cortejada para casar de novo com um dos grandes nobres da dinastia imperial. Como é que conseguiram suprimir ou sublimar o seu passado no celibato ou na castidade?

Existe não só nos nossos contemporâneos, mas também em pessoas de gerações passadas, um certo pessimismo em relação a abstinência na vida sexual por motivos religiosos.

Assessorados pelas ciências humanas modernas, desde Freud até os mais avançados da pós-modernidade, afirmam esses iluminados e emancipados uma realidade, para eles evidente: a pessoa humana não pode viver sem relacionamentos afetivos e sexuais. Consequentemente, não acreditam na viabilidade do celibato.

Outros conhecem uma série de sacerdotes fracassados no celibato, que chegam a generalizar: ninguém consegue manter-se fiel no celibato. Depois da minha ordenação trabalhei junto com um colega um tanto mais velho que eu. Ele me dizia: “Em relação ao celibato eu não confio em ninguém”. Pensei muito nisso, sem saber se fosse verdade ou não, e, meio assustado, temi que, um dia, pudesse ser eu, também, alguém a confirmar o que ele dizia.

Lembrei-me, também, da minha tia, uma intelectual do meio universitário e do teatro. Quando ela soube que eu ia ser padre olhou para mim, meio admirada, meio descrente, querendo dizer que eu ia entrar nessa grande farsa do clero católico que para ela não tinha a menor credibilidade. Ela dizia: O primeiro beijo que me despertou como mulher foi de um jovem padre. Eu não sabia o que responder e fiquei me torcendo de vergonha.

Quando, nesses dias, estudei um pouco as fontes sobre a vida do Pe. Francisco da Soledade, do Pe. Ibiapina e do Antonio Conselheiro, eu encontrei muitos detalhes sobre a situação deplorável do catolicismo sertanejo e do clero do século XIX.

Uma fonte diz: “Irritam a paciência de Deus os padres amancebados, que, além do mais, descuidam do seu rebanho”.

Conta se de uma paróquia daqui do Ceará, no mesmo século XIX, onde o povo pedia ao bispo que tirasse o vigário que era tão ruim, que nem mulher não tinha.

Na cidade Inhambupe-Bahia, onde o Conselheiro sempre passava, tinha o padre Ramos, que a trinta anos convivia com uma mulher, com quem teve diversos filhos. Na casa paroquial vivia o padre, a concubina e uma filha. A administração dos sacramentos era relaxada. Casamento era para render dinheiro: nem o próprio vigário dava valor nele, pois “Adão também não era casado”. E ninguém contava os que viviam do mesmo jeito dele. O próprio sertanejo encerra o seu constrangimento sobre o hiato entre o etos cristão e o cotidiano com a seguinte definição: fulano é católico no Credo e herege nos mandamentos.

Recentemente o mundo se escandaliza com a Igreja da Irlanda que acobertou durante anos inúmeros casos de pedofilia de sacerdotes. No século XIX muitos padre viviam amancebados abertamente, com a mulher dentro de casa e os filhos assumidos. Hoje: padres podem manter aparências, mas procuram compensações: basta entrar no carro, dobrar na esquina e cair no anonimato do mundo. Eu li, um dia desses um estudo sobre a psicologia problemática de crianças, jovens, filhos de padres, condenados a viver na clandestinidade e levando este estigma consigo para a vida inteira: “Papai celebra missa”. Isso nunca sara.

A “Revista Eclesiástica Brasileira”- Fasc. 276 (outubro 2009) publicou um artigo de Pe. Prof. Dr. Peter Mettler MSF, Belo Horizonte, MG intitulado “Homossexualidade e Ministério Ordenado – Critérios de análise e correlações incômodas”. Trata-se de um aspecto da sexualidade e do celibato que não queremos deixar de lado, embora aqui apenas apontemos algumas citações deste artigo bastante chocante:

