TRÊS MEDITAÇÕES DE ARTURO PAOLI

1- ESPIRITUALIDADE DA AMIZADE

Espiritualidade é o caminho de relacionamento e seguimento de Jesus. Há muitas maneiras de percorrer esse caminho.

O pondo de partida da espiritualidade da Fraternidade não é um projeto, mas uma Pessoa que me ama e está à minha espera. É o encontro de duas pessoas, Jesus e o Irmão Carlos. Jesus e cada um de nós. É semelhante ao caminho do franciscanismo. Os primeiros franciscanos sentiram-se atraídos pela experiência de Francisco. Descrevendo-os, no paraíso (Divina Comédia), Dante diz que “eles encantaram o mundo com sua concórdia e seu rosto alegre”.

A contribuição evangélica que a Fraternidade traz à Igreja reside no seu ponto de partida: a amizade pessoal com Jesus. Sem esta amizade, a vida ministerial pode desembocar no vazio, no funcionalismo burocrático. A Fraternidade não é um caminho triunfalista, de eficiência produtiva, mas um testemunho de amizade. Não se trata de fazer um projeto e iluminá-lo com o Evangelho. Trata-se, acima de tudo, de se deixar converter pelo Evangelho através da amizade com Jesus.

H. Assmann e F. Hinlelamment, no livro “A Idolatria do Capital” (Coleção Libertação e Teologia), afirmam que é preciso tirar de nossa mentalidade a concepção do Cristo-vítima de expiação de nossos pecados. Este conceito é muito explorado pelo capitalismo. “O Pai ofendido exige a morte do Filho para pagar a dívida dos nossos pecados”. Assim, os pobres do Terceiro Mundo devem aceitar todos os sacrifícios para pagar a dívida econômica(!). É a idolatria do capital, que exige o sangue dos pobres, vítimas humanas.

Não é esta a imagem do Pai que Cristo nos apresenta na parábola do filho pródigo. O filho se afasta dopai e retorna a ele sem mediador. Nem o pai, nem o filho enviam mediadores para negociar, nem advogado para interceder. O que pensam os dois filhos? O mais velho vê o pai como policial severo, patriarca exigente e durão. Está preocupado com a eficiência produtiva e a acumulação do capital: “Teu filho gastou tudo” – “matas um novilho” – “ te servi a vida inteira e não me deste nem um cabrito”. O mais novo descobre a amizade: “meu Pai é amigo, responde a todas as aspirações que tenho dentro de mim”. Esta é a verdadeira imagem do Pai. E Paulo nos diz que “Cristo é a imagem do Deus invisível”.

A vida cristã deve testemunhar o amor do Pai, que responde às aspirações mais profundas do coração humano. Não é um amor romântico, superficial, mas construtivo: demanda solidariedade, convivência fraterna, comunidade, Deste esforço construtivo, nasce a liberdade e a felicidade, características da verdadeira espiritualidade.

Francisco convidou seus companheiros para evangelizar Assis. Foram alegres, cantando, abraçando todo mundo e regressaram. À noite, lhe perguntaram: “Quando iremos evangelizar Assis?” Francisco respondeu: “Já evangelizamos!”

Desde Trento a Igreja adotou um método racional. Evangelizar tornou-se sinônimo de doutrinar, sacramentalizar, organizar juridicamente. Perdeu-se a dimensão mais profunda da amizade, da convivialidade, da distribuição dos bens.

Os homens de hoje cobram dos cristãos um testemunho de transparência. É na convivialidade transparente da amizade que se revela o Deus invisível.

A Fraternidade tem a missão de viver e testemunhar o dom da amizade. Deve ser construtora de convivência, de justiça, de paz, que são consequências da amizade profunda com Cristo.

Dominar, explorar, possuir: são patologias que carregamos dentro de nós, imagem e semelhança do sistema capitalista. O amor do Pai encontra em nós estes obstáculos e resistências. Somente em Cristo o Pai não encontrou nenhum obstáculo. Nesta pessoa humana única, o amor de Deus pôde entrar em todos os poros de modo ilimitado. Como humano, Jesus é também limitado. Mas, sendo sem pecado, o humano em Jesus não opôs nenhuma resistência ao amor do Pai. Por isso, Ele é a manifestação perfeita do Deus invisível. A primeira e fundamental missão da Fraternidade é testemunhar, através da amizade, o Amor invisível do Pai.

Há hoje um mal-estar generalizado nas relações com a Igreja. A raiz deste mal-estar reside na impossibilidade de evangelizar com decretos, leis, doutrinação.

Viver a Fraternidade numa Igreja em conflito interno, gerado por modelos eclesiais distintos, é descobrir que evangelizar não é doutrinar, mas dar graças à vida – “laetítia”: sentir a alegria no próprio corpo. Sentir que a amizade profunda com Cristo nos torna livres e libertadores. Descobrir que o Cristo não está na Eucaristia para ser vítima de expiação, mas que está presente com a paixão da entrega, da doação que nos transmite a vida, a liberdade, a alegria. Sem Cristo, somos absolutamente incapazes de criar relações de amizade.

