1. RETIRO - 4 a 11 de janeiro – 2002 – Coronel Fabriciano - MG
Pe. Mariano Puga
SER IGREJA A PARTIR DOS ATOS DOS APÓSTOLOS
Pe. Mariano começou desculpando-se pela questão da língua, pois não domina bem o português. Em seguida, exibindo a cruz que carrega consigo, explicou que ele a ganhou no Cairo, quando foi escolhido para Coordenador Internacional da Fraternidade Sacerdotal Jesus Caritas. Disse que todas as manhãs, no Chile, quando sai para o trabalho, tomando essa cruz em suas mãos, ele oferece suas orações pelos irmãos e irmãs da Fraternidade do mundo inteiro.
Dando início ao desenvolvimento do tema do retiro, Pe. Mariano disse que partilhará com os retirantes algumas questões que descobriu na sua reflexão sobre os Atos, em três grandes linhas:
1. Protagonismo do Espírito Santo
2. Experiência de fraternidade
3. Força missionária
Fez um paralelo destas três grandes linhas dos Atos com o pensamento e a vida do Irmão Carlos:
1. Absoluto de Deus
2. Irmão universal
3. Gritar o Evangelho com a vida e estar disposto a ir até o fim do mundo para anunciá-lo
Assim, o retiro procurará atingir dois objetivos:
1. Repensar a Igreja no Brasil e no Chile
2. Re-inventar nossa Fraternidade a partir dos três pontos acima.
Terminou, convidando a todos a rezar ao Espírito criativo, do futuro, da iniciativa para que sopre muito forte sobre nós nesses dias.
1.1 O ESPÍRITO DE DEUS RECRIA A EXPERIÊNCIA DE JESUS
Nas laudes de hoje ouvimos palavra de Ezequiel 37, 1-14:,
- esses ossos do povo de Israel, podem ser do Brasil, do Chile, da América...
- “Eu sou o Senhor: eu digo e faço...” Como Jesus na Sinagoga de Nazaré, quando se deu o seu Pentecostes (Lc 4, 16s).
Sem esse Pentecostes, a Igreja começa a ser uma instituição fria, autoritária, na defensiva da história.
Estamos vivendo o aniversário de 50 anos da Fraternidade, no início do novo milênio. Assim como houve desgaste na Igreja, houve também na Fraternidade. “Perdeste o primeiro amor” (Ap 2,4).
Precisamos re-inventar a Igreja, pela força do Espírito, no meio dos pobres. Assim também nossas Fraternidades precisam ser reinventadas, recriadas. Vamos pedir ao Espírito que nos recrie e nos faça passar de seguidores de Jesus a testemunhas dele e do Evangelho. Tudo isso é obra do Espírito.
E quem é este Espírito? O Espírito é o protagonista que conduz o movimento de Jesus. É o Espírito que encarnou Jesus no ventre de Maria e no coração do povo. É preciso que tenhamos a mesma atitude de Maria e vejamos Jesus no coração do povo. São opções que devemos fazer, pois por aí é que vai a Boa nova do Povo. É o Espírito que fez Jesus ser Boa Nova para os pobres e o levou a louvar os pobres, os famintos, os misericordiosos, os perseguidos, a animar sua vida e proclamar as Bem-aventuranças.
É o Espírito que levou Jesus a fazer da vontade do Pai o alimento do Reino. É o Espírito que o ressuscitou dentre os mortos.
Como dizia Santo Irineu: Deus interveio na história com dois braços: o da encarnação e o do Espírito. O problema é que nós ocidentais só acolhemos a encarnação e encolhemos o braço do Espírito. Disso resultou a Igreja que temos: autoritária, piramidal, institucional e doutrinária... Sem o Espírito é impossível recriar.
Esse Espírito de liberdade, apresentado por Paulo aos Gálatas (Gl 5,1), traz junto um alerta: “cuidado, é para que vivamos na liberdade que Cristo nos libertou... cuidado para não cair outra vez na escravidão”.
Por exemplo, Pedro, mesmo já tendo vivido a experiência da liberdade na companhia de Jesus, cede à tentação de voltar à escravidão, tentando impedir Jesus de seguir na sua missão. Mas em Atos, outra vez pela força do Espírito, Pedro vai superando a lei e se aproximando dos pagãos...
O Espírito nos faz livres, nos liberta de toda a coação externa, de toda escravidão interna. Isso nos faz renascer: “quem não renasce da água e do Espirito, não entrará no Reino” (Jo 3,5). Renascemos da liberdade e do amor do Espírito. Esse espírito de amor se revela na intimidade da relação do Pai para o Filho e do Filho para o Pai. É o dinamismo do amor: um se dá inteiramente ao outro, sem guardar nada. “O amor de Deus foi derramado em nós, pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).
Esse amor é que fez Jesus encarnar-se, a amar os pobres. Esse é o Espírito que nos foi dado. Não se trata apenas de opção preferencial. Aquele que não se dá aos pobres, não se faz pobre, não tem o Espírito, não vive no Espírito, resiste ao Espírito.
Uma Igreja que duvida, que trai o mistério de Deus, deixa de ser a Igreja de Cristo. Esse Espírito é o que produz comunhão entre os diferentes, faz comungar em uma só divindade: a Trindade: o Pai distinto do Filho, o Filho distinto do Pai.
Como disse Jesus: “se vocês amam somente aos que os amam, que fazeis de novo?” Mas se vocês amam os que lhe são diferentes na cultura, na religião, no temperamento, aí vocês são filhos de Deus.
Esse é o Espírito de Pentecostes. Aquele que faz a experiência de amar o diferente, quebra todos os esquemas e derruba todas as barreiras. Recria a experiência de Pentecostes: não somos todos estrangeiros e nos entendemos?
A maior resistência ao trabalho do Espírito é não aceitar o diferente e impor a uniformidade. A ação do Espírito é unir os diferentes: gênero, cultura, tradições, raças...
É próprio do Espírito olhar para a frente, criar o futuro, recriar, novos céus, nova terra... “Envia o teu Espírito e renova a face da terra”. (Sl 104,30) Não é nostalgia do passado. Por isso seus símbolos: fogo que queima, vento que arrasa, óleo que fortalece para recriar, re-inventar, renascer, para fazer possível o sonho de Jesus, o amor. Sem o Espírito, Jesus torna-se um doutrinador e não um sonhador do futuro. Sem o Espírito ficaríamos no passado. O Espírito permite que o vivido por Jesus seja recuperado e relançado para o futuro. É a energia que projeta Jesus para o futuro da humanidade.
A maravilha desconcertante disso é que todos que estamos aqui não temos nenhuma diferença daqueles que estavam em Pentecostes: estamos tão enamorados e conduzidos pelo Espírito como aqueles. Somos tão limitados em nossa visão como eles, embora tenhamos mais informações, mas essa voz do Deus de Israel, da promessa de Jesus do Espírito derramado sobre a carne é a mesma para nós hoje.
Em Jesus, o Espírito se amarrou e Jesus se amarrou com seu povo. Esse Espírito amarrou Jesus a Maria, ao povo, a humanidade inteira e quer igualmente amarrar a cada um de nós a Jesus, ao povo, ao mundo novo.
Nesse retiro, façamos uma experiência: escrevamos nossa história pessoal de recriação pela força do Espírito. Qual será minha história de anunciação? Ao Espírito não se responde só com a cabeça e o coração, mas principalmente com os pés. O que não chega aos pés, não faz caminhar, não me converte.
Relatemos também quais os presentes do Espírito que saboreamos em nossa vida: liberdade, amor, criatividade, o próprio Jesus... Quais minhas aberturas?
Devo olhar também minhas resistências, minhas amarras, meus apegos ao poder, à riqueza, idéias que impedem de seguir o Espírito. Em que somos funcionários, burocratas e perdemos a gratuidade do serviço ministerial ?
Cada um poderia escrever seu próprio livro dos Atos dos Apóstolos.
Ao irmão Carlos eu gosto de chamar de irmão do vento “que sopra e não se sabe de onde veio nem para onde vai”. Assim são os renascidos do Espírito (Jo 3,8), que sempre recria, transforma.
A vida do irmão Carlos foi uma sucessão de movimentos desconcertantes, etapas que, às vezes, parecem opor-se às precedentes e que, no entanto, comportam um novo ponto de partida, às vezes, um novo começo absoluto.