“Alarmantes são, contudo, os números desproporcionalmente altos, em comparação com a população geral, de seminaristas, sacerdotes e religiosos com tendências e também práticas homossexuais, apurados nos EUA, no mundo de língua alemã e no Brasil. ... Conforme Richard Sipe, entre 1978 e 1985, os relatos sobre homossexualismo no clero dos EUA aumentaram tão significativamente que passaram a girar em torno de 38 a 42%. Entre 1982 e 1985, vários informantes...estimaram, em suas áreas, os homossexuais perfaziam pouco menos de 50% (pag. 812).” - - - - “Se esses dados e informações dos EUA forem corretos, pelo menos de forma aproximada, a Igreja Católica está criando aí um clero em que predominam as pessoas de tendências homossexuais. ‘Está em discussão, no início de séc. XXI, a crescente idéia – que raramente é questionada por aqueles que conhecem o estado clerical – de que o ministério sacerdotal é, ou está em vias de se tornar, uma profissão para gays.’ (D. Cozzens, Sacred silence 2004, pg. 128) (pag.813).” - - - - “Por isso, os conhecedores dizem sarcasticamente que a maior organização gay internacional seria, afinal, a própria Igreja Católica Romana. Se todos se assumissem e depois fossem expulsos”, diz N. Katzenbach, do grupo de trabalho ecumênico ‘Homossexualismo e Igreja’, “o Vaticano poderia fechar as portas.” (pag.813/814) - - - - - “Muitas lideranças na Igreja agiram e agem de modo inconsciente e negligente, por meio de uma prática, doutrina e pregação baseadas em conceitos, incorretamente entendidos, de amor e tolerância e, por último, negando a realidade, minimizando-a, silenciando e tentando procrastinar o decidido enfrentamento do problema. Isso, porém, não serve de desculpas para eles e tampouco os exime de sua responsabilidade” (pag.814) - - - - “Sem saber como lidar com essa situação, muitos bispos se voltaram sem rodeios à negação. Uma das conseqüências desse mecanismo psicológico de defesa é a tolerância de casas paroquiais e seminários ‘cor de rosa’. Além disso, muitos bispos carecem de autoconfiança intelectual para discutir com o poder acadêmico em seminários e faculdades teológicas.” (pag. 816) - - - - “Conforme D. Cozzens, a crise espiritual do sacerdócio e, conseqüentemente, também a crise espiritual da Igreja são, em parte, uma crise de orientação sexual. ‘Mais cedo ou mais tarde, essa questão será tratada com mais objetividade que nas últimas décadas do séc. XX. Mas quanto mais tempo demorar, tanto maior será o dano para o sacerdócio e para a Igreja’.” (pag.841)

O que me encabula é a postura, por exemplo, duma diocese, dos bispos de um regional, do seminário, o clima, o estilo. Todo mundo sabe de tudo, mas se esconde na conivência, faz vista grossa, pratica o corporativismo clerical, acoberta as evidências, varre a sujeira para debaixo do tapete. E a turma dos pré-dispostos desde o tempo de seminário corre para o ambiente dos que já são do ramo.

Eu me perguntei, muitas vezes: porque nos retiros do clero não se fala quase nada do celibato e da vivência da castidade? Não acho resposta para o silêncio e a tolerância da Igreja.

Posso levantar algumas hipóteses:

Uma: os bispos sabem: se executar, desmantelar, aplicar a disciplina, vão perder um contingente numeroso do seu clero.

Outra: (com muito cuidado e carinho) Nem eles, os bispos e formadores, são, digamos assim, completamente isentos: nem um bispo é menos homem do que seus padres. A fragilidade do próprio sistema os deixa perplexos. No entanto: o assunto é tão vital e essencial que duas alternativas existem:

ou: a gente tem convicção segura, alegre, fiel que o celibato é possível, útil, construtivo, e a gente fala disso sem o medo de que o testemunho nos desminta.

ou: a gente percebe que o negócio é impossível praticar, entorta a biografia de pessoas bem intencionadas, leva a uma imensa hipocrisia, um faz-de-conta, um submundo de ilegalidade, um esvaziamento de honestidade e confiança, um cinismo destruidor, e muito sofrimento reprimido por envolvidos, vítimas, abalados na fé e descrentes de ideais traídos. Aí, a gente, também, tem que falar, tem que dizer: assim não dá, tem que combater essa instituição, tem que avaliar o prejuízo, a partir do povo, não a partir do clero; não dizendo: o bispo deve resolver um problema de certo padre – mas: o problema de uma comunidade é o seu padre, essa comunidade precisa do seu bispo.

Mas, o que fazer para também nós celibatários sermos como diz o Documento de Aparecida, “portadores de boas novas, não profetas de desventuras?”.