Amor, liberdade, alegria de viver, são os dons do Espírito, que nascem da amizade com Jesus e revelam a imagem do Deus invisível. (Arturo Paoli, boletim da fraternidade nº 80, de março/abril/maio de 1990).

(as duas outras meditações: A missão da Igreja e A oração, eu publico em maio).

2ª MEDITAÇÃO- A MISSÃO DA IGREJA

Jesus nos ensina que Deus é ABBA: Pai amável. Os profetas descrevem o idílio permanente de Deus com a humanidade, que é a sua esposa.

A humanidade é a família de Deus que ainda vive dispersa, competitiva. Deve tornar-se família unida e amorosa.

Entre Deus e a humanidade existe uma mediação. Não é iniciativa do homem entrar em comunhão com Deus. O homem, a partir de si mesmo, sente-se indigno, incapaz. Freud explica o relacionamento neurótico com Deus que se funda no complexo de culpa. Em todas as religiões anteriores ao cristianismo, prevalece a visão sacrificial. Os astecas, por exemplo, sacrificavam à divindade os heróis da guerra, os jovens mais preparados e capazes.

Em Jesus, é Deus que vem gratuitamente ao encontro da humanidade. Assim, ele destrói a concepção sacrificial gerada pela culpabilidade. Deus é livre, mas também é amor. E o amor não tem outra alternativa a não ser comunicar o amor. A mediação para comunicar amor é o oposto da mediação do advogado que vai interceder pelo endividado (dívida-reparação).

Jesus está presente na Igreja em função da humanidade. O papa atual (João Paulo II) vive a contradição da Igreja. Apesar do triunfalismo, resquício da Igreja como sociedade perfeita, João Paulo II percebe que a missão da Igreja é servir a humanidade inteira. Daí suas viagens contínuas e também o gesto profético de reunir em Assis os representantes maiores de todas as religiões. Não se reuniram para discutir as divisões, mas para rezar pela paz.

O projeto de Deus em relação à humanidade está simbolizado numa palavra: a paz. Após dar todas as instruções a seus discípulos, Jesus lhes diz qual é o conteúdo central da evangelização: “Em todas as casas em que entrarem, digam: a paz esteja nesta casa”. Deus quer salvar toda a humanidade para que viva na paz.

A TRÍPLICE MISSÃO DA IGREJA

1- Manter presente o sentido e a finalidade da história.

Hoje, mais do que nunca, os homens perdem o sentido do movimento da história, principalmente por causa dos conflitos, das guerras, da exploração de algumas nações sobre outras.

O centro da pregação der Jesus é o Reino, A Igreja não é o fim em si mesma. Ela é mediação para realizar o Reino, para que o reino se estabeleça em toda a humanidade. Sempre que a Igreja esquece esta missão história, ela se torna apologética, sacramentalista, centralizada em si mesma. A partir de Trento, a Igreja virou as costas para a história.

Somente no Vaticano II retornou à ideia da aliança. A Igreja deve concretizar a aliança de Deus com a humanidade. Cristo é a força de Deus, a energia da história que conduz a humanidade rumo à pacificação, à reconciliação. A missão da Igreja é realizar a aliança através da convivialidade, da justiça e da paz. A Terra Prometida é a reconciliação, reunificação da humanidade e do universo inteiro com Cristo.

2- Meios para realizar a reconciliação

A Palavra e os sacramentos são os meios principais. Toda a criação deve caminhar para a adoção, para a aliança. Seremos filhos de Deus quando realizarmos a fraternidade perfeita, quando formos realmente irmãos que amamos e somos amados. Quem realiza esta plenitude é Cristo, através da ação do Espírito, da Palavra, dos Sacramentos. Assim, caminhamos para alcançar a estatura de Cristo.

3- A Igreja antecipa a plenitude da família de Deus.

Através da vida comunitária e amorosa, a Igreja contribui para tornar transparente a vida e o amor da trindade.

A vida religiosa desviou-se de sua vocação fundamental quando a cúpula da Igreja exigiu que ela assumisse a vida ministerial. De Trento para cá, a Igreja sobrestimou o aspecto missionário, conquistador, doutrinário, organizativo do poder. Até as congregações contemplativas fundaram paróquias e colégios.

Ficou relegada e até esquecida a missão primeira da Igreja: ser reflexo luminoso, transparência contagiante do amor de Deus, da luz de Cristo. Construir um templo, um colégio, um centro comunitário, é muito fácil, principalmente com as verbas estrangeiras. Difícil é formar comunidades onde a fraternidade seja realmente vivida. Uma paróquia super dinâmica e organizada, mas que não cria convivialidade, amor fraterno, é uma paróquia fracassada.