Como dizia Ir. Carlos:
- “Eu que havia estado, desde minha infância, envolto de tantas graças, filho de uma mãe santa...”
- “O Islam produziu em mim uma profunda transformação, uma revolução interior.”
- “Logo que acreditei que havia um Deus, compreendi que não podia fazer outra coisa senão viver só para Ele”.
- “Minha vocação religiosa começa na mesma hora da minha fé: Deus é tão grande.”
- “Meu apostolado deve ser a bondade. Que vendo-me se possa dizer: visto que este homem é bom, sua religião deve ser boa”.
- “Nosso aniquilamento é o meio mais poderoso que temos para unir a Jesus e fazer o bem das almas. Se o grão de trigo caído na terra, não morrer, permanece só; se morrer, produz muito fruto. Eu não morri, por isso estou só. Rezem por minha conversão, a fim de que morrendo produza frutos”.
A teologia do Ir. Carlos e sua pneumatologia eram tributárias de sua época, por isso que ele fala constantemente em fazer a vontade de Deus. Nele, vontade de Deus e ação do Espírito são a mesma coisa.
Com o privilégio que me deram de poder percorrer tantas regiões, visitando os irmãos da Fraternidade, constato que há sede, busca em todos os irmãos. Sintamo-nos em profunda comunhão com nossos irmãos distantes e experenciemos que eles também estão em comunhão conosco.
Texto complementar
Ignácio Hazim, metropolita ortodoxo da Síria, na Conferência Ecumênica de Upsala, em agosto de 1968, pronunciou estas palavras proféticas: “A Novidade criadora não tem sua explicação no passado, mas no futuro. É evidente que a ação do Deus vivo não pode ser senão uma ação criadora. A maravilha de Deus que se revela em Abraão, Isaac e Jacó está no fato de que o seu ato criador vem do futuro. É um ato profético. Deus vem ao mundo para encontrá-lo. Está diante de nós e chama, arrasta, envia, liberta e faz crescer...O evento pascal, realizado uma vez para sempre, de que forma se torna nosso ? É por meio do seu próprio artífice: o Espírito Santo! Ele é a presença do Deus-conosco, unido ao nosso espírito (Rm 8, 16). Sem o Espírito, Deus fica longe, Cristo permanece no passado, o Evangelho é letra morta, a Igreja uma simples organização, a autoridade é domínio, a missão é propaganda, o culto uma simples lembrança e o agir cristão uma moral de escravos. Mas, no Espírito, o mundo aguarda o Reino, o homem luta contra o mal, o Cristo ressuscitado está presente, o Evangelho é força vital, a Igreja manifesta a comunhão trinitária, a missão é Pentecostes, a autoridade é serviço, o agir humano é divinizado. O Espírito atrai para a segunda vinda de Cristo. Com Ele, a Igreja e o mundo inteiro gritam com todo o seu ser: Vem, Senhor Jesus ! Nós esperamos uma teologia (espiritualidade) profética que saiba discernir a vinda do Senhor na história” (Espiritualidade sem Medo – Perspectivas da implantação do Projeto, p. 17 –18).
1.2. REFUNDAR AS FRATERNIDADES
Canto: “Não te perturbes, nada te espante; quem com Deus anda, nada lhe falta”.
O Pe. Mariano começou apresentando o livro “Que novidade é essa ? - Uma leitura dos Atos dos Apóstolos”. Tomou as páginas 49 e 51 - Vida de comunidade.
Ontem, vimos a necessidade de refundar a Igreja no Espírito dos Atos. Hoje vamos nos dedicar à necessidade de refundar nossas fraternidades nos três eixos supramencionados.
O absoluto de Deus segundo o Ir. Carlos, pode ser traduzido como a busca do vento do Espírito na História. A nossa Fraternidade deveria ser, antes de mais nada, um grupo de irmãos que se ajuda fraternal e radicalmente a colocar-se na onda do vento do Espírito, que age na história. Infelizmente nossas Igrejas estão cheias de temores e resistências.
Padres velhos da fraternidade, no Chile, transformam a comunidade em grupos de socorro mútuo; gente boa que faz meditação, deserto e tudo o mais. São bons amigos que não se exigem nada um do outro. Mas não são fraternidade, permanecem bons amigos, mas não vêem o vento do Espírito na história.
Ir. Carlos soube sempre ser um peregrino permanente, um insatisfeito permanente. Esta foi a novidade de sua vida. A fidelidade ao Espírito o levou a romper com a família burguesa, deixou a vida militar, peregrinou entre os muçulmanos. Foi um inquieto, um homem do vento. Nossas fraternidades devem ser grupos de irmãos que se questionam e se ajudam mutuamente na fidelidade ao vento do Espírito.
Conforme os Atos, a Igreja é, antes de tudo, homens e mulheres da fraternidade. A Igreja como sinal dos homens e mulheres da fraternidade. O fruto primeiro do Espírito é fazer comunhão, construir fraternidade, caminhar juntos, sair de si mesmo e viver para o outro. É o Espírito que faz a comunhão do Pai e do Filho, fruto do amor, da Trindade que se volta à criação; faz o Filho sair do Pai e encarnar-se na criação e na história da humanidade. O primeiro fruto de Pentecostes é fazer com que os discípulos de Jesus vivam a experiência de comunhão, de irmãos e irmãs. No Chile, aqueles que vocês chamam de crentes, se apresentam como pentecostais ou evangélicos. Não é uma crítica para nós, católicos, que não somos nem crentes, nem pentecostais, nem evangélicos, nem discípulos de Jesus ? Somos católicos: nenhuma referência nem a Jesus nem ao Espírito. Devotos a Deus, a Virgem e alguns santos e fiéis ao Papa (as três devoções brancas: Maria, a hóstia e o papa). Nem cristãos-católicos somos, só católicos. É preciso sair da Igreja para ouvir o que o Espírito está falando a nós, fazer uma experiência de Pentecostes?! O Papa fala sempre da Nova Evangelização. Que tipo de Evangelização aconteceu na América Latina - Continente mais sacramentalizado do mundo - se, a cada dez minutos, dois mil católicos se tornam pentecostais ? No Chile, 17% já são pentecostais.
Cristo não é o centro da pregação da Igreja; a experiência em comunidade não é o fruto da evangelização. Somos nós os responsáveis por esta situação. Não podemos viver jogando a responsabilidade na Cúria Romana...
Tanto que nos chamam de padres, padres... que nós levamos isso a sério e nos julgamos superiores; olhamos os outros do alto para baixo. Jesus não foi pai de ninguém, só irmão dos pobres, dos excluídos: “Não chameis a ninguém de pai, um só é vosso Pai e vós todos sois irmãos (Mt 23,8). A conversão deve fazer-nos passar de padres a irmãos. Os bispos gostam de ser chamados de pai-bispo, prefiro irmão-bispo e nós, irmãos-pastores. O nome condiciona o seu portador: monsenhor acaba fazendo dele um grande senhor. É o resquício do poder que se acumulou na Igreja.
O primeiro sinal do sopro do Espírito é a experiência da fraternidade. Quando aconteceu Pentecostes, era praticamente impossível pensar numa fraternidade. Quando se pensa na primeira fraternidade cristã, imaginamos que foi fácil a convivência entre povo eleito e pagãos, impuros e puros, os que estão na lei e fora dela, cidadãos romanos e povos colonizados, livres e escravos, gregos e plebeus.
A maravilha do Espírito produz comunhão entre diferentes. “Se amais os que vos amam... amai vossos inimigos” (Mt 5,43), isso é amar como ele ama; amor impossível, fraternidade impossível, esse é o dom de Deus, ação do Espírito. Com todo o conflito que isso produz: gregos e judeus, escravos e livres, com tudo o que isso provoca até chegar à comunhão na diversidade. A concepção grega de fraternidade permanece nas idéias e não na realidade concreta. Trata-se, porém, de colocar tudo em comum, inclusive os bens. O que é viver na fraternidade ? Chegar na eternidade, vivendo a medida do homem, segundo Cristo: faça ao outro o que você quer que façam a você. Todas as exigências do seguimento do Cristo, o Espírito as revelou e as concretizou nos simples primeiros discípulos. Este é o Pentecostes de ontem e de hoje: fazer da humanidade e da criação, um mundo de irmãos. Esse é o sonho cósmico que Jesus pôs em movimento. E Pentecostes projetou na história todas as energias do conteúdo de Jesus. Esse é o fruto da ação do Espírito. Sem a abertura ao vento que animou Jesus Cristo - o Espírito que fez tudo com Jesus - não há possibilidade de fazer da Igreja uma fraternidade, uma Igreja de comunhão e participação. Isso não é resultado de ação social e política. os compromissos sociais e políticos da Igreja é que resultam da ação do Espírito. A Igreja que não tem essa ação social e política é uma Igreja que resiste ao Espírito que a move aos pobres. Uma Igreja que não partilha sua vida com os pobres, é uma Igreja que resiste ao Espírito. Resiste ao Espírito libertador de Jesus. Uma Igreja que age com interesses políticos e diplomáticos, não entendeu o mistério de Jesus.