Primeiro: eu tenho que lembrar novamente o sacerdócio comum que é a minha vocação como a de todos os batizados e que o sacerdócio ordenado não eliminou ou suspendeu. Muito antes do celibato já existe, para todos, a proposta de Deus de enquadrar a sexualidade no matrimônio. A castidade como virtude é um ato de amor a Deus para quem é casado ou não, para quem aguardar casar ou para quem desistiu de casar. Como todos os irmãos batizados, casados ou não, eu sou chamado a ser fiel ao amor a Jesus e aos irmãos. A motivação mais forte é a mesma para mim e para os meus irmãos: o seguimento de Jesus, a opção pelo caminho de Jesus. Não preciso ser alguém todo especial, diferente dos outros, “tirado do povo” (como sacerdote do Antigo Testamento). Não sou tirado do povo – eu sou povo, caminhando com os irmãos. Temos o mesmo potencial e a mesma missão. Como posso, por exemplo, estimular jovens para a castidade ou virgindade se eu não a pratico? Eu sou como eles. A minha fé em Jesus faz com que eu e eles cada um, ao seu modo, vivamos puros e castos.

Se eu, no meu ministério, não aceitar ser puro e casto, se não viver isso com convicção de quem segue Jesus, sem falar em ser religioso celibatário, eu deveria largar o meu sacerdócio, e tirar a mão do arado, devolver o meu crachá de missionário, ser honesto para pelo menos dizer: eu não consigo crer.

Temos uma história importante, talvez um tanto pitoresca, da vida de São Francisco – mas autêntica na ingenuidade do santo. Ele sentia numa noite fria do inverno a tentação da carne. Saiu quase sem roupa para fora da casa. Com a neve que cobria o chão fez cinco bolas que imaginava representar uma família: o pai, a mãe e três filhos. Ele quis exemplificar para si mesmo, que o instinto sexual se deve enquadrar no conjunto da família pela qual o homem com a sua esposa são responsáveis. Não é um instrumento de prazer fora desse conjunto familiar. Pode ser um tanto ingênuo, mais foi assim – submetendo-se ao intenso frio e ao raciocínio iluminado pela fé que São Francisco afastou a tentação do pecado.

De José de Anchieta, apóstolo do Brasil beatificado, conta-se que, pelos seus freqüentes contatos com os índios, ele foi refém deles durante três meses. Esses nativos não conheciam a moral cristã, nem o voto de castidade dele já feito antes de vir para o Brasil. Surgiram lhe graves tentações pelas índias interessadas nele. Anchieta, intelectual e poeta, para ocupar o tempo e a imaginação, foi escrevendo nas areias da praia, por lhe faltar papel, a vida de Jesus e de Maria, num longo poema em latim, com mais de 5000 versos, ainda mais decorados. Distanciou-se, prendeu a atenção num assunto complicado e, com oração e penitência, venceu a tentação.

Irmão Carlos vivia anos de preguiça e má conduta, farras e orgias, levando consigo uma prostituta. Chega a experimentar o vazio, as conseqüências destrutivas da indisciplina e volta de seu caminho da autodestruição. Parte para estudos, pesquisas científicas, descoberta de valores humanos no mundo muçulmano, até reencontrar a fé e descobrir Jesus na obscuridade de Nazaré.

Todos estes exemplos mostram uma verdade importante: A dominação pelos vícios, entre eles o abuso sexual, é nem tanto uma desobediência a um mandamento. Se o fosse podia se até afirmar que este talvez seja difícil demais restando apenas relaxar e se acomodar naquilo que é proibido, acostumando-se a viver sem remorso.

Muito, mais, porém, isso tudo significa não perceber a estrutura oferecida pelo criador para a pessoa se realizar plenamente, na liberdade para o amor, que não se escraviza numa dependência, nem explora ou destrói outras pessoas. Posso descobrir isso seguindo com Jesus o caminho do evangelho. Além de seguidor, sou missionário de Jesus, isto é: estou no caminho em nome de Jesus, para atrair os irmãos, levar uma “boa nova” para eles. Pe. Huvelin dizia sobre a sua “noite escura”: “A luz só vem para mim, sendo para os outros e na medida em que eles a procuram”.

Poderíamos adaptar isso ao nosso caso: sinto vontade de me entregar ao fatalismo de tentações irresistíveis, igual a todo o mundo, declarando normal o anormal. Mas pensando nos irmãos eu consigo ser coerente, fazer o que digo, e não ser “católico no Credo e herege nos mandamentos”, como se dizia no sertão baiano. Eu quero me oferecer aos paroquianos – seus olhos estão em mim, não para me fiscalizar - antes eles querem encontrar razões para lutar, para acreditar, que, com a graça de Jesus, tudo é possível. Por amor a eles eu quero acompanhar Jesus abrindo cancelas para Ele conduzir o seu rebanho. Meu povo tem direito de confiar em mim, para acreditar: se eu caio, como eles também caem, eu levanto e eles também o podem. E isso tudo pela mesma graça do Espírito Santo que nos ungiu.