Tornar visível o amor escondido de Deus, é a tarefa primeira e a única que dá credibilidade à Igreja. Se não cumpre esta missão, a Igreja fracassa: é sal que perdeu o sabor, é luz colocada debaixo da mesa.

A Fraternidade exerce uma função profética quando colabora para que a Igreja exerça com coragem e lucidez esta tríplice missão.

Não há possibilidade de preservar e crescer no ministério presbiteral se este não for exercido e alimentado na missão universal da Igreja. Precisamos acreditar que somos personificação do amor de Deus e nossa missão abraça a humanidade inteira. Não existe função mais política que esta. É esta função profética e política que dá dignidade e sentido radical ao ministério presbiteral.

3ª MEDITAÇÃO: A ORAÇÃO

Estamos na Igreja e somos seus ministros na perspectiva do Reino: para servir a humanidade inteira.

Optamos pelos pobres e somos amigos deles na perspectiva da promessa que Deus fez a Abraão e à sua descendência.

Mas o centro de nossa vida é nossa relação de amizade com Jesus. Charles de Foucauld não ensina um método de oração, mas testemunha uma vida de oração. “Rezar é pensar em Deus, amando-o”. Na mentalidade formalista e legalista que caracterizava sua época, ele é renovador. Rompe os esquema estereotipados e rotineiros. “Rezar é frequentar Jesus.” Quem está interessado na relação com Jesus deve procurar todos os caminhos que levam à amizade profunda com Ele.

A amizade com Jesus é pessoal, personalizante, libertadora. “Não temais os que matam o corpo. Temei antes os que podem jogar o corpo e a alma na geena”. Não se trata apenas de pecado mortal, mas da renúncia da personalidade, da liberdade. Certos modelos de vida religiosa esmeram-se em oferecer comodidades física: casa, comida, estudo, conforto, lazer. Porém, com uma condição: que a pessoa renuncie à sua liberdade para ser subserviente aos interesses da congregação. Sem a possibilidade de crescer livremente, muitos se tornam frustrados, infelizes, infantis a vida inteira. A Igreja precisa de pessoas adultas, criativas, inovadoras.

Cristo pede nossa vida. Quem sabe, até o martírio. Porém, sem jamais bloquear a liberdade, sem destruir o centro da personalidade.

Paulo, que foi escrevo da lei, compreendeu como ninguém a liberdade que advém do seguimento de Jesus. “É para que sejamos livres que Cristo nos libertou. Na medida em que o homem exterior decai, vai perdendo os pedaços, o homem interior rejuvenesce, até atingir a maturidade de Cristo”.

Cristo pode nos pedir muita luta, vida dura, sacrifícios, mas se meu seguimento for autêntico, jamais desembocará na frustração; pelo contrário, no final do caminho, cada um poderá dizer agradecido: “Confesso que vivi”.

A oração é caminho de realização personalizante. oração que exige tempo, continuidade, fidelidade, Nada mais escandaloso e equivocado que dizer: “tudo é oração”. As atividades, por mais importantes e inadiáveis que pareçam, jamais justificam o afastamento da oração. Diante do amigo, a gente não temais programa. A amizade com Jesus se torna fraca e frágil quando qualquer atividade me faz passar um dia sem um tempo prolongado de oração.

Quem frequenta Jesus na oração manifesta em sua vida os frutos do Espírito: liberdade, amor, “laetitia”: alegria de viver.

Na Igreja há pessoas cronologicamente adultas, mas espiritualmente infantis. Liberdade não se compra na farmácia, nem se conquista intelectualmente.

Liberdade ou medo: não há outra alternativa: ou crescemos na liberdade, ou definhamos no medo.

Hoje, a Igreja hierárquica impõe a volta à disciplina por causa da insegurança, da incerteza, do medo. João XXIII abriu as portas da Igreja porque era livre, espiritualmente maduro. Em pouco tempo provocou uma verdadeira primavera na Igreja.

“Onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade. Esta liberdade só se conquista frequentando Jesus na oração. A oração desemboca no dom da liberdade que se reveste de amor, alegria, contemporaneidade (aggiornamento!). Uma relação pessoal de amizade não morre nunca, enquanto que a lei enrijece e qualquer teologia envelhece. A teologia de Ratzinger passou e ficou apegado a ela. Por isso, onde passa ele espalha a tristeza. É o inverno que se abateu sobre a Igreja.

Mais do que nunca precisamos recuperar profeticamente, através da oração, os frutos do Espírito indispensáveis para a vida e a missão da Igreja de todos os tempos: a liberdade, o amor e a alegria! (Arturo Paoli, boletim nº 80 da Fraternidade Sacerdotal, publicado em março de 1990).

ESTAS MEDITAÇÕES FORAM PUBLICADAS NO BOLETIM 80 (1990) DA FRATERNIDADE SACERDOTAL JESUS- CÁRITAS