NOSSA HISTÓRIA

ORIGEM E EVOLUÇÃO DA FRATERNIDADE SACERDOTAL JESUS+CÁRITAS

Henry Le Masne e Michel de la Villeon. (do boletim 111, julho 2002)

(Veja as fotos no final da página)

(Catedral de Boquen, cidade onde se deu nosso primeiro mês de Nazaré, em 1955)

Para resumir a história que vivi dos inícios da Fraternidade Jesus+Cáritas, estou convencido de que caminhei “cercado por uma nuvem de testemunhas” (Hb 11,1). De fato, seu nascimento e seu desenvolvimento não foram obra de uma só pessoa, mesmo tendo o Padre Voillaume desempenhado importante papel ao tomar, no início, a iniciativa de nos reunir, permanecendo guardião de nossa fidelidade à mensagem de Carlos de Foucauld. “A Fraternidade tomou corpo colegialmente”(Gabriel Isaac).


1- A “PRÉ -UNIÃO”

Alguns padres procuravam juntos como viver a mensagem de Carlos de Foucauld no clero diocesano, sobretudo Gabriel Isaac. É em seu itinerário pessoal que se enraíza a intuição do começo da Fraternidade Sacerdotal.

(Catedral de Issy-les-Molineuax)


No Seminário Maior de Issy-les-Molineaux, desde 1927, Gabriel está em contato com René Voillaume e os que formarão a primeira equipe dos Irmãozinhos de Jesus. Alimenta-se da Vida de Carlos de Foucauld, livro escrito por René Bazin, dos Escritos Espirituais e do Diretório, este último um texto importante por ter sido trabalhado pelo Irmão Carlos quase até sua morte. Participa dos dois retiros que, em 1932 e 1933 preparam a fundação dos Irmãozinhos. Sente grande atração pela vida religiosa.

Logo, porém, tem a intuição de ser chamado a ser discípulo de Carlos de Foucauld como padre diocesano e não como Irmãozinho.

Desde o início, Gabriel participa da vida da “Associação Carlos de Foucauld”, que reune todos os discípulos do Irmão Carlos. Entre os membros da Associação, há alguns padres. Começam a se reunir buscando viver uma fidelidade maior à mensagem evangélica do Irmão Carlos de Jesus e, ao mesmo tempo, à sua vocação de padres diocesanos:

-À mensagem evangélica de Carlos de Foucauld, pela importância dada à oração em Nazaré: as virtudes ocultas; às duas fontes vivas: a Eucaristia e o Evangelho; a um estilo de apostolado: bondade, amizade; à preferência pelos mais pobres; à fraternidade universal.

-À sua vocação de padres diocesanos, pela união como Bispo, sem obrigações de obediência na Fraternidade; pela prioridade às reuniões diocesanas em relação aos encontros de fraternidade.

A preocupação pela missão tem um grande espaço. Alguns pedem para trabalhar num meio bem popular com outro estilo de vida: trabalho manual, habitação, para estarem mais perto das pessoas, com relacionamentos simples e partilha de amizade.

O grupo começa a se organizar e se dá o nome de “União dos irmãos do sagrado Coração de Jesus”. Permanece estreitamente unido com os Irmãozinhos, comprometendo-se a um dia mensal de retiro numa de suas fraternidade, se possível. Mas, quer ser antes de tudo “um espírito e uma amizade”.

É nesta época que o Padre Voillaume começa a aparecer, colaborando conosco diversas vezes entre 1948 e 1951. Tinha uma tríplice preocupação:

1-responder ao pedido dos jovens atraídos pelos Irmãozinhos, mas com o desejo de levar uma vida apostólica ativa.

2-responder à caminhada de muitos padres que batiam à porta da Fraternidade dos Irmãozinhos de Jesus.

3-Assegurar o estabelecimento dos Irmãozinhos onde estiverem surgindo comunidades cristãs. Como no norte dos Camarões, pedindo missionários ativos no mesmo espírito.

Em junho de 1951, o Padre Voillaume redige uma nota sobre um ramo dos Irmãozinhos para padres de ministério. Trata-se de um Instituto Secular e não de uma congregação religiosa, para padres diocesanos, mas é de fato um ramo dos Irmãozinhos, e o superior é o Prior.