“Tudo o que fizestes...” (Mt 25) não é optativo, não é questão de votos religiosos, não é opção preferencial, é opção de Deus, que se fez irmão dos postergados, é opção daqueles que buscam ser discípulos e irmãos de Jesus, deixar-se levar pelo Espírito. Essa discussão preferencial ou não, é estéril, cai por terra pela força de Pentecostes - força do primeiro amor.
Ainda que Lucas exagere, fale um pouco de utopia, o Espírito é o mesmo, é o Espírito da comunhão do Pai e do Filho que é dado a toda a carne; ninguém pode apropriar-se dele. Onde há partilha, solidariedade, luta pela vida, aí está o Espírito, que é dado a toda carne. Uma pergunta que faço no momento: como viver a experiência do Espírito quem nos faz irmãos/irmãs ?
Vamos às cinco características das primeiras comunidades, segundo Atos 2,42-47; 4,32-35.
Há um símbolo - um sacramento da passagem - do discipulado à comunidade de irmãos: a casa. É a estrutura que o Espírito inventa para simbolizar a experiência da comunidade. A casa é o lugar onde tudo acontece, não no templo, não no espaço sagrado; é na casa onde se reúne a família, os irmãos; é na casa onde se realiza a Igreja. É na casa onde se dá a experiência de comunhão de irmãos - koinonia cf At 2,. É na casa onde vão suscitando os diversos serviços -diakonia cf At 6,1-6. Nas casas começam também as perseguições por causa de Jesus (At 8,3). É da casa que surge a missão entre os gentios (At 10,42); é na casa onde se celebra a Fração do Pão, com simplicidade e alegria At 2 e 4.
Quais são as cinco notas desta experiência cristã que devem ser as da fraternidade?
A 1ª atravessa todo o livro dos Atos: são comunidades fraternas. Aí se aprende a viver, como Jesus viveu e nos ensinou. “Todos reconhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35). O Espírito, pelo Batismo, nos fez renascer irmãos e irmãs do universo: são comunidades transculturais, com todas as tensões e conflitos; pluriraciais, de distintas experiências religiosas; de diferentes níveis econômicos. “Não há entre vós muitos intelectuais, nem muitos poderosos, nem muitos da alta sociedade. Mas Deus escolheu o que é loucura no mundo para confundir os sábios; escolheu o que é fraqueza no mundo, para confundir o que é forte. E aquilo que o mundo despreza, acha vil e diz que não tem valor, isso Deus escolheu para destruir o que o mundo pensa que é importante” (I Cor 1, 26-28). Neste contexto, sentem-se amados por Jesus e amam como Jesus. Por isso, aproximam-se uns dos outros, são capazes de acolher-se na diferença.
2ª. Partilham da mesma doutrina dos Apóstolos. As referências de todos os irmãos, mais que as diferenças, era o ensinamento de Jesus. Ele era o único mestre, o Ressuscitado vivo no meio deles. A única autoridade - a tradição - vinha daqueles que haviam caminhado com Ele, desde o batismo de João até a ressurreição. Nós temos muitas desvantagens em relação a eles. Não é tão claro que aqueles que vêm para os sacramentos, querem ser discípulos de Jesus. Quando perguntamos quem é Jesus, quer seguir Jesus, conhecer a Palavra de Deus, amar como Jesus ? No Chile, nos acusam de crentes por causa dessas perguntas. A resposta que nos dão é: “Padre, nós somos católicos, não crentes”.
Antes de ser batizados, é preciso ser discípulos do ressuscitado e seguir o ensinamento dos Apóstolos !
3ª. A fração do pão. As celebrações que realizamos aqui entre nós são idênticas às que celebramos com o povo ? Quando celebramos aqui é uma coisa, quando estamos diante da massa, nos transfiguramos em autoridade e temos que seguir as rubricas e realizamos um rito, sem partilha e sem comunhão.
Os mártires levados ao tribunal eram interrogados: “Por que vocês estavam comendo com o Senhor Jesus ? Eles respondiam: Sem comer com o Senhor Jesus, não podemos viver. Como podem trocar um pedaço de pão e um pouco de vinho pela própria vida de vocês. Eles respondiam: Se nos tiram a possibilidade de fazer a memória do ressuscitado, tirem-nos a vida por que não vale a pena viver”.
4ª. A solidariedade fraterna - a partilha. “Não havia necessitados dentre eles, pois repartiam conforme a necessidade de cada um” (At 2,45). Isso não está entre os sete dons, mas se não é o Espírito que faz isso, que outro Espírito seria capaz ? É a primavera do Espírito que realiza isso nos discípulos. Aqui há um projeto do Espírito criador para toda a humanidade. Esta é a dimensão mais sócio-política de Pentecostes.
Pense no que era o Império Romano, a sociedade grega... tão avançados; no entanto, foi esse grupo de pobres ignorantes que não conhecia sistema econômico algum, por meio do Espírito que lhes falava no seu coração, que chegaram a maior fraternidade possível.
Não custa produzir fraternidade de mentes: gente que pensa e sente da mesma forma. Mas a maior exigência do Espírito é a partilha dos bens: “Quem quer salvar sua vida a perde; quem a perde por causa de mim e do Evangelho vai salvá-la” (Mc 8, 35). Isso é o que o Espírito produz. E toda a forma de apropriação, de acumulação, de não partilha, em último sentido, é começar a morrer. “Se dizes basta ao amor, começaste a morrer”. Não somos almas, nem idéias, mas testemunhas do ressuscitado Jesus, que não teve nem sequer uma pedra onde reclinar a cabeça. Somos testemunhas dele. “O Espírito vos recordará tudo quanto vos ensinei” (Jo 14,26).
5ª. Contágio missionário: o grupo de pessoas que convive assim, que cresce como irmãos, que segue o irmão Jesus e prossegue sua mensagem, vive sem necessitados entre eles. Por isso, não pode deixar de ser contagioso. Por isso o Senhor ia somando a eles novos seguidores. Conquistavam mais simpatia do povo, dos não crentes. O contágio brotava naturalmente de sua maneira de viver. Uma comunidade deve rever sua capacidade de contágio, de testemunho. Não ficar acusando a outros: “Chamamos e ninguém quis vir”.
O Irmão Carlos quis ser irmão, assemelhar-se aos demais, aos últimos e nunca conseguiu companheiros. Conseguiu depois de ter entregado tudo “como o grão de trigo que morre” Jo 12 24. Somos os privilegiados.
O Bem amado Irmão e Senhor que ele apreciava tanto, com quem sabia perder tempo na adoração, na meditação do Evangelho, o fez voltar-se radicalmente para os outros. Ele dizia:
“Todos somos filhos do Altíssimo. Como devemos apreciar a todo ser humano, como devemos amar a toda a pessoa humana. É filho de Deus.. amemos a essa pessoa que Deus ama todos os instantes de sua vida... Estimemos, amemos do fundo do coração a toda pessoa por causa de Deus, nosso Pai comum”.
“Não nos dediquemos a alimentar as ovelhas gordas, limpas e dóceis, abandonando as pobres à sua desgraçada sorte”.
“Amemos a todos, por Deus, seu Pai e Salvador. Cuidemos especialmente dos enfermos, dos pecadores, pois são eles que têm maior necessidade de nossos cuidados.”
“Ser amigos de todos, bons e maus, ser o irmão universal”. Um tuaregue questionado sobre o testemunho do Ir. Carlos, disse simplesmente: “O único que recordo dele é que foi para mim um irmão”.