Com certeza, existem muitos conselhos bons, sábias advertências e experiências iluminadoras. Que as levemos a sério! Mas ficar sem casar por causa do Reino dos Céus não é possível por aplicar táticas, seguir estratégias e submeter-se a uma disciplina. Só é possível dentro de uma mística que se envolve no mistério do amor e da liberdade. Jesus fala de dois mandamentos que não são idênticos, se não seria só um mandamento: “Amar a Deus” e “Amar o Próximo”. O que Jesus quer dizer é: não é possível amar o próximo sem primeiro amar a Deus. Solidariedade, humanidade, servir aos pobres – essas virtudes ainda existem muito, mesmo naqueles que já se despediram da religião. “Amar a Deus”, porém, para muitos é o imperativo não praticável. Não começam com o indicativo que afirma: Deus me ama primeiro. Os dois mandamentos, mesmo distintos, partem desse único indicativo. A porta para não ficar torta precisa de duas dobradiças que são fixadas num único batente.

Os místicos muçulmanos ensinam! Não digam: nós devemos amar a Deus – digam: eu creio firmemente que Deus me ama. Ninguém vai ser feliz no seu celibato, no seu voto de castidade, se não se sente envolvido nesse mistério: Deus nos amou primeiro e Deus é fiel no seu amor, mesmo que nós não o sejamos (1Jo 4,19).

O mandamento obriga e proíbe. O amor experimentado conquista. Se eu não for um conquistado pelo amor de Deus, não presto para o celibato. Se eu me arrasto dominado por sonhos perdidos, não aguento, não venço, não encontro alegria, me torno frustrado e, pior: cínico que finge ser realista. O pior que o povo pode dizer da gente, é: ele exige de nós o que ele mesmo não faz – ele quer que a gente case, e ele vive amancebado – ele quer que a gente seja fiel e ele salta a cerca e todo mundo sabe. Ele condena as nossas fraquezas e convive tranquilo com as dele. Ele quer que a gente assuma os filhos, mesmo ilegítimos, e ele esconde os dele.

Uma paróquia nessas condições termina tendo três categorias de fiéis: uma que faz vista grossa – faz que não vê; outra perde a alegria da fé de tanta tristeza e angústia; e outra que se vê confirmada no seu cinismo e na sua rejeição de Igreja, fé e religião: “...eu não estou dizendo!”

Parece-me impreterível a análise questionadora do celibato, não para repetir os velhos argumentos piedosos, mas para entrar no espaço onde se respira o ar da liberdade dos filhos de Deus (Mt 19,10-12).

O celibato permanece sempre na sua ambiguidade: ele é um dos fortes testemunhos da fé no Cristo ressuscitado: “...se Cristo não ressuscitou, a nossa fé não tem nenhum valor...” (1Cor 15,17). Por isso, apesar de ser um caso de disciplina da Igreja, o celibato continua tendo fortes argumentos e uma misteriosa atração. Por outro lado, a ocorrência permanente do celibato como contra-testemunho recomendaria a mudança desta disciplina.

“Nossa maior ameaça é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, na qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez”. Essas palavras do então Cardeal Ratzinger, do ano de 1996, a Conferência de Aparecida coloca na introdução do seu documento. Será que podemos ter esperança?

Aqui no nordeste tropical não vamos achar neve para fazer bolas na noite gelada, como São Francisco. Mas temos a praia. Poderíamos escrever na areia, senão 5780 versos, mas pelo menos três ou quatro para nos apegar com Maria, a mãe de Jesus e a mãe dos discípulos dele.

Sétima Reflexão: “Partir para correr com os olhos fixos em Jesus”

Pe. Geraldo Gereon

Estamos concluindo os dias do nosso retiro. Andamos juntos nestes dias, isto é: fizemos dos nossos caminhos individuais em situações geográficas e ministeriais bastante diferenciadas um pedaço de um único caminho. Coloquei no início deste nosso caminho a figura de São Francisco, padroeiro da minha paróquia e santo querido de nós nordestinos: a sua vocação para restaurar a Igreja de Jesus, que tremia de fortes sinais de decadência. Lembrando o amor do povo nordestino a São Francisco pensamos também no nosso grande rio que traz o seu nome e que atravessa todo o nosso território sendo envolvido no polêmico projeto da transposição das suas águas.

