O IRMÃO CARLOS E A FRATERNIDADE

O LUGAR DO IRMÃO CARLOS NA FRATERNIDADE


Muitos padres procuram uma fraternidade pela convivência presbiteral, pelo apoio mútuo, pela espiritualidade. O Irmão Carlos só é descoberto depois. Os padres seculares caracterizam sua espiritualidade como não pertencente a nenhuma “escola”. Se houver uma escola será a do discipulado, descoberto na Palavra e no Sacramento e vivido no meio do povo.


Por isso é compreensível que um padre seja cauteloso quando apresentado a uma figura recente como Carlos de Foucauld e o movimento surgido de seu carisma.


No entanto, os que estão em fraternidade sabem o quanto o Irmão Carlos os ajudou a aprofundar a espiritualidade diocesana. De fato, a vida ministerial do padre secular tem uma profunda dimensão contemplativa, é marcada pela simplicidade do evangelho, é livre como o beduíno no deserto, ocupa o último lugar que é o lugar dos últimos, não se fecha em dimensões territoriais por ser universal, está inserida no mistério pascal sempre atualizado na eucaristia.


Irmão Carlos começou como monge, mas ordenou-se padre secular. Sonhou com uma comunidade de irmãos e viveu sempre sozinho. Seu convento foi o mundo, sua comunidade,tuaregues muçulmanos. Os padres seculares têm um pouco de monges. Em geral vivem sozinhos, sem ser solitários. Sua comunidade é o povo. Às vezes pouca gente em proporção ao número de habitantes do lugar, e nem sempre os mais expressivos. Os demais permanecem à distância. Em alguns lugares nos defrontamos com fortes opositores.


Há algo de deserto e de silêncio em nossa vida. Somos ministros do querigma. Anunciamos oportuna e inoportunamente a Palavra de Deus com os meios atuais de comunicação, e, no horizonte, o Irmão Carlos grita o Evangelho com sua própria vida. Sua presença silenciosa e significativa é um constante desafio ao nosso ministério “ordenado”. Com bispos e diáconos fazemos parte do “clero”.


Somos homens públicos e exercemos liderança. Somos respeitados e às vezes até nos beijam as mãos. No horizonte, o Irmão Carlos descobre o alcance da vida oculta de Nazaré. Ele se identifica com Cristo no fracasso de todos os seus projetos e cai por terra como a semente. E então dá muito fruto! Os construtores da “koinonia” se encontram com o irmão universal que vive oculto na solidão do último lugar.


Presidimos a oração do povo de Deus ocupando um lugar de destaque junto à mesa do Senhor. Conosco está o Irmão Carlos que nos mostra o valor do “estar”. Estamos juntos, mas estamos sobretudo na presença do Bem-Amado e Senhor Jesus. Mesmo presidindo, nossa presença é fraterna e gratuita.


O irmão Carlos permanece um profeta para as fraternidades. Ele nos inspira com seu carisma e nos provoca em seu total abandono à vontade de Deus. Suas intuições, refletidas em fraternidade, mostram-nos a vivência concreta do Evangelho e libertam-nos de desejos que obscurecem e entristecem a vida de um padre.


O Padre de Foucauld foi um homem do seu tempo. Atraente e enigmático, com estilo próprio, resultante de profundas convicções de fé.


Na fraternidade o Padre de Foucauld ocupa o lugar de um irmão mais velho, mas irmão de virtudes heroicas. Sua vida é entusiasmante e seu modo de ser presença de Igreja num mundo adverso é estimulante para a nossa ação pastoral. Na medida em que descobrimos sua figura, cresce o amor por essa pessoa tão simples, tão comum e tão singular.


Ele não nos convida a olharmos para ele ou a imitá-lo. Ele nos convida a olhar para onde ela olha. Seu olhar está fixo em seu Bem-Amado Senhor Jesus. Neste Jesus ele vê todas as pessoas e todas as realidades da vida. Por isso é um irmão universal.


O PROFETISMO DO IRMÃO CARLOS


Nossos irmãos participantes da assembléia do Cairo introduzem sua mensagem a todos os membros da Fraternidade Sacerdotal citando a conhecida frase do Irmão Carlos, escrita ao abade trapista Dom Martin, em carta de sete de fevereiro de 1902: “Não temos o direito de ser sentinelas adormecidas, cães mudos, pastores indiferentes”.