“Aqui há muitos escravos... não escondo aos meus amigos franceses que essa escravidão é uma injustiça, uma monstruosa imoralidade e que nosso dever é fazer o possível para suprimi-la... Estamos obrigados a colocar os meios necessários para aliviar estes infelizes... Não podemos ser cães mudos, sentinelas adormecidas: Devemos gritar quando vemos o mal”.
Numa sociedade tão dividida, como a do Chile, onde 3% dos mais ricos consomem 46% do PIB e 10 % dos mais pobres apenas 1,4%, como ser discípulos de Jesus e testemunhas do seu Espírito de comunhão, se não lutando para mudar esse sistema ?
Fraternidade sem luta, sem compromisso com a justiça é contraditória, é hipócrita. Como dizer Pai nosso num país onde a grande maioria passa fome ?
Não é honrado dizer: Venha teu reino e não fazer nada para que ele realmente venha. Temos que lutar, estar insatisfeitos, mesmo sabendo que colocar-se ao lado dos explorados põe em risco a própria vida.
Enquanto o sonho de Deus não se realiza, não podemos ser irmãos tranqüilos, se é que o Espírito de Jesus nos move.
Sugestões:
Imaginar uma reunião de comunidade das descritas por Lucas em Atos, bater à porta e dizer-lhes: deixa-me sentar para ficar contemplando... Será que há essas características de Lucas em nossas comunidades, fraternidades ?
Re-inventemos a partir de nossa própria experiência
Agora, convido vocês a contemplar, sem preconceitos e deixar-se humildemente questionar:
Quanto tenho eu de irmão e irmã ?
Quanto tenho eu de discípulo de Jesus ?
Que é para mim a fração do pão ? Posso viver sem ela ?
No Chile, muitos querem ser “sacerdotes”, mas não está claro se querem ser discípulos de Jesus. Quando todos procuram acumular, garantir o futuro, consumir, sei partilhar o que tenho ?
Experiência do pintor. Enquanto pintamos a parede, operação que não faz barulho algum, disse para o meu companheiro que Cristo, tendo tudo, se fez mais pobre que os pobres. E ele me disse: “Que ingênuo esse seu Cristo, sendo ele tão rico se fez mais pobre que eu ?”
Experiências do comunista ateu. Depois da segunda prisão, quando voltei ao trabalho operário, um comunista ateu me perguntou: “Por que você não faz como os outros, que contam sua experiência da prisão, ficam famosos ? Você volta ao mesmo trabalho ?”
Devemos aprender a partilhar, saber perder para partilhar com Cristo, contemplar...
No início, a Igreja era dos pobres e aceitava os ricos que assumiam a partilha dos seus bens com os pobres. Agora a Igreja é dos ricos que dão esmolas aos pobres, dão o que lhes sobra.
Minha proposta para esse momento de adoração: contemplar nossa vida e prática e ver se somos realmente convertidos a esse Espírito das primeiras comunidades...
1. 3. HOMENS E MULHERES CONVERTIDOS, POR ISSO MISSIONÁRIOS!
Suponho que todos tenham lido “Que novidade é essa - Uma leitura dos Atos dos Apóstolos”, subsídios do Projeto Ser Igreja no Novo Milênio da CNBB.
Vamos fazendo uma caminhada juntos. O Espírito, o vento que faz de nós discípulos de Jesus - testemunhos da fraternidade inaugurada por Jesus, o irmão de todos - que chama a fraternidade cósmica - Igreja de irmãos e irmãs. A Igreja é o sacramento da Fraternidade.
Ontem, vimos as cinco características dessa fraternidade. É uma comunidade onde aprendemos a crescer, renascidos como irmãos e irmãs uns dos outros, sobretudo dos mais pobres; a crescer como discípulo de Jesus, na partilha de tudo o que somos e temos, sem esquizofrenias; na partilha profética com os irmãos sem direitos, despojados dos direitos humanos para que vivam com dignidade. A força do Espírito faz dos diferentes irmãos: tarefa impossível para nós.
A missão. Quem não tem a experiência - primeira e fundante - do Cristo Salvador, do Espírito que irradia o mistério Pascal, de Cristo na vida - não tem nada para comunicar aos outros. “Acreditei, por isso falei”, nos diz Paulo (2 Cor 4,13).
Quando prevalecem na Igreja a lei, a autoridade, a volta à antiga disciplina - é porque se debilitou o “acreditei, por isso falei”.
Olhando a caminhada da Igreja, temos a tentação de culpar os outros. Quando vejo os grandes, Francisco de Assis, Carlos de Foucauld, Ignácio de Loyola e outros percebo que tinham motivo para culpar os outros, até o Papa. Francisco de Assis poderia ter culpado Inocêncio III, mas, quando no velório saquearam todos os bens do Papa, Francisco de Assis tirou sua única túnica para cobrir o corpo do Papa.
A evangelização acontece por meio do contágio missionário. É impensável a missão, sem uma nova e permanente conversão a Jesus e ao Evangelho. Por isso chamo a meditação de hoje: homens e mulheres convertidos, por isso missionários.
Quando um tranqüilamente se deixa embeber pela leitura dos Atos, maravilha-se quando pensa: quem eram eles, que cultura possuíam, que relações públicas tinham? Pescadores, cobradores de impostos, prostitutas, sacerdotes do templo convertidos, mas a maioria era da casta dos impuros, gente simples. Essa gente simples conseguiu, depois de Pentecostes, em quarenta anos, expandir o movimento de Jesus a todo o mundo conhecido de então. E minaram o Império com essas comunidades. É preciso meditar a ação dos primeiros para imaginar que, com a lentidão dos meios de comunicação, entraram na Sinagoga, no areópago, em Roma, em apenas quarenta anos. Depois de cinco séculos, Maomé fez algo semelhante no Islam.
Somos descendentes dessas pequenas comunidades dos Atos.
Quem eram os missionários ? Em Antioquia (At 13,1ss) tinha mestres e profetas, mas basicamente missionários era a comunidade e os membros-testemunhas suscitados pelo Espírito e indicados pela comunidade. Comunidades e testemunhas.
O que anunciavam ?
Que Jesus era o Messias predito pelas Escrituras, que viveu no meio de nós, que as autoridades mataram. O autor da vida que Deus ressuscitou. Nele estava a Salvação do Mundo. Ele enviou o Espírito sobre toda a criatura. Esta Boa Nova tinha tamanha força que, pouco a pouco, provocou conflitos com a comunidade judaica e desencadeou a perseguição. Eles serviram-se dessa perseguição para anunciar, com mais coragem, o testemunho da libertação, a pregação do Reino pela força do Espírito.
Eles encontraram nesse caminho dificuldades internas e externas muito sérias.
Internas: tensão entre institucionalização e liberdade, doutrinação e criatividade missionária. Numa leitura transversal da análise de conjuntura feita ontem à noite, percebe-se que a tensão entre institucionalização do religioso e o dinamismo do Espírito criativo, libertador, vital, permanente é a mesma tensão que acontece no mundo. Numa mesma perspectiva, é uma luta constitutiva. O que Lucas relata da conversão de Saulo/Paulo é uma luta permanente dentro dele mesmo. Onde há transgressões institucionais, prevalece a fidelidade ao Espírito. Em meio a tensões e conflitos, acontece a vitória do Espírito.
Hoje, quando falamos de Nova Evangelização, de um Pentecostes da Igreja, é a mesma tensão que se repete. Como os apóstolos na transfiguração, depois de dois mil anos, a Igreja tem a tentação de fazer três tendas para aprisionar o Espírito. E Jesus manda descer do monte, pois o mundo precisa ser transfigurado. Se permanecermos eternamente nas tendas, a evangelização dos pobres, a Boa Nova da libertação não acontece. Torna-se impossível.
Quando se lê em profundidade a vida do Ir. Carlos, percebe-se que sua novidade, sua radicalidade missionária criativa está profundamente ligada à sua experiência de Deus. É preciso compreender o que Deus era para ele: o absoluto, a razão de ser da sua vida, de todos os seus desafios, o seu amor.
O encontro pessoal, a íntima relação de amizade com Jesus, o compromisso com o Reino de Deus e sua justiça, deram-lhe a disposição de ir até os extremos da terra e viver até o fim dos tempos para anunciar o Evangelho.