Em setembro de 1951, uma etapa decisiva será vencida. O Padre Voillaume nos convida a participar de um retiro que vai pregar às Irmãzinhas, no Tubet, perto de Marselha. Nesta ocasião tivemos a oportunidade de nos encontrar diversas vezes com ele e com Monsenhor de Provenchères, arcebispo de Aix-en-Provence, que acompanhava o conjunto dos grupos da Família Carlos de Foucauld. Um padre,Pierre Cimetière, que veio assistir à profissão de uma de suas sobrinhas, se junta a nós. Foi um amor à primeira vista e, para a União nascente, uma grande oportunidade de se enraizar ainda mais no clero diocesano. Ele dirá que descobriu em Carlos de Foucauld:

“Aquele que será talvez o santo típico de nossa época, tão presente a Deus e ao mesmo tempo aos homens, tão sedento de contemplação e ao mesmo tempo irmão universal, com um ardente amor por Jesus a ser levado aos mais pobres, aos mais afastados. Não foi isso que nos seduziu nele, porque era isso que angustiava nosso espírito e nosso coração?”


II- A “UNIÃO DOS IRMÃOS DE JESUS”

(DIJON ATUAL)

Em Mombard, Costa d'Ouro, Departamento cuja capital é Dijon, novo encontro em março de 1952. O grupo toma agora o nome de “União dos Irmãos de Jesus”, escolhe um responsável, Pierre Cimetière, e organiza estatutos, bem na linha do Irmão Carlos. Leigos consagrados são inteiramente membros da União. Infelizmente, seu pequeno número em relação aos padres amplamente majoritários, vai obrigá-los a se organizarem em grupo independente, que não durará muito. E a União se tornará “União Sacerdotal”.

Em seguida, acontecem diversos encontros que possibilitarão precisar melhor os objetivos e o espírito da União. Abre-se um debate que durará anos sobre o “compromisso”, revelando uma tensão normal entre os que entraram na Fraternidade atraídos pela vida religiosa, por vezes monástica, e os que vinham primeiro à procura de uma vida fraterna entre padres para assumirem melhor sua missão.


III-DUAS ASSEMBLEIAS QUE FUNDAM A UNIÃO.

1- O PRIMEIRO MÊS DE NAZARÉ (Boquen, agosto de 1955).

Com a preocupação de não tirar os padres por muito tempo de seu ministério – na época ainda não havia ano sabático – foi proposto um mês de formação àqueles que já tivessem caminhado numa fraternidade. Tratava-se menos de um grande retiro e mais de uma vida fraterna simples, partilhada na oração, no trabalho manual, na revisão de vida com um tempo de formação dado pelo Padre Voillaume.

Éramos uns cinquenta padres numa abadia em ruínas, a abadia de Boquen, na Bretanha, que Dom Aléxis – uma figura! - tentava refazer com alguns monges. As condições materiais eram rudimentares, não faltava trabalho: cozinha, reconstrução das ruínas, mas o ambiente era magnífico, em plena natureza, a dez quilômetros de qualquer povoação.

Foi para cada um de nós um tempo muito forte. Padre Voillaume fazia cada dia uma conferência, esforçando-se para adaptar a mensagem de Carlos de Foucauld. Não queríamos ser religiosos. Estava conosco Mons. De Provenchères, que nos acompanhava de perto desde o primeiro encontro de 1951, no Tubet.

Um pequeno grupo fazia uma experiência paralela à nossa. Tornar-se-ia a Fraternidade dos Irmãozinhos do Evangelho. Entre eles, um padre extraordinário, Philippe Dien, Reitor do Seminário Menor de Saigon. Uma amizade profunda nos uniria no decurso de seu itinerário, que o levaria ao arcebispado de Hué, encargo pesado que ele assumiria “entre sangue e lágrimas”, durante a guerra do Vietnã e depois.

No fim do Mês de Nazaré, dezessete dos nossos fizeram seu primerio compromisso, dizíamos “primeira consagração”. Esse passo correspondia ao nosso desejo de viver a fundo o Absoluto de Deus e era necessário – pensávamos então – fundar a União.

Um momento importante seria a eleição de Gui Riobé como responsável geral. Seu papel foi capital na continuação do enraizamento da União no clero diocesano, na criação de um mínimo de estruturas e na constante abertura à Igreja universal. Guy fará inúmeras viagens na Europa, na África, na América do Norte e na América Latina. A primeira viagem foi de quatro meses. Essas viagens eram, por vezes, muito exigentes para a sua saúde, mas possibilitaram-lhe o duro aprendizado da gratuidade: sentimento de não estar sendo esperado, acolhida fria de alguns bispos que tinham medo que seus padres deixassem o clero diocesano. Guy, porém, semeou a semente e a semente produziu frutos como se viu já na primeira assembléia internacional.