O Diretório de 1976, n. 18, falando do povo no qual vivemos e com o qual convivemos, lembra que às vezes se fazem necessárias “tomadas de posição claras e públicas e até mesmo rupturas indispensáveis”. E cita então o pensamento do Irmão Carlos:


Não sejais sentinelas adormecidas, cães mudos”. Trata-se, pois, de um pensamento já conhecido e assumido na Fraternidade Sacerdotal. Faz parte dos nossos objetivos não ser sentinela adormecida, cão mudo, pastor indiferente, ou, positivamente, na Fraternidade cada um de nós procura ser sentinela desperta, cão ruidoso, pastor comprometido.


A sentinela tem a função de vigiar, guardar, por isso deve estar atenta o tempo todo.


No nosso caso, isso supõe 24 horas de doação. Devorados pelo Evangelho, não há pausa ministerial. Somos cães ruidosos, ladrando para dar sinal, reagindo a alguma presença indébita, por vezes mordendo. Não reagimos, porém, pela violência do instinto. Somos inteligentes e racionais. O que não queremos é ficar quietos quando é preciso falar.

Interesses pessoais, interesses carreiristas não nos impedirão de dar o sinal quando a justiça estiver comprometida, quando a misericórdia for abandonada.


Pastor indiferente não se importa com a sorte do rebanho. Pastor comprometido está o tempo todo envolvido em ações concretas em favor de pessoas concretas e do conjunto da sociedade. Sua visão é larga, abrangente, envolvente. Suas ações são construtivas e criativas. Sua mente está concebendo constantemente e seu coração dá à luz projetos de vida. Marca presença, está, responde. Vive em função do rebanho.


Pastor indiferente cuida de si mesmo e de seu prestígio, não duvidando sacrificar as ovelhas para salvaguardar seu lugar ao sol.


Foi a propósito da escravidão no Saara que o Irmão Carlos afirmou: “Não temos o direito de ser sentinelas adormecidas, cães mudos, pastores indiferentes”. E acrescentava: “eu me pergunto, numa palavra, (estando de acordo como estamos a respeito da conduta a ser seguida com os escravos), se não é preciso levantar a voz, direta ou indiretamente, para tornar conhecida na França esta injustiça e este roubo autorizado da escravidão em nossas regiões, e dizer ou fazer dizer: isto acabou, non licet.


Na carta a Dom Martin, Irmão Carlos revela seu pensamento sobre a dignidade da pessoa humana e revela sua maneira de dizer o que pensa. Parece que Dom Martin, em carta, o havia aconselhado a evitar rebeliões e fugas de escravos e a consolar os escravizados com a esperança da libertação futura no céu. Irmão Carlos responde de maneira muito respeitosa, dizendo:


“Obrigado pela resposta tão clara e completa sobre a escravidão. O que o Sr. diz é o que estou fazendo em relação aos escravos. Longe de pregar-lhes rebelião e fuga, digo-lhes: paciência e esperança. Deus permite vossas penas para o vosso arrependimento e vossa glória celeste. Orai a Deus e santificai-vos. A quem busca o reino de Deus, o resto se lhe dá por acréscimo. A escravidão do homem e a pátria terrestre passam depressa, como a vida. Pensai na escravidão de satanás e na pátria celeste”.


Tais palavras soam muito mal a nossos ouvidos latino-americanos, ao menos soavam até agora. Mas, é na continuação que o Irmão Carlos se revela. “Porém, dito isto, e tendo-os aliviado na medida do possível, parece-me que nossa obrigação não terminou. É preciso dizer, ou existir alguém a quem compete dizer: non licet, vae vobis, hypocritae, que pondes nos selos e em toda parte ‘liberdade, igualdade, fraternidade, direitos humanos”, e reforçais os grilhões dos escravos, condenais às galeras os que falsificam vossos bilhetes de banco, e permitis que as crianças sejam roubadas de seus pais e vendidas publicamente, que castigais o roubo de um frango e permitis o de um homem (de fato, nestas regiões, crianças nascidas livres são arrancadas violentamente e de repente de seus pais)...