Ir. Carlos, diferentemente do que Mateus relata dos escribas e fariseus (Mt 23,3), dizia e fazia. Quis gritar o Evangelho com sua vida e fez de sua vida um grito. Um grito que ninguém ouviu. E constatamos que hoje o que mais se busca é a eficácia, os frutos imediatos, a pastoral de resultados.
E nós, temos consciência de que somos discípulos de Jesus, seguidores de um missionário fracassado. Ir. Carlos insistia que não se deve falar tanto dos santos, mas do que fazem os santos. “Admiramos os santos para seguir Jesus como eles”.
Acredito na força missionária do fracassado, do fracassado Jesus de Nazaré, aquilo que Paulo chama o mistério da Cruz: escândalo para os Judeus, loucura para os gregos, para nós força de Deus ?
Num mundo da eficácia, dos poderosos, dos técnicos, das grandes empresas, nós, discípulos de Jesus e irmãos do Ir. Carlos, acreditamos na força missionária do missionário fracassado e dos fracassados de hoje, os excluídos? Os pobres eram mãos de obra barata para o Norte, hoje nem isso são. Não interessam mais. São considerados massa sobrante, peso morto. Somos discípulos missionários de Jesus de Nazaré, misturados ao pobres sem poder no mundo, partilhando com eles. Nós acreditamos que mesmo no fracasso da Cruz ele é o Ressuscitado da nova criação. O Ir. Carlos acreditou nisso e sua vida foi um testemunho desta fé.
Como meu companheiro de luta, Robson, me dizia: “eu não acredito nesse seu Deus, pois ele não se aproveita de sua condição”. Quando falamos de missão, temos de pensar na forma de missão de Cristo e precisamos descobrir de que se serve o Espírito hoje para refundar a Igreja. Nós da América Latina somos os privilegiados. Se olhamos as grandes etapas do movimento missionário da Igreja: dos mártires, dos padres do deserto, dos monges, mendicantes - dominicanos, franciscanos, jesuítas, congregações missionárias do século 19, quem assume o protagonismo missionário hoje? Por acaso não são os pobres, que não têm padres e nem madres fundadores ? São os pobres de pentecostes, os crucificados da história, os que nada são para confundir os que são. Eles, conscientemente ou não, são os que vivem o movimento missionário que constrói a nova humanidade, a nova Igreja.
Somos agraciados pelo Espírito por viver nesse momento histórico e entre eles. Essa é a graça de Pentecostes! É uma graça viver hoje no meio dos pobres, sacramento do Cristo encarnado feito humus para todos. Feito último. Os marginalizados e excluídos são os últimos. São o mistério de Cristo entre nós, e neles está a força do futuro da Igreja de Nazaré.
O movimento missionário na Igreja por meio de servidores, ministros diáconos, padres, bispos e papa só acontece se nos deixarmos evangelizar pelos pobres. Não temos nada a dizer ao mundo, a não ser palavras vãs, se não nos deixamos evangelizar pelos pobres. Recaem sobre nós as denúncias que Jesus fez aos fariseus e doutores da lei: “não imitem suas ações, pois eles falam e não praticam” (Mt 23,3).
Uma Igreja de documentos que não dá testemunho com o grito dos seus servidores presentes no meio do povo, não é credível. Jesus Cristo gritou a Boa Nova com sua vida !
Proponho duas perguntas:
1ª. O que minha vida evangeliza? Como minha vida grita o Evangelho ?
Ou, o que escandaliza a minha vida - aos ricos e também aos pobres, não com minha idéias, pregações, intenções...mas com a minha vida ?
A exemplo do que afirmava o Ir. Carlos: “O meu apostolado deve ser o da bondade. Que os outros, ao me ver, possam dizer: Se este homem é tão bom, o Deus em quem ele acredita deve ser muito melhor”.
2ª. Que caminho novos, que riscos, inventamos, criamos e enfrentamos para levar o Evangelho aos outros ?
Hoje há muitos mártires. O problema é que o sistema de canonização de Roma não acompanha o dinamismo do Espírito, mas o povo sabe quem são seus santos. América Latina vive sob uma “nuvem de testemunhas”.
Que preço pagamos por buscar caminhos novos de missão, de testemunho, de profetismo ? O mesmo que pagaram Estevão, Paulo e tantos outros ? Quanta loucura por ser missionário do crucificado Jesus Cristo !
Que escândalo a minha vida provoca a ricos e pobres, por buscar viver como testemunha do Cristo ? O testemunho de Paulo (1Cor 2, 9), trabalhando com suas mãos para não ser pesado aos irmãos, rompeu com a tradição judaica de quem exercia a missão devia receber dela. O que isso diz hoje, nessa sociedade que vivemos? Ele tinha o direito de receber do seu trabalho, mas rompeu a tradição para ser radicalmente fiel à novidade do Evangelho. Hoje, temos também de romper. Qual a ousadia do espírito missionário hoje? Acreditamos na força missionária dos pobres ? Essa pergunta parece ridícula, mas o Evangelho está cheio delas.
O que pode dar credibilidade ao Evangelho hoje ? Nós acreditamos que os sem poder das comunidades de pobres, os nazarenos de ontem e de hoje são os ressuscitadores na história !
1.4. “COM A CRIATIVIDADE DO ESPÍRITO REINVENTEMOS A IGREJA FRATERNA NO BRASIL”.
Iniciamos o 5º dia de retiro com a projeção de um vídeo - “O revés da moeda - Economia e Solidariedade” -, criação do Fórum de Cooperativismo Popular do Rio de Janeiro, que tem como objetivos: - divulgar a proposta da sócio-economia solidária; -fomentar a criação de novos grupos de produção; - contribuir para a educação em torno do consumo responsável e de uma economia diferente.
Pe. Mariano, começou desenvolvendo o tema “Com a criatividade do Espírito reinventemos a Igreja fraterna no Brasil”.
O Espírito que pairava sobre a criação e recria a história a partir dos pobres tem tudo a ver com o vídeo que acabamos de assistir e com o que Lucas relata nos Atos. Onde há amor, onde há solidariedade, aí está presente o Espírito de Jesus, nosso irmão, e o mistério da Igreja.
Experiências de solidariedade, como essas relatadas no vídeo, estão se multiplicando no mundo todo. É com esse pano de fundo que queremos reiventar, com a criatividade do Espírito, a Igreja fraterna do Brasil, do Chile, de Moçambique...
Nossas análises de conjuntura mundial e eclesial ajudam-nos a discernir a ação do Espírito de Deus, Espírito de comunhão entre diferentes, Espírito de amor, Espírito criador de futuro e de esperança. Espírito que encarnou o Filho de Deus em Maria e entre os pobres do mundo. Espírito que falou por meio de Jesus e o ressuscitou de todas as cruzes da história.
Abro agora um parêntesis. Assim como temos que recuperar para Igreja de Jesus Cristo, a Igreja de Pentecostes, temos que recuperar o “pentecostalismo” dos pobres que está encarcerando o Espírito fora da História. O problema do carismaticismo é o fundamentalismo e o reducionismo ao intimismo.
Questionam-nos muito que falamos do Espírito na História, do Espírito da libertação, mas não provocamos conversões pessoais.
Minha proposta, hoje, é partir da minha experiência. Minha conversão a Jesus Cristo, meu serviço ao povo. O Espírito me chama à conversão pessoal e ministerial. Estou consciente de que não é tradição dos retiros. Mas sempre tive reação de retiros pregados por monges e pregadores que não são pastores. Ensinam o aperfeiçoamento pessoal, mas ignoram que os diocesanos nos santificamos no exercício do ministério. Nós somos discípulos-pastores. Acusam-nos de que nós diocesanos não temos espiritualidade, e por isso há padres que buscam outras espiritualidades. Nós estamos na fraternidade porque queremos ser inteiramente diocesanos, pastores do povo de Deus hoje.
Duas palavras, antes de ver o que fazer com o discernimento.
1ª. Vamos ler João 21,15-30: “Simão, filho de João, tu me amas mais que a estes...”