2- A PRIMEIRA ASSEMBLÉIA INTERNACIONAL (Taybeh, na Palestina, julho de 1962)

(Taybeh, Palestina)

Foi o primeiro encontro verdadeiramente internacional: cinquenta padres de 18 nações: Europa, África Negra, Oriente Médio, Egito, América do Norte e América Latina.

Esse grupo tão diversificado encontrou-se numa aldeia palestina, a Efraim do Evangelho, aonde, para escapar das autoridades que tinham decidido sua morte, “Jesus se retirou” (Jo 11,54), região vizinha ao deserto, que foi o lugar ideal de nossos dias de deserto.

Era um ambiente estranho para a maioria: moradia, alimentação, liturgia. A aldeia era totalmente cristã. Mas a acolhida dos moradores deixou todo mundo à vontade, tanto que, como chegamos no dia em que um filho da terra celebrava a sua primeira missa, fomos convidados a participar da festa. Cinquenta convivas imprevistos não é um problema nessa sociedade.

A vida fraterna era forte, sobretudo graças aos encontros diários em pequenas fraternidades, nas quais íamos nos conhecendo. Tive a chance de estar com Luigi Betazzi, atualmente Bispo de Ivrea, grande figura do episcopado italiano.


Tivemos, no entanto, que descobrir que a Fraternidade Universal não surge feita. Houve tensões, e até mesmo uma crise, quando os franceses foram criticados por quererem impor seus modelos, seu vocabulário, como “revisão de vida”. Era preciso deixar os não-franceses pensarem e construir a União segundo seu próprio jeito. Esta crise nos colocou uns diante dos outros na verdade. Um homem desempenhou um papel essencial na solução da crise, Pierre Cemitière, porque se mostrou muito próximo dos africanos, dos latino-americanos e de outros “estrangeiros”: sem ter viajado, ele mantinha contato epistolar com cada um, para quem ele era de fato o “Vieux Frère” (Velho Irmão).

Houve para mim momentos particularmente fortes:

-a primeira palestra do Pe. Voillaume: “Vocês vieram até aqui à procura de Deus, caso contrário só lhes resta voltar para casa”;

-os dias de deserto;

-a visita a alguns lugares santos, em particular lugares ortodoxos, graças a Vsevolod, sacerdote russo (em Betânia participamos do enterro de uma monja ortodoxa);

-a consagração definitiva que fizemos em Jerusalém;

-a visita a Nazaré.


(Cardeal Émile Biayenda)

Há também rostos dos quais não posso me esquecer, como Émile Biayenda, cheio de alegria, embora tivesse sofrido prisão e tortura em seu país. Foi arcebispo de Brazzaville e cardeal, e morreu assassinado; Simon M'Peqê, o Babá Simon, irradiando a sabedoria dos anciãos de sua África e que, embora pároco de uma grande paróquia, partiu como missionário para o norte dos Camarões. Duas faces entre outras nas quais se encontravam anciãos como Gabriel Isaac e jovens que estavam descobrindo a União, especialmente na América Latina.


(Presidente Marien Ngouabi à esquerda com Émile Biayenda então Cardeal Arcebispo de Brazzaville ambos assassinados em março de 1977 e com seu sucessor, o coronel Joachim Yhomby Opango na foto da direita)


IV- ALGUMAS EVOLUÇÕES

Deste breve histórico dos inícios, pode-se tirar algumas evoluções ?

1)- Nossa Fraternidade foi encontrando pouco a pouco o seu lugar na família espiritual originada na vida e da morte de Carlos de Foucauld. Isso aconteceu na tensão, às vezes difícil, mas finalmente fecunda, entre o chamado à perfeição evangélica, um pouco segundo o modelo da vida religiosa, e a fidelidade ao clero diocesano.

Entre os que entraram na União nos primeiros anos havia o desejo de uma vida religiosa, até mesmo contemplativa: apelo interior, expansão dos Irmãozinhos e das Irmãzinhas. O próprio Pe. Voillaume tinha dificuldade, no início, em ver nosso grupo como plenamente diocesano.