Não devemos nos imiscuir no governo do temporal, ninguém está mais convencido disso do que eu, mas é preciso “amar a justiça e odiar a iniquidade”, e quando o governo temporal comete uma grave injustiça contra aqueles dos quais, de alguma maneira, estamos encarregados (sou o único sacerdote da Prefeitura num raio de 300 kms), é preciso dizê-lo, pois nós representamos na terra a justiça e a verdade, e não temos direito de ser sentinelas adormecidas, cães mudos, pastores indiferentes.


Eu me pergunto, numa palavra, (estando de acordo, como estamos, a respeito da conduta a ser seguida com os escravos), se não é preciso levantar a voz, direta ou indiretamente para tornar conhecida na França esta injustiça e este roubo autorizado da escravidão em nossas regiões, e dizer ou fazer dizer: isto acabou, non licet. Avisei o Prefeito Apostólico. Talvez seja suficiente. Longe de mim o desejo de falar ou escrever, mas não quero trair meus filhos, não fazer o necessário por Jesus, vivo em seus membros; é Jesus quem está nesta dolorosa situação. “O que fazeis a um destes pequenos, a mim o fazeis”.


Não quero ser mau pastor, cão mudo. Tenho medo de sacrificar Jesus a meu descanso e meu grande gosto pela tranqüilidade, à minha preguiça e timidez naturais”.


IRMÃO UNIVERSAL - de Tony Philpot, 2012

Como padre, eu ofereço o Cristo Vivo ao Pai. Fui ordenado para isso. É a oferenda de todo o povo, não apenas a minha. Fui ordenado para ficar entre o céu e a terra; quando eu falo em terra, quero abranger todo o gênero humano. Eu falo em nome deles todos.

Por causa disso, o padre tem um laço forte com o irmão ou a irmã que está na loja, no ponto de ônibus, no bar, ou no parque; eles não o sabem, mas o padre foi designado para ser o embaixador deles. Esta solidariedade, o padre deve manifestá-la pelo afeto, pelo carinho, pelo amor fraterno. Já que é fácil sentir-se alheio a alguém porque fala outra língua ou pertence a outra classe social, ou recebeu outro tipo de educação, é mais fácil ainda ter preconceitos em relação a pessoas que têm outra cor de pele ou que, segundo as estatísticas da polícia, cometem delitos.

Houve, nos últimos cinquenta anos, muito movimento populacional, em toda parte do mundo. Houve refugiados por causa de guerras: houve gente buscando trabalho no exterior por não achar trabalho no próprio país. Houve famílias separadas procurando voltarem a conviver. Os governos tentaram limitar as migrações, mas com pouco resultado. Em toda parte, hoje, há movimentos de população: na Somália para o Quênia, do Afeganistão para a Inglaterra, do México para os Estados Unidos, da Líbia para a Sicília e Malta, da Indonésia para a Austrália... Muitos migrantes, nos países que os acolhem são explorados e vivem em condições sub-humanas, sendo desprezados com salários baixos, prestando serviços que nenhum nativo quer prestar. O comportamento do padre deve ser diferente!

Carlos de Foucauld dizia: “Quero ser um irmão universal”. Queria encontrar-se com árabes e tuaregues, não como oficial do exército ou representante do poder colonial, mas como um irmão de igual para igual. Temos algo a aprender dele. Ao encontrar-me com um estrangeiro, eu me encontro com um ser humano semelhante a mim, que precisa de amizade e amparo. O mandamento evangélico de amar ao próximo não admite nenhuma exceção. O dever da caridade ultrapassa os outros deveres.

Na prática isso significa, para o padre, ter capacidade de sorrir e de acolher; pode significar também querer aprender outra língua, com humildade, aceitando a dificuldade do aprendizado. Muitas vezes, para quem procura viver de um jeito simples, é preciso ficar consciente que não dá para ajudar todo mundo e realizar um número ilimitado de atos de caridade, mas uma ajuda ocasional sempre é possível, querendo ser irmão. Lembre-se que, na noite de Natal, Jesus tornou-se o irmão Universal e que o padre não pode deixar de imitá-lo.