Cada um de nós precisa dar um tempo - perder tempo com Jesus Cristo - para interrogar-se a respeito de sua situação pessoal. Esse não é um mero exercício intimista, mas algo inseparável da minha situação existencial como ministro, servidor dos outros - o meu pastoreio. O que nos atrai do Ir. Carlos é esta loucura: dar tempo ao seu Irmão e Senhor para lhe falar da situação dos outros, muito mais do que de si próprio. Aqui não é ele o centro da vida, do que faz aos outros, é Jesus o centro, ele é o Pastor e Mestre. Quando não há tempo para o Senhor, para os outros, para o Evangelho significa que nós estamos nos tornando o centro. Ouço, muitas vezes, dizer: “Eu tenho tantas almas na paróquia”. Cristo é o Pastor da ovelhas; elas não são propriedade nossa. Se não há relação pessoal de amizade com Jesus Cristo e com aquilo que o Espírito fala ao mundo e à Igreja de hoje, não existe pastoreio.
Os grandes desafios da história: globalização, exclusão, privatização são espaços onde devo discernir a ação do Espírito.
A pergunta de Cristo: “Tu me amas ?” não está dissociada do que Cristo fala na história. Isso não se descobre fugindo da história.
Não se trata de fugir do mundo, mas de se deixar interpelar por Jesus Cristo na profundidade da História. A oração é inseparável da preocupação com a História. O Ir. Carlos podia permanecer dez horas em contemplação diante de Jesus e, cada vez, era mais profunda sua preocupação com a história. E sua preocupação com a história o levava a aumentar o tempo de contemplação e a radicalizar o compromisso com os pobres. Quanto mais radical seu compromisso com os pobres, maior o tempo que gastava com o Bem-amado Irmão e Senhor.
Seu amor a Jesus Cristo crescia junto com sua paixão pela criatura na história. Nele é inseparável o amor a Cristo e ao povo. Se tu me amas, mostre que amas no serviço aos irmãos, apascenta minhas ovelhas. “Se alguém diz que ama a Deus que não vê e não ama seu irmão é mentiroso” (I Jo 4,20).
Recriar a Igreja, segundo os Atos dos Apóstolos, começa na intimidade com Jesus.
2ª. O Espírito que recria a história dirigiu e dirige a Igreja de todos os tempos. Vamos ler duas cartas do Apocalipse. Carta dirigida à Igreja de Éfeso (Ap 2, 1-6): “Você foi perseverante, mas há uma coisa que eu reprovo: você abandonou o primeiro amor”.
A carta dirigida à Igreja de Laodicéia (Ap 3, 14-22): “Você não é nem quente, nem frio, por isso vou vomitar você... Quem tem ouvido, ouça o que o Espírito diz às Igrejas”.
Todos os chamados ao serviço que nos faz a nossa Igreja devem ser assumidos como resposta pessoal a Jesus de Nazaré: essa é a fonte. Sem isso, todas as propostas pastorais se tornam inconsistentes. Resposta pessoal de amor a Jesus, fidelidade ao que o Espírito está falando na sociedade e na Igreja de hoje, como grande desafio para nós, pastores, servidores de nossas comunidades. Fidelidade pessoal a Jesus de Nazaré Ressuscitado como testemunham os apóstolos nos Atos. A abertura ao Espírito nos liberta de todas as nossas fraquezas, acomodações e traições a Cristo e aos pobres. E nesse espírito de confiança, contemplemos cada um dos cinco pilares da Igreja dos Atos:
1º. Igreja de fraternidade, de comunhão e participação. Qual a realidade, o desafio de nossas comunidades ? O que estamos fazendo para que elas sejam Igreja de irmãos e irmãs, de culturas distintas, abertas a ricos e pobres, capazes de se fazerem irmãos ?
2º. Igreja de discípulos de Jesus, servidores e servidoras, com um único Mestre e Senhor, nosso Bem Amado Jesus, não apenas sacramentados. Discípulos de Jesus convertidos. A Igreja nos sacramenta mas não nos converte. As devoções aos santos e a Maria também não conseguem converter.
A um pastor - Zenon - perguntei: Por que deixaste a Igreja católica ? Ele me respondeu: Por nada, gosto dela mas não encontrei nela Jesus Cristo. Encontrei nela solidariedade, amizade, mas não Jesus Cristo.
Nossas Igrejas são espaço onde a Palavra de Deus, que já foi tirada do povo, falada ao povo e que será entregue outra vez ao povo, às mãos dos pobres, sem mediação dos padres, para ser lida a partir dos pobres. Isto levou o próprio Jesus a exclamar: “Eu te louvo ó Pai” (Mt 11,25-26). Por que o pobre busca a Bíblia nos grupos crentes e não na Igreja ?
3ª. A fração do pão: centro vital da existência, do louvor e do serviço da Igreja. Lembremo-nos de novo o que nos diziam os mártires: “Sine dominica non possumos vivere” Sem o encontro pessoal com o ressuscitado, sem a partilha do pão não podemos viver. Sem isso nada é possível.
4º. Igreja onde se aprende a partilhar tudo o que somos e que temos. De cada um segundo suas possibilidades e à cada um segundo suas necessidades. Nada de divisão e privilégios... Todos irmãos, desde o Papa até último que foi batizado, banindo toda forma de exclusão, para destruir o sistema diabólico onde a motivação é a exploração dos outros.
Perder a vida para que o outro viva! Essa é a partilha de Cristo. Com todas as conseqüências políticas, econômicas inseparáveis da evangelização.
5º. Uma Igreja de profetas e de missionárias.
Nesses cinco pilares, temos uma pauta para reler nosso ministério, a partir da amizade e intimidade com Cristo e da abertura ao Espírito. Podemos perguntar então: Qual é nossa conversão pessoal e eclesial ? Esta é a maior contribuição de nossas fraternidades: fidelidade a Jesus, ao Espírito e aos pobres. Esta é a razão de ser de nossas fraternidades. Se elas não nos ajudam a radicalizar essa tríplice radicalidade, não servem para nada, são como o sal que serve só para ser jogado fora e ser pisado pelos homens (Mt 5,13).
Os pobres, nossos irmãos, e Jesus Cristo vão dizer o que querem de cada um nós. Aí está o desafio do Espírito para cada um de nós, hoje.
1. 5. A CEIA DO SENHOR COMO ESCOLA DE FRATERNIDADE
Começamos ensaiando dois cantos:
Buenas nuevas!
Buenas nuevas pa mi pueblo
El que quiera oir que oiga
El que quiera ver que vea
Lo que esta pasando en medio de un pueblo
que empeza a despertar
Lo que esta passando en medio de un pueblo
que empeza a caminar
Podemos cambiar la historia
caminar a la victoria
Podemos crear el futuro
e romper todos los muros.
Si damos nuestras manos
Si vivimos como hermanos
lograremos lo imposible
ser un publo de hombres libres.
ORAÇÃO DO ABANDONO Oración del Hermano Carlos
Adaptação e música:
Irz Auxiliadora de Jesus
Nacarágua
Meu Pai, ó nosso Pai Oh Padre, Padre nuestro
a vós eu meu abandono a ti nos entregamos,
o que de mim fizerdes ponemos nuestras vidas
o que de mim fizerdes penemos nuestras vidas
ó Pai, vos agradeço. oh Padre entre tus manos
A tudo estou disposto Haz de mí lo que quieras
é tudo o que o desejo, y yo te lo agradezco,
contanto que se faça estoy dispuesto a todo
em mim vossa Vontade estoy dispuesto a todo
e em todas criaturas. Señor todo lo acepto.
Ó Pai, em vossas mãos Con tal que se haga en mi
entrego a minha vida y en toda creatura
com todo o meu amor tu voluntat, Dios mio!
de todo o coração es todo lo que quiero,
meu Deus, porque vos amo solo eso yo deseo.
Pra mim amar é dar-me Entre tus manos, Padre
entregar-me sem medida encomiendo mi vida
com infinita confiança yo te la doy, Dios mio
com infinita confiança y quiero entregarla
por que vós sóis o meu Pai. Señor porque te amo.
Para mi amarte es darme.
es ponerme en tus manos
con inmensa confianza,
con inmensa confianza
porque eres tu mi Padre.
A pedido, vou fazer duas coisas hoje: apresentar o que preparei para vocês sobre a Eucaristia e partilhar um pouco da minha própria experiência.
Toda a leitura dos Atos gira em torno à partilha do pão. Lucas descreve a vida da comunidade que partilha o pão com alegria e simplicidade. A Eucaristia ocupa lugar central na vida do Ir. Carlos. Devido a essa experiência, durante muitos anos ele não se atreveu a pedir o sacerdócio. Não queria estar sobre os outros. Só pediu quando percebeu a necessidade dos pobres de ter a presença da Eucaristia.