“Era o momento no qual Pio XII abria a possibilidade de um caminho de perfeição reconhecido aos leigos e aos padres, no mundo e com os meios do mundo, pelos institutos seculares. Muitos grupos evangélicos, já existenes ou em gestação, aspiravam por esse reconhecimento” (Gabriel Isaac, Origines et étapes, p. 64).

Entretanto, havia os padres que tinham procurado a União para nela encontrar os meios para uma fidelidade maior à sua missão pastoral e também uma vida fraterna, uma amizade entre padres, sem desejo de vida religiosa.

Desde o início, foi afastado tudo o que pudesse nos separar do presbitério, como equipes de ministério, tempos longos de formação. Pierre Cimetière e mais ainda Guy Riobé com o peso de sua autoridade, garantiram o caráter plenamente diocesano da União. Durante alguns anos foi pedido o reconhecimento da União como Instituto secular, mas depois o pedido foi abandonado.

Permaneceu porém, inteira, a exigência de perfeição evangélica. No lugar dos quadros da vida religiosa, há a fraternidade: “Tudo está na fraternidade”, dizia Pierre Cimetière. É o lugar onde se verifica a nossa fidelidade, graças à amizade de nossos irmãos, amizade compreensiva e ao mesmo tempo exigente. A revisão de vida deve se o meio dessa verificação num clima de verdade e de transparência.


2)-É interessante notar uma evolução no papel do responsável de fraternidade. No início havia um relacionamento pessoal com cada um: era a ele que a gente entregava a revisão de vida por escrito. Era um pouco como um superior. Agora, sua responsabilidade consiste em fazer com que a fraternidade desempenhe bem seu papel em relação a cada um de seus membros e garantir sua fidelidade ao Evangelho.


3)- Uma outra evolução: o lugar de Carlos de Foucauld na Fraternidade Sacerdotal. É certo que esse lugar dentro do movimento espiritual que ele suscitou é humilde e discreto. Seu papel é de nos levar a Jesus, ao Evangelho, à Igreja. Quem transmitiu fielmente a mensagem do Pe. De Foucauld, em sua pureza e seu vigor, foi o Pe. Voillaume. Por isso, devemos sempre voltar às intuições do início, ou seja:

-PRESENÇA DIANTE DE DEUS E DO POVO;

-NAZARÉ: VIDA SIMPLES, PERTO DO POVO, NA AMIZADE E NA GRATUIDADE;

-ATENÇÃO PRIVILEGIADA AOS MAIS DESPROVIDOS

Pode-se entrar na Fraternidade sem conhecer Carlos de Foucauld; penso, porém que não se pode ficar na Fraternidade sem um esforço para estudar sua vida e seus escritos. Parece que tal estudo se torna sempre mais importante em nossa Fraternidade.


4)- O anúncio do Evangelho a quem ainda não o ouviu foi a paixão de Carlos de Foucauld:

“O senhor pergunta se estou disposto a ir para outro lugar além de Beni-Abbés para a expansão do santo Evangelho: para isso estou pronto a ir até ao fim do mundo e a viver até o juízo final”! (a Dom Guérin, 27/2/1903).

Na União dos primeiros anos os padres eram orientados, ao menos de coração, àqueles dos quais a Igreja está longe, e muitos exerciam o ministério em meio muito popular ou entre imigrantes muçulmanos.

Talvez tenhamos percebido mais a dimensão missionária da vocação de Carlos de Foucauld, enquanto, no início, éramos mais sensíveis aos aspectos contemplativos da adoração, do deserto. Fizemos de alguma maneira um caminho paralelo ao seu, como o mostram, no fim de sua vida, sua carta de maio de 1911 ao Pe. Antonin sobre o “monge missionário” e seus esforços para fundar a “União” - associação – e promover um laicato missionário tanto na França quanto nas “colônias” (cf. “Correspondência com Joseph Hours”).

Ser da Fraternidade foi para muitos na Europa um elemento determinante na decisão de partir como “fidei donum” ou de se consagrar à missão na França como padres operários ou numa vida mais próxima dos imigrantes magrebinos.

Haveria outras evoluções a serem destacadas, sobretudo no campo da missão. Que nossa Fraternidade possa estar sempre em busca na Igreja, respondendo ás necessidades deste mundo ao qual o Senhor nos enviar para levar sua Boa Notícia.


Dijon atual, primeiros encontros em 1952


Taybeh, Palestina, onde houve o 1° encontro internacional julho de 1962


Catedral de Issy-les-Molineuax , a Pré-união, desde 1927, com René Voillaume