O caminho de São Francisco para a santidade começou com o seu encontro com Jesus diante da cruz de São Damião. Durante todos esses dias do nosso retiro a réplica desse antigo crucifixo estava no nosso meio: nas nossas meditações, na nossa adoração, nas nossas celebrações eucarísticas. Inspirados por São Francisco, queríamos “fixar os olhos em Jesus”, como a carta aos Hebreus sugere (12, 2). O autor dessa importante carta para cristãos, no mundo de todos os tempos, preocupa-se com os que querem desistir, preocupa-se com a perseverança e a constância dos que foram iluminados e experimentaram o sabor da Palavra de Deus (6,4). Ele convida que se agarrem à esperança, como numa âncora segura e firme (6,19).

O autor da carta aos Hebreus fez uma longa viagem pela história da salvação, descobre e recorda uma verdadeira “nuvem de testemunhas” desde Abraão até os profetas e os melhores representantes do povo de Deus. A conclusão para quem enxerga tamanha nuvem de testemunhas é essa: “deixar de lado tudo o que nos atrapalha e o pecado que nos envolve”, “fixar os olhos em Jesus que vai à frente da nossa fé e a leva à perfeição (12,1-2)”.

Essa nuvem de testemunhas não pára de crescer, até os nossos dias. Nós identificamos alguns exemplos entre eles, que poderiam nos ajudar a “fixar os olhos em Jesus”: Pe. Huvelin, Irmão Carlos, Pe. Francisco da Soledade, Antonio Conselheiro, Pe. Ibiapina, Santa Isabel. Eles estão conosco ao redor do Cristo que quer restaurar a sua igreja. Todos tem um detalhe da sua vida que nos chamou atenção. Passaram longos anos sem ser sacerdotes ordenados ou nunca o foram. Viviam o sacerdócio comum de todos os batizados.

Eu continuo achando que o nosso sacerdócio ministerial não é possível sem a consciência do sacerdócio comum, do qual fazemos parte. Não subimos um degrau deixando atrás ou embaixo o sacerdócio comum. Com o nosso povo estamos no mesmo nível, na mesma dinâmica e vocação, como Santo Agostinho falou: “Antes de ser bispo para vocês, eu sou cristão com vocês.” Eu queria neste momento final tirar algumas conclusões dessa afirmação.

- Mc 6,1-6 conta a volta de Jesus a sua terra Nazaré. No meio dos seus conterrâneos ele é tanto admirado como também rejeitado. “Mostraram-se chocados com ele” diz Marcos. Em Nazaré Jesus é ameaçado de morte pela primeira vez. Segundo os cidadãos nazarenos, a razão para isso é a sua pessoa, sua origem: é o filho do carpinteiro, é nosso parente, sabemos muito bem quem ele é e quem ele não pode ser.

A outra razão é que ele traz o eterno assunto dos profetas: Culto e espiritualidade tem a ver com a sociedade – culto e justiça andam de mãos dadas. Nazaré é como que o protótipo da profecia cumprida: Jesus no meio dos pobres, cegos e oprimidos diz: hoje, na minha pessoa está acontecendo a libertação de Deus prometida. Toda teologia, espiritualidade e pastoral sem o contexto da realidade viram hipocrisia ou até idolatria.

A igreja de hoje segue o seu caminho nessa mesma linha: ou ela deixa mesmo de anunciar concretamente a libertação porque ela não arrisca a dizer HOJE, seguindo teólogos, cardeais, párocos e lideres influentes de uma religiosidade ressuscitada que declaram a teologia da libertação morta e enterrada. – Ou, quando esta igreja, mesmo em documentos oficiais, com ousadas e acertadas propostas de consequências até radicais, chega a dizer HOJE, querendo identificar-se com Jesus de Nazaré, ela vacila e recua na realização das suas propostas. Assim ela rende-se ao pragmatismo medíocre e à mesquinhez, que “matam na unha” as iniciativas renovadoras. Talvez um impulso mais forte teria que acontecer através do testemunho de novos santos e profetas que já podem estar vivendo no meio de nós.

- A experiência de Jesus em Nazaré, bastante parecida com a de Moisés em Madian, é a experiência de querer ser libertador e não ser aceito pelo povo, a rejeição que ameaça a morte. Jesus de Nazaré, rejeitado justamente em Nazaré, experimenta a “noite escura”. Ela pode se tornar a tentação de abandonar tudo. Ela pouco estimula para a perseverança. Mas Jesus não abandonou o seu caminho, não deixou para trás a missão começada. São João da Cruz, o místico da “noite escura”, afirma: “Em verdade, a escuridão é o lugar onde morre o egoísmo romântico.” Jesus mesmo comprova: a noite escura é libertadora, transforma o egoísmo em amor e afeição, em compaixão e solidariedade.