Aí há uma intuição profunda: o mistério da Eucaristia está no centro de toda a vida dos pobres, no seio de toda a Igreja. O Concílio Vaticano II já dizia que a Eucaristia é a fonte e o cume de toda a vida da Igreja. Gustavo Gutierrez costumava falar: que os pobres, quando participarem da partilha do pão, se sintam em sua sopa.
Ainda não conseguimos passar a experiência do nome real da Eucaristia. A palavra missa diz muito pouco. Traduzimos Eucaristia por ação de graças. Mas o mais próximo do povo é Ceia do Senhor ou Partilha do Pão.
O desafio está em como fazer com que a memória da Ceia do pobre de Nazaré ressuscitado, do seguimento de Jesus Pobre, proporcione aos pobres a experiência de se sentirem em sua própria casa. Todas as declarações, todos os documentos da Igreja sobre inculturação da liturgia, não conseguem fazer isso. O Brasil é um dos poucos países que levam a sério a inculturação litúrgica.
Como recuperar essa dimensão para os simples e pobres, no espirito da (1Cor 11,17ss) (o mais antigo documento sobre Eucaristia - ano 50), é a questão chave da autenticidade da Eucaristia. Neste texto, Paulo destaca qual é a autenticidade da Eucaristia e critica o individualismo: cada um come sua própria ceia! Para Paulo, a medida de autenticidade para que a Eucaristia seja verdadeiramente a ceia do Senhor é a situação dos pobres que partilham nesta ceia. Isso define ser ou não ser a Ceia do Senhor ! Estamos longe das condições de jejum, de ministros ordenados e outra preocupações litúrgicas ortodoxas. O que conta é a solidariedade com os pobres. É uma fonte profundíssima. Não se trata de arqueologia litúrgica, mas fazer com que a Ceia do Senhor não seja escândalo para os pobres.
Quanto ao segundo ponto de reflexão nossa, hoje, tomo três experiências da minha vida em Santiago.
1. Um dia, o arcebispo Carlos, mercedário, veio a minha paróquia e me perguntou: “Que novidade litúrgica me vais pedir para eu celebrar ?. Disse-lhe: nenhuma, somente a mais tradicional: homilia e Eucaristia. Completei: você vai encontrar um povo acostumado a partilhar, aqui a partilha é como na família. Ao que ele me contestou: não vai ter problema! Acrescentei: “Quando você fizer a homilia, convide o povo a partilhar a Palavra de Deus”. Ele retrucou: Como? Disse-lhe: não se preocupe, eles já se fazem o que fazer. E sobre a ação de graças, quando disser as palavras: “demos graças ao Senhor, nosso Deus”, deixe um tempo de silêncio para o povo se expressar e ele vai começar a dar graças !”
A homilia e a ação de graças são elementos fundamentais para a participação do povo. Aí, os ricos que estão presentes, devem dispor-se a ouvir os pobres, como nas Igrejas primitivas onde os ricos eram convidados a partilhar com os pobres.
A leitura do dia era um trecho da carta aos Romanos, onde Paulo falava de suas tristezas. Estavam todos ao redor da bíblia. Depois de ler, o cardeal perguntou: esses são os problemas de Paulo e o de vocês ?
Leni, um jovem nascido na ditadura. O pai colocou esse nome como uma forma de disfarçar o nome de Lenin, herói da revolução russa. Leni perguntou ao cardeal: Quais são os problemas do senhor ? E aí tivemos a oportunidade de ouvir uma das mais bonitas homilias do cardeal, onde ele afirmou que a falta de conhecimento do amor a Cristo e à Bíblia é a causa de tantos problemas sociais.
Outra experiência:
Era um domingo da leitura do profeta Amós, um texto interpelador que condena os ricos que compram os pobres por um par de sandálias. Depois da leitura, os representantes das pastorais gritaram as próprias exigências. Um jovem começou a gritar a leitura profética, atravessando a sala. Tinha crianças da catequese, jovens, agentes da pastoral operária e outros. Depois tomaram a Bíblia e releram o texto. Disseram: precisamos gritar hoje aos poderosos o que o profeta gritou aos ricos de seu tempo. E o testemunho mais comovente foi quando uma criança começou a gritar: como vocês ricos comungam, quando nós, crianças, não temos pão para comer ?
Os jovens disseram: por que nós, jovens, não podemos nos expressar nas celebrações ? Só falam os padres. Depois falou um operário e também uma vózinha, olhando para os ricos, disse: eu servi nas suas casas, tantos anos aí trabalhei, é justo que aquilo que ganho hoje não dê nem para comprar um par de sandálias ?
Um dos responsáveis da equipe de solidariedade ao povo, disse: está muito bom o que vocês falaram, mas vejam a cesta das oferendas ? Está vazia e temos que alimentar mais de 800 pobres. Aí propus que suspendêssemos a Eucaristia e que cada um fosse para sua casa buscar o que teria para partilhar... Caso contrario tem sentido celebrar a Eucaristia.
Isso é homilia, não pregação.
Eucaristia celebrada assim nos lembra o tempo em que o importante era o sacerdócio do povo. O sacerdócio ministerial estava a serviço do sacerdócio dos batizados. Hoje é o contrário.
Pedro nos diz: “Vós sois o povo sacerdotal chamado a gritar as maravilhas daquele que vos tirou das trevas à luz” (I Pd 2,910). O clericalismo da Eucaristia é feito de normas, onde o presidente para realizar a Eucaristia faz calar todos os demais.
No momento de ação de graças, onde todos estavam ao redor do altar, uma menina de nove anos, disse: “tenho que dar graças porque hoje tive café da manhã”. Seus pais são drogados e ela toma café apenas uma vez por semana.. O amor de Deus permite a ela fazer isso, dar graças quando consegue o café da manhã.
Aí um bêbado entrou - sem bêbado não há liturgia no Chile - e viu o povo a dar graças. Grita do fundo da Igreja: “Eu também tenho que dar graças. Não sou digno de estar aqui, mas este é o único lugar em que posso ser ouvido”.
Comentei com o cardeal: como pode ter uma norma canônica em que o povo não pode falar na Eucaristia e só o presidente fala ?
Continuamos com o prefácio. Quantos rumores do Espírito ! Quanta percepção do amor de Deus pelos pobres ! Quanta coisa que faria Cristo repetir: “Dou-te graças, ó Pai, porque revelaste essas cosias aos pobres e pequenos...”
Finalmente, o ofertório: dimensão da solidariedade. Esse é o momento de recuperar a solidariedade. Era o tempo do conflito em Ruanda. Falei à comunidade: a voz do Espírito pede-nos o que podemos fazer para os nossos irmãos do Ruanda ? Lembro-lhes que estávamos num bairro pobre de Santiago. Assumimos os compromisso de conseguir quinhentos quilos de arroz. Começaram a fazer coletas em todos os lugares. Chegaram a duas toneladas de arroz para Ruanda. Quando se dá sentido ao povo e se faz passar a ação pela Eucaristia, ele vai além do que foi planejado.. O desafio é fazer passar a solidariedade pela liturgia. Essa pode ser uma grande contribuição da fraternidade: a solidariedade aos pobres. Culto verdadeiramente agradável a Deus é o culto do amor solidário.
1. 6. UM POUCO DA MINHA HISTÓRIA.
Cronologia:
Éramos sete irmãos de família burguesa do Chile, criados num ambiente conservador, tradicional. Estudamos num colégio anglicano. Tinha o rigor característico do império britânico dos anos 40. Depois, fui matriculado para fazer o ensino secundário numa escola militar de Santiago. De lá, saí para fazer arquitetura na Universidade Católica. Vinha de família sacramental, de piedade tradicional. Na Universidade encontrei um monge que me questionou: E tu o que esperas para te converter ? Retruquei: já sou católico, converter mais o quê ? Não sou evangélico para pensar em conversão.
Naquele tempo, ter bíblia era coisa de padre ou de anglicano, mas não de leigo católico. Perguntei-lhe: O que devo fazer ? Ele me respondeu: começa a ler o Evangelho. Ele me indicou o capítulo 25 de Mateus. Quando o li, senti uma espécie de vazio. Percebi que era um católico praticante, de missa dominical e um ignorante de Cristo.