- Porque o Documento de Aparecida fala tanto de recomeçar, repensar, relançar, revitalizar, coragem para questionar, para enfrentar os desafios? Fica cada vez mais evidente que o sonho da antiga cristandade acabou. Não o podemos conservar artificialmente. O nosso papa se expressa assim: “as sombras vão se tornando densas ao nosso redor” – “em nossos corações se insinua a desesperança” – “estamos cansados do caminho” – “ao redor da nossa fé católica surgem as névoas da dúvida, do cansaço ou da dificuldade”.

É claro que nós temos respostas. Os que nos acompanharam nestes dias nos ajudam: Pe. Huvelin aguentou nele mesmo, e ao lado de tantos outros, o desmoronamento de verdades aparentemente eternas, o escuro das perguntas sem respostas, a hostilidade dos novos pagãos. Ele se questionou a si mesmo e respeitou os que tudo questionam. A sua pastoral era de um cauteloso acompanhamento, de um paciente esperar pela graça que transforma.

Irmão Carlos, conduzido por este extraordinário sacerdote, aprendeu a mesma coisa na sua permanência aparentemente fracassada entre os seus amigos “inconvertíveis”. Santa Isabel, Padre Francisco da Soledade, Padre Ibiapina, Antônio Conselheiro – todos eles mostraram que a transformação começa logo que passarmos a viver o evangelho sem concessões. Nem indignação, nem pessimismo inoperante e muito menos a militância agressiva são o caminho de quem segue o filho do carpinteiro de Nazaré.

Quando Santa Isabel desceu para sempre do palácio da sua poderosa família, ela disse; “Eu gostaria de agradecer às pessoas, mas agradecer o quê?” No entanto, ela desceu para dar sua vida aos pobres, sem jamais considerar o merecimento e o agradecimento. São Francisco via as chagas abertas da sua igreja, mas nunca deixou de declarar a sua paixão por essa igreja. Jesus em Nazaré não finge um mundo intacto, mas se dispõe a curar, a partir duma análise dos fatos.

Analisar fatos – para isso precisa ter competência, ser objetivo e ter um elevado senso crítico e realista. Mas não se pode deixar de envolver o coração, deixar a voz da compaixão falar mais alto. A fraqueza, no fundo, revela a fragilidade que não se corrige, mas se supera com apoio solidário. Sacerdotes e agentes pastorais precisam cultivar essas capacidades. À vezes, sentem a pressão de ser perfeitos e caiem na chamada “armadilha da profissionalização”, isto é, pensam poder resolver o problema aumentando a bagagem de conhecimentos. Mas não precisamos de padres perfeitos, mas de padres e de agentes autênticos que vivam o evangelho sem concessões.

O famoso teólogo Karl Rahner, figura importante na época de Vaticano II., deixou algumas anotações para sacerdotes que se confirmam na atualidade. Eu vou apontar alguns pensamentos resumidos dele:

1 – O sacerdote teria que ser alguém, que participa fraternalmente do peso da vida que muita gente carrega. Ele não pode ter respostas e soluções, mas ele conversa e confessa que nem ele nem a santa mãe Igreja sabem o caminho exato pela noite escura do coração humano. Então, ele pode dizer: vamos nos ajoelhar e acreditar que Deus é amor. Como Padre Huvelin que disse a Charles de Foucauld: Ajoelha, confessa e comunga.

2 – O sacerdote tem que procurar sem medo uma nova linguagem. Nós temos expressões padronizadas que são corretas, estão na bíblia, nos documentos da Igreja. Mas não podemos simplesmente transmitir o “Depósito da Fé”. Temos de abrir o coração para que o evangelho penetre nele. A partir da nossa experiência testemunhada, os outros talvez vão ouvir, também, este evangelho.

3 - O sacerdote tem que ser um homem discreto. Ele fala dos maiores mistérios, mas fala baixo, com humildade e discrição, sem barulho e falsa segurança, na modéstia de quem apenas transmite fé, esperança e caridade. Ele reza como São Francisco: Iluminai as trevas do meu coração – concedei-me bom senso e conhecimento, para cumprir o mandato que me confiastes.

4 – O sacerdote deve ser um educador para a liberdade, para o “encontro pessoal com Jesus”. Ele não usa nenhuma esperteza na argumentação, mas acompanha as pessoas, com a sua própria aflição de quem procura os caminhos de Deus.

Olhemos, mais uma vez, os representantes daquela “nuvem de testemunhas”: eles tem uma coisas em comum: viviam a sua vida no mundo, nascidos como cristãos, mas atingidos pelas tremendas confusões do mundo. Padre Huvelin no meio dos agnósticos e secularizados intelectuais, que conseguem abalar a sua fé; Irmão Carlos, perdidos nos vícios mundanos, expulso da corporação militar; Antonio Conselheiro, envolvido em conflitos familiares sangrentos, preso sob graves acusações; Padre Ibiapina, decepcionado com a justiça, a política, a igreja, horrorizado com o estado dos pobres do nordeste brasileiro, vítimas da opressão e da violência organizada; Padre Francisco da Soledade, injustiçado e preso; Santa Isabel, integrada no sistema corrupto dos poderosos do seu tempo desperdiçando em orgias as riquezas extorquidas dos pobres.

Todos eles chegaram a perceber o chamado de Jesus, saíram da bitola, mudaram de rumo, encontraram o tesouro, o agarraram para nunca mais deixar. A sua história comprova o texto de São Paulo, em 2Cor 4,6-12, que fala do tesouro em vasos de barro. São Paulo assume o termo do próprio Jesus: o “tesouro” pelo qual compara o Reino de Deus. Primeiro, alguém o descobre e o quer possuir, sem nenhuma atitude egoísta, longe de ser cobiça, mas como chance, talvez melhor “graça” de encontrar o sentido mais profundo da sua existência. Quem o encontra não quer mais viver sem este tesouro. Quem o possui torna-se totalmente inabalável. Ele anda com ele na mão e no coração. E São Paulo acrescenta: este tesouro não nos faz super-homens com poderes sobrenaturais, privilegiados, destacados no meio dos outros. “Nós trazemos este tesouro em vasos de barro” – que significa: vaso que facilmente trinca ou até se despedaça. Os cacos, espalhados no chão, Deus não varre para o lixo. Ele não cria um vazo novo, mais resistente, mas recupera o mesmo vaso de barro e diz: Entende que você não é tesoureiro que guarda algum tesouro com segurança. Você vai usar, mas passando para frente, de graça, porque você recebeu de graça.

Por isso, São Paulo fala desse extraordinário poder, em nossas mãos sem ser nosso: quatro situações demonstram o vaso constantemente em perigo de quebrar: Somos afligidos de todos os lados: postos em apuros; perseguidos e derrubados – não podia ser pior. Mas mesmo assim, São Paulo diz ”não”- não somos jogados fora como o vaso nunca mais aproveitável – não somos vencidos pela angústia, não ficamos desesperançados, não somos aniquilados, não somos desamparados – quatro vezes “não”.

A verdade sobre nós é essa: somos vasos quebradiços, dentro de estruturas eclesiásticas no mínimo trincadas, com tradições já despedaçadas. Alguns já procuram culpados, apontam para bodes expiatórios e convocam para a caça às bruxas. São Paulo insiste: o tesouro é Jesus Cristo, sua vida, morte e ressurreição. Com Jesus, a nossa existência mortal torna-se ressurreição e vida. E isso não no sentido de desviar, tirar um fino pelo lado do sofrimento e da morte – é morte vivida. Gólgota não é uma encenação teatral transmitida pela televisão. O lugar do acontecimento é o nosso corpo mortal. Em São Damião, Jesus falou da cruz, sem ela nunca se restaura a igreja, só se passaria cal nas paredes. E Jesus deixou claro o que ele pensa sobre paredes apenas caiadas.

O Cristo crucificado e ressuscitado, os nossos olhos fixos nele, andando dentro de uma nuvem de testemunhas: é este o nosso caminho indicado em Hebr. 12. “Olhos fixos em Jesus” – isso não nos faz expectadores, sentados na poltrona. Correr, correr sempre é a nossa tarefa, porque Jesus “vai à frente da nossa fé e a leva á perfeição”. Isso vale para todos do sacerdócio comum e para nós sacerdotes ministeriais.