O reitor da Universidade Católica era um sacerdote. Nas férias, ele promoveu uma atividade para alguns alunos. Lembro-me que chovia bastante. Fomos visitar pessoas que viviam às margens do rio. Das minhas visitas, lembro-me de uma senhora que vivia com seus três filhos, dois cachorros. Quando cheguei, ela estava fervendo o leite. O pão era sobra que tirava do lixo e servia às crianças com um arame. Não sabia na época o que era tuberculose. Essa foi a minha primeira experiência com os pobres.
Depois veio a experiência do Lixão São Manoel. Era tempo de abertura da Universidade aos pobres nos anos de 50 a 53. Começava todo um questionamento de fé, de vivência do cristianismo, de compromisso. Dos que nos sentimos tocados, uns 11 entramos no seminário. Era tempo do Papa Pio XII. Ele acabava de proibir a experiência dos sacerdotes operários. E todos nós queríamos ser padres operários.
Quando entrei no seminário, deixei noiva, arquitetura, experiência com os pobres, com o lixão... Cheguei à conclusão: vale a pena deixar tudo e partir para o seminário! No seminário, havia mais de 14 nacionalidades, vindos de América Latina e Europa. Era um seminário de ponta na AL. Tempo marcado pelo Evangelho, pela Doutrina Social da Igreja, pelo Ir. Carlos, pelo Pe. Voillaume.
As coisas não eram tão tranqüilas. Tivemos até visitador de Roma. Mas, confesso-lhes, foi uma época riquíssima.
Depois da ordenação, fui a Paris estudar liturgia. Até hoje não sei porque fui fazer liturgia. Nossos professores eram monges, que não tinham nenhuma pastoral. E nós queríamos pastoral renovada. Os monges diziam que não estávamos lá para isso. Era para fazer liturgia séria. Tínhamos uma forte carga de história da liturgia. Aí aprendi que se gasta meia hora de preparação das oferendas no rito copta. Porém, também descobri um sentido da liturgia e não das rubricas. Me debrucei sobre a fonte da liturgia...
Acabei ficando doente e tive que voltar ao Chile. O cardeal Silva Henriquez me convidou a viver com ele, para cuidar de mim. Por uns seis meses, morei no centro de Santiago. Depois, o cardeal me propôs que fosse procurar uma casa para sair do Palácio Episcopal. Encontrei uma em bairro de classe média. Acabei indo morar com alguns seminaristas e fazer experiência de pequenas comunidades no meio dos pobres. Era a perspectiva do ano de Medellin, 1968, criar pequenos grupos de seminaristas vivendo no meio dos pobres, na periferia. Foi muito rico viver aí por uns cinco anos. Tempo de socialismo, cristãos para o socialismo...
Todos os que fizemos essa opção, fomos mandados embora. Roma queria recuperar o grande seminário. Falei ao cardeal que estava partindo para o norte do Chile, para fazer uma experiência como sacerdote operário, com o padre meio louco, mas quem se adaptava à loucura dele, podia aprender muito. Era uma experiência que reunia gente de todo o lado e telerevisada por Karl Rahner. Era uma experiência pastoral da Igreja, sem contato com o bispo (transferido daí por culpa nossa). Consistia praticamente em viver no meio do povo e como o povo; freqüentando os sindicatos, os partidos, os movimentos populares. Depois de ter sido padre espiritual do seminário e professor de liturgia. Depois da descoberta dos pobres e essa experiência no norte do Chile aconteceu o golpe de Pinochet. Todos os estrangeiros foram mandados embora e eu fiquei por que era chileno.
O golpe para nós era impensável. Vivíamos numa prepotência muito grande. O golpe era praticamente impensável por nós que nos julgávamos como a única democracia estável na América Latina. O golpe destruiu nossas entranhas. Penso que o golpe chileno foi muito mais duro que em outros países. Algo inesperado ! A crueldade do golpe quebrou todas as estruturas populares do Chile (sindicatos, partidos, associações...) Arrasaram tudo.
Alguns bispos, com um grupo de padres e religiosas começaram a dar asilo a estrangeiros e a chilenos perseguidos. Chegamos mais ou menos a umas 680 pessoas. Foi uma experiência impressionante com marxistas. Eles nos diziam: como vocês nos recebem assim, mesmo sabendo que somos seus inimigos, os acusamos de fomentar a religião, que chamamos de ópio do povo. Mesmo assim, vocês correm risco por nossa causa. Foi um belo tempo de solidariedade acima de todas as fronteiras.
Começamos também a ser perseguidos e detidos. Até hoje há gente do nosso grupo que foi detida e está desaparecida...
Quando fui detido, a comunidade colocou-se frente a seguinte questão: nós como cristãos vamos baixar a guarda ou tomar uma decisão? Decidiram manter-se fiéis. Depois de alguns dias, um que tinha se destacado nesta decisão foi detido e está desaparecido até hoje.
Bom, essa experiência vocês viveram aqui também. A Igreja na AL era uma força para nós. O Continente tornou-se um altar de mártires.
Numa dessas perseguições, fui chamado por Pinochet, junto com outros, por termos sido alunos dos militares. Preparamos o que falar. Quando chegamos, o general disse, olhando para mim: Você que foi tão bom aluno, como caiu nas mãos dos marxistas? Respondi: general, tenho um grande agradecimento a vocês, pois no colégio militar vocês me ensinaram a disciplina, me ensinaram que ordens dos superiores não se discutem. Sendo assim, não discuto ordem do meu general que se chama Jesus Cristo. Ele me ensinou a amar os pobres. A disciplina que aprendi no colégio militar eu a direciono ao meu general Jesus Cristo e ao Evangelho. Pinochet disse: “Não sou como Franco e Fidel Castro e vocês católicos estão contra mim. Os evangélicos me apoiam. Se vocês continuam assim, não há como continuar conversando com vocês”. E, olhando para mim, disse: “Você precisa de um tempo de retiro”. Assim, fui viver dois meses de exílio em Lima, com os Irmãozinhos de Jesus. Tinha o hábito de, a cada cinco anos, fazer um mês de Nazaré. Desta vez, fiz dois. Depois, voltei ao Chile e ao grupo de trabalho. O bispo me transferiu com outros dois padres. Fizemos uma experiência de comunidade. Cada um trabalhava e cada um ganhava cinco mil pesos (15 dólares). Foi um tempo rico de partilha com o povo. Experiência única de solidariedade com o povo. Começava, nessa época, o movimento de protestos. As favelas se manifestavam de forma pacífica; havia denúncias de torturas. Estava forte o movimento da não violência ativa, que tinha Gandhi como grande inspirador.
Tenho muito a agradecer a Deus pelas diversas oportunidades que tive na vida. Em 1986, passei um paraíso de três meses com Pedro Casaldáliga, em São Félix do Araguaia. Em 90, mais três meses com Leonardo Boff. Em 92, com 60 anos, assumi como pároco de São Caetano, distrito violento de Santiago. É um bairro quente, violento. Se você tomar um taxi em Santiago e disser que quer ir para lá, o taxista não o leva. Mas, se você disser que vai para a casa do Pe. Mariano, ele aceita.
Amanhã, dia 11 de janeiro, começaremos na paróquia uma avaliação da caminhada para passar a paróquia ao novo pároco, um bom sacerdote do Prado. Vou para a diocese de Chiloé, no sul do Chile, com um bispo com o qual fiz aquela experiência no norte do país. Bom, sou um missionário itinerante!
Um último recado. Não é justo que a Igreja do Brasil fique fechada dentro deste país. Mesmo hoje quando muitos de vocês dizem que as tendências são outras e há retrocessos nesta Igreja. Vocês têm uma caminhada história de renovação eclesial e compromissos sociais com os pobres que têm muito a transmitir a América Latina. O mundo é maior que o Brasil e vocês têm responsabilidade com as Igrejas do Continente. As fraternidades do Brasil têm responsabilidade na AL e na África. Não é justo esse fechamento de vocês. Faço-lhes este pedido em nome do povo da América Latina que precisa conhecer e aprender da renovação pastoral e teológica que vocês realizam na Igreja do Brasil
Fechar-se aqui na Igreja do Brasil é pecado contra Cristo e contra os pobres!