Em 1967 o então Professor Ratzinger analisava a crise da consciência sacerdotal desta forma: “A imagem tradicional descreve o sacerdote como mediador entre Deus e o homem e o levou a uma altura extraterrestre – diziam que antes de saudar um anjo devia-se saudar o sacerdote; que ele oferecia com as suas mãos o sacrifício de expiação; ele era exaltado como o homem com o poder de, por assim dizer, forçar a Deus através das palavras da consagração a descer para o altar. Essa imagem foi quebrada irrevogavelmente. O monstruoso mal-entendido sobre a reconciliação esclareceu-se com deslumbrante nitidez” (Palavras do Prof. Ratzinger)

O hoje Bento XVI, na época, baseava-se justamente na carta aos Hebreus que tanto citamos aqui.. Dizia ele: Jesus, que juridicamente era um leigo, na verdade era o único sacerdote verdadeiro no mundo. A sua morte era nenhum culto, mas um processo profano: um homem executado como criminoso – e essa morte era a única liturgia verdadeira do mundo. Ele não deu coisas, ele deu a si mesmo. O ministério espiritual não se relaciona mais com a pompa do culto, mas com a humanidade de Jesus. Mais do que ministro o sacerdote é o enviado, que continua a missão de Jesus: “Conforme o Novo Testamento, na igreja não existem mais sacerdotes, só o sumo sacerdote Jesus Cristo” (Palavras do Prof. Ratzinger).

Aqui se confirma o que todo tempo afirmamos: o sacerdócio ministerial enquadra-se no sacerdócio comum de todos os batizados. O presbítero tem que estar ao lado dos seus irmãos, caminhar no meio deles, com as mesmas experiências de um caminho penoso, inseguro, perigoso, mas também animado pela mesma esperança.

Em vez de falar tanto em “espiritualidade” basta falar em “seguir Jesus”. Aí nós estamos pisando no chão que Jesus pisou. A crise da Igreja não é a dificuldade de se adaptar à sociedade, mas a dificuldade de se adaptar a Jesus Cristo. Ele diz em Jo 12,26: “onde eu estiver, estará também aquele que me serve” Com Jesus vamos descobrir o seguinte:

- Jesus falou de Deus-Pai, não de autoridade religiosa.

- Jesus falou de sal, não de mel ou marmelada.

- Jesus falou do poder do amor, não do poder de consertar o mundo na violência.

- Jesus falou de comunidade, de pelo menos dois, e não de luta solitária.

- Jesus falou da virada samaritana, tão revolucionária quanto à virada kopernicana: Aquele que pergunta: quem é o meu próximo, descobre que ele mesmo tornou-se próximo.

São João Crisóstomo já dizia: “Aquele que disse: ‘Isto é o meu corpo’ é o mesmo que disse; ‘Você me viu com fome e nada me deu de comer’”. Como Irmão Carlos, todos da nuvem das testemunhas dizem esta mesma palavra. Todos sabem: Para seguir Jesus os pés têm que caminhar rumo aos pobres. Essa é a direção certa. O que Jesus disse foi: “Ide pelo mundo inteiro” e não: “Assentem e esperem se alguém vá aparecer”. Os nossos amigos da nuvem nos testemunharam: esse caminho com Jesus nos faz descer com ele até dizer: não temos mais nada, mas estamos alegres, porque temos tudo (2Cor 6,10).

E saindo daqui vamos novamente, e talvez um pouco melhor, nos inserir no nosso povo e dizer-lhe: “Não temos a pretensão de dominar a vossa fé; mas o que queremos é colaborar para a vossa alegria” (2Cor, 1,24). – “...em tudo nos recomendamos como ministros de Deus” (2 Cor 6,4) “...como sendo tristes e, no entanto, estando sempre alegres; como indigentes e, no entanto enriquecendo a muitos; como não tendo nada e, no entanto possuindo tudo” (2 Cor,6,10)

Nós conhecemos a história do índio Juan Diego que foi enviado por Maria, Mãe de Deus, com a mensagem para o bispo do México. Este despachou duas vezes o pobre mensageiro: “Depois a gente conversa, venha amanhã de novo.” Juan Diego, sentindo-se um joão-ninguém, queria desistir e desviou-se do lugar onde tinha encontrado a Mãe de Jesus. Mas ela o chamou de novo, em outro lugar, e disse: “Não se perturbe o teu coração, nem te inquiete coisa alguma. Não estou aqui, eu, tua mãe? Não estás sob a minha sombra? Não estás porventura sob a minha proteção?” Foi para todos nós latino-americanos que Maria disse isso.

Com essas palavras no coração vamos partir, com os “olhos fixos em Jesus”, com tamanha nuvem de testemunhas em torno de nós, que são também as irmãs que nos acolheram e os irmãos e irmãs que fraternalmente se reuniram conosco neste retiro.

Vamos todos na paz do Senhor, e rezemos uns pelos outros.